Interesse Público

Ações de ressarcimento ao erário são (im)prescritíveis?

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29 de março de 2018, 8h05

Spacca
O Tema 897 da repercussão geral do STF trata de um dos assuntos mais polêmicos do Direito Administrativo brasileiro, o da prescritibilidade das pretensões de ressarcimento ao erário, decorrentes de atos de improbidade administrativa, pendente de julgamento no RE 852.475, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

Em breve, a mais alta corte do país — uma vez que o processo encontra-se pautado pela presidente do STF — terá a oportunidade de fixar orientação definitiva sobre a tese, colocando fim a um sem número de processos que se encontram sobrestados em diversos tribunais.

A questão é controvertida e delicada, a merecer prudência e isenção, de modo especial quando levados em conta o ambiente político e a crise institucional vivenciados pelo Estado e pela sociedade brasileira no momento atual — e a vocação naturalmente contramajoritária a cargo do Poder Judiciário.

Nesse contexto, desde logo convém reproduzir a advertência da página inicial da Teoria Pura de Kelsen, no sentido de que, “de um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política”[1].

Dispõe o artigo 37, parágrafo 5º da Constituição que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. O dispositivo há de ser lido obrigatoriamente em conjunto com o parágrafo 4º do artigo 37, de modo a abarcar apenas ações de ressarcimento decorrentes de atos de improbidade administrativa.

De se notar, como consequência, que se compreende como abrangidas pelo Tema 666 do STF, fixado no julgamento do RE 669.069 — “é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil” — a prescrição de ações populares e ações civis públicas comuns, cujo interregno legal é de cinco anos (artigo 21 da Lei 4.717/65).

Uma leitura isolada e apressada da regra inserta no artigo 37, parágrafo 5º da Constituição — que não raro é encontrada em autores de escol e em julgados dos principais Sodalícios do país — leva à conclusão de que o dispositivo ressalvaria da prescrição todo tipo de ação (pretensão) tendente a pleitear ressarcimento ao erário.

O Superior Tribunal de Justiça possui julgados que estampam essa orientação[2], e o Supremo Tribunal Federal, em decisão majoritária no Mandado de Segurança 26.210-9/DF (Tribunal Pleno, relator ministro Ricardo Lewandowski), tangenciou a matéria, para também sinalizar, com esteio na leitura da obra de José Afonso da Silva, a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário.

Essa interpretação, com a devida vênia, ultrapassa a própria letra do dispositivo constitucional. E, com efeito, o artigo 37, parágrafo 5º expressa e textualmente não alude à imprescritibilidade das ações de ressarcimento, diferentemente do que se passa, por exemplo, com o artigo 5º, XLII (“A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”), o artigo 5º, XLIV (“Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados”) e os artigos 183, parágrafos 3º e 191, parágrafo único (“Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”).

Sobre o tema, Sérgio de Andréia Ferreira descreve que a última versão do Projeto de Constituição consagrava a locução, “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, que serão imprescritíveis”, locução esta que restou alterada e transposta para o parágrafo 5º do artigo 37, sem as três últimas palavras (“que serão imprescritíveis”), o que, à evidência, deixa ver que o preceito examinado não induz qualquer sorte de imprescritibilidade[3].

Note-se que mesmo a doutrina de José Afonso da Silva, utilizada pelo STF no precedente acima citado (MS 26-210-9/DF), termina por consagrar a tese da prescritibilidade. Afirma o autor, em passagem reproduzida pelo relator, que:

“Nem tudo prescreverá. Apenas a apuração e punição do ilícito, não, porém, o direito ao ressarcimento, à indenização, do prejuízo causado ao erário”.

Ora, se, de acordo com essa doutrina (que serviu de base ao precedente do STF), a apuração (e a punição) do ilícito prescreve, uma vez transcorrido o prazo previsto para que dita apuração aconteça, não mais seria possível apurar o ilícito, de modo que sequer se cogitaria da pretensão de ressarcimento.

Assim, sob pena de contradição, tem-se que a citada doutrina propõe divisar duas situações. A primeira relativa à apuração (e punição) do ilícito, que se submete a prazo prescricional. A segunda relativa ao ressarcimento, que seria imprescritível, se e somente se o ilícito tiver sido apurado em tempo hábil.

Com efeito, se a regra geral num Estado de Direito é o reconhecimento da prescritibilidade das pretensões, como uma espécie de inerência à estabilização das relações jurídicas, se do dispositivo constitucional (artigo 37, parágrafo 5º) for possível extrair-se interpretação que prestigie o princípio da segurança das relações jurídicas, esta haverá de ser a exegese a ser perseguida pelo intérprete.

Nesse sentido, abraçada a tese da prescritibilidade da pretensão ressarcitória, consoante se defende neste ensaio, duas possibilidades interpretativas se apresentam na espécie:

  • Considerar que a ressalva da parte final do dispositivo (artigo 37, parágrafo 5º) quer significar apenas e tão somente que o prazo prescricional da pretensão e da ação de direito material respectiva é independente do prazo fixado para as sanções punitivas, aplicando-se ao ressarcimento, na inexistência de regra específica, o prazo do artigo 205 do Código Civil (10 anos);
  • Considerar que a ressalva constante do dispositivo constitucional é alusiva não à lei, mas ao próprio prazo de prescrição nela previsto (e definido na lei de improbidade), de modo que as ações de ressarcimento decorrentes de atos de improbidade administrativa não iniciariam o seu prazo de prescrição, enquanto não transcorrido o prazo de prescrição das penas aplicáveis aos atos de improbidade administrativa (cinco anos após o transcurso do prazo do artigo 23 da Lei 8.429/92).

[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 5. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[2] Cf., por todos, o Agrg no REsp 662.844/SP, 2ª T, Herman Benjamin, DJ 6/5/2009. Ainda: REsp 1.056.256/SP, 2ª T, Humberto Martins, DJ 4/2/2009.
[3] FERREIRA, Sérgio de Andréia. Comentários à Constituição, Rio de Janeiro: Fritas Bastos, 1991, Vol. 3º, p. 313.

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