Opinião

O que discute o STF: execução antecipada da pena ou quando jogar Lula aos leões?

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26 de março de 2018, 8h34

O julgamento do que seria a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, no Supremo Tribunal Federal, transformou-se em uma longa sessão sobre questões de ordem e requisitos de impetração de Habeas Corpus.

No afã de encarcerar Lula e não adiar o espetáculo de sua prisão, que tinha data marcada para esta segunda-feira (26/3), quatro ministros de nossa mais alta corte quase colocaram por terra o mais importante símbolo de resistência contra a opressão e defesa da liberdade da história do nosso constitucionalismo: a doutrina brasileira do Habeas Corpus.

Felizmente, foram vencidos por um placar de 7 a 4. Mas o fato não pode passar desapercebido. Quatro ministros do STF estavam dispostos a sustentar que o HC não pode ser interposto em substituição a recurso ordinário. Ou que em caso de confirmação da decisão recorrida por um órgão colegiado não é possível ao impetrante realizar um aditamento para redirecionar a impetração contra este órgão. Ou que a Corte não poderia conceder Habeas Corpus de ofício para proteger a liberdade, a não ser em caso de decisões “teratológicas”. Propuseram, como ironicamente salientou o ministro Gilmar Mendes, transformar o Habeas Corpus em uma corrida de obstáculos para advogados desesperados.

De outro lado, causou mais preocupação ainda a discussão sobre a liminar para dar a Lula salvo conduto até o término do julgamento do seu HC. De acordo com o Regimento do STF, o julgamento deveria ser concluído independentemente de se ultrapassar o horário regimental de funcionamento da corte. É dizer, o tribunal tinha o dever de julgar o caso naquela data. Mas sempre há algo mais importante.

Nesse ponto, o que se deu foi o seguinte: 1) Lula, como qualquer outro réu, tinha direito a que seu HC fosse julgado naquela sessão; 2) o STF, por conveniência de seus membros e pela alegação de que eles seriam incapazes de deliberar até altas horas, unilateralmente resolveu adiar este julgamento. O que se discutia era apenas se Lula poderia ter o seu recurso apreciado ainda em liberdade, é dizer, se ele teria direito a uma resposta do tribunal antes da sua prisão.

Nesse momento, cinco entre onze ministros decidiram que nem sequer este direito deveria ser assegurado ao ex-presidente da República. Por que fariam isso? Aqui me parece que já não se preocupavam mais em dar uma resposta geral à questão da prisão após decisão em segunda instância. Já não se preocupavam mais em fixar a jurisprudência do tribunal, ou resolver a questão jurídica abstrata. Se fosse essa a preocupação, por que não esperar o final do julgamento, já que ele foi marcado para a próxima sessão? Se estavam apenas preocupados em deliberar racionalmente, sem o peso do cansaço ou a perda de rigor do raciocínio em vista do adiantado da hora, o que teriam a perder? Não seria no mínimo mais grave deliberar depois de a prisão ter se tornado um fato consumado, atiçando paixões na população e aumentando a pressão sobre o STF?

Ao que me pareceu, o que esses cinco ministros queriam era não estragar a festa, o show de gladiadores ansiosamente aguardado pelos inimigos políticos do ex-presidente. Estavam preocupados com quem tinha ingresso comprado para o circo romano e queria assistir a tudo na primeira fila. Que outra razão poderia haver para autorizar a prisão antes do término do julgamento que eles próprios falharam em realizar na data correta?

Chama a atenção que o STF, ou parte dele, venha tentando se legitimar sob a alegação de que a corte exerce um papel iluminista na sociedade contemporânea. A definição mais conhecida de iluminismo é a de Immanuel Kant: “O Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do iluminismo”[1].

Data venia, para usarmos o jargão jurídico, nada pode ser menos iluminista do que a proposta que quase se sagrou vitoriosa no STF. Os cinco votos que indeferiram a liminar nada tinham a ver com a questão abstrata da prisão em segunda instância. Não parecem estar determinados pela razão ou por um juízo autônomo e abstrato sobre a possibilidade jurídica da prisão em segunda instância, à luz da lei. Parecem, ao contrário, coincidir com a pressão da mídia e o discurso populista que se constrói sob o motto “Lula na cadeia”!

É difícil imaginar algum tipo de prejuízo ou alguma razão jurídica ou moralmente relevante para submeter o ex-presidente a uma prisão espetacular antes do julgamento do HC. É difícil caracterizar essa posição como um juízo autônomo e racional, um entendimento alcançado apenas por força da razão, sem influência externa ou a preocupação com o que maiorias irracionais ou minorias barulhentas iriam pensar. Chega a ser impressionante o moralismo messiânico e o fantasma do ódio político que se consegue ler nas entrelinhas dos discursos de quem deveria aplicar a lei com imparcialidade.


[1] KANT, Immanuel, Resposta à pergunta: o que é o iluminismo, in A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1990.

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