Opinião

O fim dos tempos estranhos: a luta contra a criminalização da política

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26 de março de 2018, 15h54

O ano forense promete, e o Supremo Tribunal Federal terá inúmeras oportunidades de se manifestar sobre um fenômeno recente que, numa análise crítica, mais se parece com uma estratégia de marketing acusatório: a chamada criminalização da política.

E alguns dos casos que serão submetidos ao crivo da suprema corte merecem atenção ainda mais especial, pois não trazem todas as fórmulas acusatórias prontas criadas pela operação "lava jato", pois nem sempre contam com delações premiadas, nem sempre trazem a tiracolo doleiros ou agentes públicos de empresas estatais, não há planilhas, programas de computador misteriosos, encontros suspeitos ou outros subprodutos de delações premiadas criados por elas mesmas para tentar conferir alguma credibilidade aos relatos.

Ainda assim, imputam-se crimes de corrupção a parlamentares da República pelo simples fato de exercerem legitimamente seu papel de representantes da sociedade e dos cidadãos que os elegeram, de abrir as portas de seus gabinetes e de suas assessorias parlamentares para o debate com a sociedade civil.

O Brasil já passou por diversas turbulências. Transcorridos menos de 41 anos desde o nascimento da República, o Brasil viu Getúlio Vargas ascender ao poder após a Revolução de 1930, tornando-se posteriormente ditador e ocupando o cargo máximo da nação até 1945. Encerrado o governo de Vargas, nasceu a Nova República, curto e turbulento período democrático, o qual foi brutalmente interrompido pelo golpe militar de 1964.

A democracia direta só voltaria efetivamente à nação em 1990, com a posse de Fernando Collor na Presidência da República — vale lembrar que a eleição em 1985 de José Sarney, primeiro presidente civil desde 1964, foi indireta. O governo Sarney, contudo, deu início à recente democracia brasileira, com a promulgação da Constituição Cidadã em 1988, pedra fundamental da história recente do Brasil.

E o que a história tem demonstrado é que nenhum país, nenhuma sociedade nasce com seu desenho institucional pronto e acabado. São necessárias várias experiências, tentativas, erros, canais abertos de diálogo e aperfeiçoamento, tudo norteado pela estabilidade e segurança jurídicas e por uma Constituição forte e soberana.

Mesmo antes da completa redemocratização brasileira, já pós-regime militar, já se discutia sobre a ineficiência do ideal de freios e contrapesos do sistema tripartido de Poderes no país, voltando-se as críticas a um apontado e excessivo fortalecimento do poder executivo desde a era Vargas, o que certamente não mais se vislumbra na atual conjuntura política nacional.

De toda sorte, àquele tempo [era Vargas], o Poder Legislativo empenhou-se em criar mecanismos de representação que, de forma protecionista e para fazer frente a esse Executivo robustecido, foi acusado de clientelismo e de uma certa promoção oligárquica da política, atendendo a grupos muito setorizados que exerceriam um tipo de monopólio da atividade parlamentar, legislando segundo seus próprios interesses.

Tal fenômeno foi identificado como a chamada “crise da representação política” ou “crise da democracia representativa”, que favoreceu a busca de alternativas para minimizar esse distanciamento dos representantes políticos e dos correlatos partidos políticos com aqueles que os elegeram. Nesse contexto, estimulou-se a atuação política de instituições representativas capazes de exercer pressões e demandar espaços abertos e democráticos de diálogo direto com os parlamentares, como associações, sindicatos, cooperativas, igrejas, universidades, institutos, organizações profissionais, empresariais, patronais e empregatícias, dentre muitas outras.

O país encontrava-se, até pouco tempo, justamente em meio a essa longa caminhada histórica para se chegar a um modelo representativo desejado por décadas na história recente brasileira, em que a criação de canais de comunicação, de encaminhamento de demandas, de discussão franca de interesses entre a sociedade civil e o poder legislativo era considerado um ideal a ser alcançado. As doações de campanha, nesse contexto, eram vistas com naturalidade e estimuladas.

Alguns parlamentares têm se empenhado em justamente afastar esse modelo já falido e historicamente criticado de clientelismo parlamentar e, conferindo efetividade ao sistema representativo democrático, buscando viabilizar canais institucionais de diálogo e discussões sobre expedientes legislativos de interesse desses grupos de pressão, na acepção política e legítima do termo, sem qualquer contexto pejorativo.

Esse modelo de aproximação representativa parece razoável aos objetivos do próprio sistema e extremamente recomendável para conferir sentido à razão de ser do sufrágio, já que possibilita ao cidadão se aproximar de seu representante eleito.

Mas, contraditoriamente, o que se vê hoje é uma campanha midiática acusatória contra a política, contra o exercício da atividade parlamentar, em que não faltam acusações infundadas e generalizações grosseiras, que provocam desconfiança por parte da sociedade e do eleitorado em relação a seus representantes escolhidos pelo voto, que criam novamente distanciamentos, insegurança e propiciam um odioso abalo nas instituições e nas relações entre os Poderes constituídos.

A explicação não é outra senão a de que o país volta a enfrentar uma aguda crise de desequilíbrio na tripartição de Poderes, agora em maior complexidade e com a participação de personagem noviço na histórica democrática brasileira, o Ministério Público. Assiste-se, ao que parece, a um redimensionamento do sistema de freios e contrapesos, a um conflito dinâmico em que os Poderes da República lutam para preencher espaços em meio à volatilidade e rapidez dos acontecimentos políticos.

Nesse contexto, o Poder Executivo sofre, dizem alguns, uma crise de legitimidade, o Poder Legislativo é atacado e criminalizado de forma massacrante, enquanto isso, o Poder Judiciário vem tomando espaços que, historicamente e constitucionalmente, não lhe pertencem.

E talvez aproveitando a oportunidade para buscar seus espaços de poder em meio a esse embate e às rachaduras do sistema tripartido, alguns setores do Ministério Público vêm promovendo campanhas publicitárias milionárias para cooptação de pessoas e grupos políticos, alimentando mídias sociais, disseminando ideais de recrudescimento do Direito Penal, de maximização de punições e do encarceramento como uma suposta medida eficaz em favor de um alegado combate à corrupção.

Mas o Ministério Público não é um dos Poderes da República, como equivocadamente alguns insistem em afirmar, ao chamá-lo quarto poder.

A respeitável instituição — nascida e fortalecida nos braços da democracia, em meio aos livres e abertos espaços de discussão próprios da atividade parlamentar, antes festejada — é politicamente um grupo de pressão, com seus interesses republicanos, suas demandas legítimas, seus orçamentos a serem discutidos no Congresso Nacional, seus representantes eleitos a ocuparem cadeiras no parlamento, que evidentemente e naturalmente defendem e representam seus eleitores.

E assim deve ser! E, vale a reflexão: talvez se pudesse a instituição Ministério Público realizar doações eleitorais a determinados candidatos que a representam, certamente o faria. E, institucionalmente, certamente procuraria tais representantes eleitos para solicitar audiências, encaminhar demandas, ofícios, trocar e-mails debatendo, sugerindo, cobrando legitimamente a apresentação, alteração ou supressão de trechos de proposições legislativas, não o faria? Sim, sem dúvidas.

Bem se sabe que esse mesmo Ministério Público não faz doações eleitorais, mas não deixa de bater às portas do parlamento para discutir suas necessidades e apresentar as demandas que julga interessantes à própria instituição, que, aliás, conta com servidores especificamente designados e alocados dentro do Congresso Nacional para exercer atribuições de assessoria legislativa, que muitos preferem chamar de “lobby”.

Ainda assim, numa lógica incoerente, continua a promover campanhas e ataques ao Poder Legislativo e ao sistema representativo, sem parar para pensar nas nefastas consequências que poderão resultar desse jogo autofágico que assola a democracia brasileira. Essa tentativa de criminalização da política é a realização, na prática, da “fábula do escorpião”, pois o órgão acusatório parece preferir se afogar na travessia do que renunciar à sua própria natureza.

Tais evidentes excessos fazem proliferar um sentimento de insegurança e desconfiança com as instituições, alimentam a intolerância e, talvez, sem perceber a desastrosa proporção de seu messianismo simplista, favorecem o fortalecimento de personagens com um discurso autoritário de ódio, de preconceito, mas que, claro, afirmam querer combater a corrupção.

Vale ponderar, todavia, se esse discurso monotemático de ataque ao Poder Legislativo, travestido de combate à impunidade e à corrupção, não está a advogar justamente pela redução dos espaços, pela eliminação desses canais autênticos e institucionais de comunicação e pelo fim desse processo de aproximação entre a sociedade e seus representantes.

Ora, mas a quem pode interessar essa nova ordem política que poderá desastrosamente resultar dessa recente crise no sistema de freios e contrapesos? A quem interessa o retorno ao clientelismo oligárquico implantado e arraigado dentro do parlamento, como motor e razão de ser do sistema representativo antigo? Talvez a determinados grupos que se julgam “empoderados”, que se julgam parte dessa nova realidade, em alguma medida, oligárquica, não mais aquela agrícola-feudal, mas uma nova, jurídico-salvadora.

Coincidentemente, ou não, os grupos neoempoderados tem alcançados novos espaços de poder e tentado impor pautas e matérias que interessam prioritariamente a eles próprios, muito embora as massivas campanhas de marketing que as projetam tentem vendê-las como de interesse social. Exemplificativamente, citemos a odisseia legislativa do poder investigativo do Ministério Público, ou as chamadas “10 medidas contra a corrupção”, bem como a penca de auxílios remuneratórios de toda espécie que passou a ser pauta parlamentar desse mesmo MP e de setores do Poder Judiciário.

Essa malfadada tentativa de criminalização da atividade parlamentar faz parte desse projeto de empoderamento, mas significa um desserviço desastroso ao país, que tende a provocar um retorno àquele modelo clientelista de poder, em que os espaços de debate representativo eram movidos a interesses obscuros e fatores de pressão inconfessáveis.

Uma preocupação que se deve ter sempre em mente para evitar o cometimento de injustiças é o respeito ao processo de evolução e aprimoramento natural de uma democracia, que passa necessariamente pelo respeito às leis, às regras do jogo, favorecendo o equilíbrio e o respeito mútuo entre os Poderes.

Por óbvio, não se pode discutir e alterar leis mediante o pagamento de vantagens indevidas. Da mesma forma, também não se pode coagir e achacar os congressistas com campanhas publicitárias de massa e câmeras e smartphones na mão nos corredores do Congresso Nacional, atacando todos aqueles que discordam deste ou daquele projeto proposto por grupos de pressão de qualquer natureza. Agir assim significa realizar duas faces de uma mesma violência, que ataca e assola o Poder Legislativo e que, ao distorcer o sistema representativo, corrompe a própria liberdade e a democracia.

Cabe aos operadores do Direito buscar o extremo oposto, a preservação e proteção das instituições e, evidentemente, o aperfeiçoamento do sistema, mas desde que utilizando dos mecanismos próprios do regime tripartido e do equilíbrio de poderes, sempre fiel aos princípios da democracia representativa, tudo em plena conformidade com a Constituição Federal.

A crítica deve, sim, ser feita a parlamentares que ousaram infringir seus deveres e atender interesses escusos em troca de benefícios ilícitos, devendo responder por seus atos, mas igualmente alcança aqueles que violentamente atacam parlamentares que se colocam criticamente e publicamente contra propostas de alterações legislativas questionáveis, senão inconstitucionais, como as chamadas “10 medidas contra a corrupção”. Nas duas formas de violência, sofre a democracia.

Nas regras antigas do jogo político, o financiamento das campanhas eleitorais por empresas era perfeitamente lícito e usual. Talvez alguns possam ponderar que pode ter sido um modelo sujeito a distorções ou inadequado para a democracia que se quer construir no Brasil, então caberia aos cidadãos e aos grupos de pressão organizados discutir tais problemas legitimamente junto ao parlamento, em pleno respeito à independência e ao equilíbrio entre os Poderes.

A doação de campanha não pode virar no país um assunto proibido, uma pauta de constrangimento, muito pelo contrário. Recentemente, um subprocurador-geral da República, em sustentação oral pelo recebimento de denúncia contra um senador, afirmou que a doação deve ser, pela própria origem latina do termo, um “ato e amor” e que, em razão disso, a defesa deveria provar que a empresa doadora amava o político sob julgamento para demonstrar a legitimidade e licitude da doação.

Ora, convenhamos! Sustentar tal ponto de vista publicamente, com todo o respeito às opiniões contrárias, é o sintoma mais escancarado da criminalização da política, da demonização da doação eleitoral em nome de um pensamento hipócrita que em nada contribui para o país. Raciocínios como esse não combatem a corrupção nem reduzem a impunidade, tampouco almejam justiça social e redução das desigualdades.

Criminalizar a política dessa forma representa apenas um projeto de poder, uma busca por espaços e posições de dominação e colonização da própria política, que favorecem esse retrocesso tão grave ao modelo parlamentar clientelista no qual o parlamento atendia apenas a determinados grupos. A mão que apunhala a doação legítima de campanha hoje é a mesma que escreve projetos de lei para atender interesses egoístas e coorporativos amanhã.

Mas confiamos no senso de justiça do Poder Judiciário e esperamos que se faça valer a Constituição Federal. Os julgamentos previstos para os próximos meses no Supremo Tribunal Federal poderão significar um importante marco jurisprudencial, uma linha de coerência em favor da preservação das instituições e do reequilíbrio dos Poderes.

Esse é o grande legado que devemos perseguir incessantemente: o respeito aos direitos fundamentais, a busca da segurança jurídica, a valorização do sistema democrático representativo que o país alcançou às custas de anos de evolução democrática, de muitos erros e acertos. Esse é o verdadeiro marco civilizatório capaz de prestigiar e fazer perpetuar o Estado Democrático de Direito, em que a Constituição Republicana não precisa ser reinventada ou interpretada de forma iluminista, mas apenas respeitada.

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