Embargos Culturais

O drama de Capitu, a suprema injustiça e a tragédia das condenações sem prova

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de março de 2018, 8h00

Spacca
Muito menos do que um estudo sobre a (suposta) traição de Capitolina (Capitu), Dom Casmurro é um esboço de Machado de Assis sobre o (obsessivo) ciúme de Bento de Albuquerque Santiago (Bentinho). Não há provas decisivas e liquidantes de que Capitu tenha traído Bentinho. O narrador é o próprio Bentinho, já transmudado na velhice como o Dom Casmurro, alcunha que marcou uma personalidade amarga, triste, abatida, deprimida. Bentinho terminou a vida massacrado pelo fantasma da traição da esposa, cuja descoberta (imaginária) lhe tirou o contentamento de viver. É um drama de realismo ferino.

O narrador conta o que quer nessa obra essencial de nossa identidade cultural[1]. É essa a premissa que escolho na defesa de Capitu. A narrativa pode tangenciar a realidade, ainda que essa realidade seja a realidade de Bentinho. Capitu não tem espaço para se defender. Teve que esperar a obra de dois ingleses[2] para que pudéssemos conhecer uma tentativa de justificação de quem, acusada, nunca teve palavra própria. Dom Casmurro é um libelo de criminologia machista, que induz a reduzir a mulher a uma discriminatória inferioridade biológica e intelectual, que é enervante. Argumento que Capitu é personagem injustiçada porque o narrador não lhe deu a palavra. Sem contraditório, não há justiça: é o que aprendemos com autores antigos e canônicos como Thomasius, Spee, Sonnenfels, Beccaria e Verri.

Ainda que culpada já nas gravuras das capas dos livros, um processo contra Capitu seria nulo porque a acusada não se defendeu. Essa nulidade é insanável. O ofendido é, ao mesmo tempo, juiz, promotor, narrador, relator e revisor. Um julgamento sério de Capitu não passaria pelo labirinto da jurisprudência construída em torno do artigo 155 e seguintes do Código de Processo Penal atualmente vigente.

O enredo é bem engendrado. Ao relembrar sua vida na rua de Mata-Cavalos, Bentinho retoma como escapou do seminário e como fugiu de um destino eclesiástico que tinha como causa a morte de um irmão. Um agregado, José Dias, ajudou a convencer Dona Glória (a mãe do fantasioso traído) que Bentinho não deveria vestir a batina. Resolveram o problema com um truque de hermenêutica. Dona Glória havia prometido ao padre um sacerdote e, não necessariamente, Bentinho. No lugar do filho enviou um escravo. Dona Glória era bem de vida, vendera uma fazenda, escravos, ainda tinha escravos de aluguel, alugava também casas e tinha apólices que rendiam. Era uma rentista. Bentinho estudou direito em São Paulo. Tornou-se amigo de Ezequiel de Souza Escobar, com quem conviverá com muita proximidade.

Intenções censuráveis de Capitu são insinuadas em vários pontos do livro. Descrita ainda como criança, é referida por Bentinho como um desmiolada. Há também um ingrediente de ascensão social, por parte de Capitu, o que parece realçar suas lamentáveis intenções. Bentinho, ressentido, a tem como uma oportunista. O pai de Capitu, o Pádua, era um empregado de repartição dependente do Ministério da Guerra, “não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata”. O narrador enfatiza que Capitu desde garota tinha ideias atrevidas. Nos olhos de Capitu é que Bentinho depositou toda uma desconfiança, provinda de um personalidade doentia: “A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu… Você já reparou nos olhos dela?”. Eram olhos de cigana oblíqua e dissimulada, os olhos de ressaca, que marcam a mais misteriosa das personagens femininas de nossa literatura.

Bentinho e Capitu se casaram. Escobar e Sancha eram amigos do casal. Bentinho e Capitu tiveram dificuldade para gerar descendência, o que Escobar e Sancha conceberam com facilidade. Depois de dois anos Capitu se tornou mãe. Ao filho nascido batizou-se de Ezequiel, uma homenagem sincera ao amigo Ezequiel Escobar. Atlético, energético, Escobar morreu afogado num mergulho no mar. Durante as exéquias, Bentinho reparou nos olhos da esposa: “(…) Capitu olhou alguns instantes para o cadáver, tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e calhadas (…) Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”. Essa é a prova: um olhar. É a premissa elegida da qual um neurótico subtrairá todas as consequências que seguem.

Bentinho ensandeceu. Enxergou no filho a imagem do defunto. Repudiou a criança, que pensou em matar, como no teatro grego, na passagem de Medeia, que odiou os filhos do marido traidor. Bentinho separou-se de Capitu. Ezequiel, seu filho, faleceu de tifoide em Jerusalém.

E Capitu? Que pode ser levantado em sua defesa? Machado de Assis estudava os clássicos e certamente conhecia o martírio de Santa Capitolina, executada com uma criada, cujo nome, Erotes, insinuava o amor erótico[3]; no nome já se insinua uma personalidade. Para outro defensor, “Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os outros têm uma existência independente da sua, de modo que quando eles afirmam sua independência, como é natural na ordem das coisas, essa afirmação parece uma traição”[4]. As reflexões de Bentinho, desprovidas de contraditório, retomam os inquéritos da Europa Medieval, quando se construía a verdade com base em uma razão construída sobre si mesma, mais uma maneira do poder se exercer[5].

Ao leitor, como aos juízes nos processos judiciais, não é dado investigar a verdade, é permitido apenas o controle do procedimento. Na obra literária o controle do procedimento se dá com a aferição da composição formal de uma narrativa verossímil, enquanto na vida judiciária há os protocolos e as nulidades dos códigos. Pensa-se que Capitu traiu porque Capitu poderia ter traído. É a mais infame das provas: ter como certo o que poderia ter ocorrido.

E porque a demência dá ao enfermo um visão de vida que é estranha à realidade[6], o doentio Bentinho não percebia sua circunstância com uma percepção patológica do real. Fiava-se no verossímil, tirando todas as conclusões possíveis, simplesmente porque a premissa que escolheu não permitia outras soluções. É esse o núcleo de toda a filosofia da interpretação, jurídica ou literária.

Ao condenarmos Capitu, caímos na armadilha que Machado de Assis nos armou. Nos esquecemos que Capitu não se defendeu e que não teve defensores. É na sua naturalidade, que no fundo é uma inocência humana que todos deveríamos ter, até prova definitiva em contrário, que se extrai a força e o argumento de sua redenção. Não se pode condenar com base em um olhar. Ainda que esse olhar seja o mais enigmático e desafiador de toda nossa literatura.


[1] Machado de Assis, Dom Casmurro, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W. M. Jackson Editores, 1946.
[2] Helen Caldwell, O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, Cotia: Ateliê Editorial, 2008. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. John Gledson, Machado de Assis, Impostura e Realismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Tradução de Fernando Py.
[3] É argumento sustentado por Helen Caldwell, cit., pp. 80 e ss.
[4] John Gledson, cit., p.12.
[5] Cf. Michel Foucault, A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: PUC-NAU, 1996, p. 73. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais.
[6] A percepção seria do próprio Machado de Assis, no inspirado estudo de Eugênio Gomes, O Enigma de Capitu, Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 161.

Autores

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    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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