Opinião

Por que a ADI 5.875 é tão necessária à democracia do Brasil?

Autor

  • Guilherme de Salles Gonçalves

    é advogado eleitoralista professor de Direito Eleitoral na UEL na ESA-PR na EJE-PR na ABDConst e na EMA-MT ex-presidente e fundador do Iprade (Instituto Paranaense de Direito Eleitoral) membro fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e do Ibrade (Inst. Brasileiro de Direito Eleitoral).

22 de março de 2018, 6h34

Proposta pela Procuradoria-Geral da República, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.875 questiona modificação introduzida pela Emenda Constitucional 97/2017, que, entre outras coisas, passou a conceder uma quase independência dos partidos políticos para regular a escolha, formação e a duração de suas comissões provisórias.

Contrariando, assim, o entendimento regulamentar anterior — previsto no artigo 39 da Resolução 23.465/2015 (conforme profundo estudo feito, à época, pelo então ministro Henrique Neves) —, que, diante dos termos do artigo 17 da Constituição Federal, estabelecia um prazo máximo de duração de 120 dias para essas direções partidárias precárias, integralmente dependentes das direções de instância superior desses partidos.

Exigia essa normativa regulamentar que, até o final desse prazo, cada direção partidária elegesse uma direção definitiva, de acordo com cada estatuto. Fazendo plenamente eficaz, no âmbito interna corporis dos partidos políticos, os mesmos princípios diretores da democracia representativa estruturados pelo nosso sistema constitucional, como os da temporariedade dos mandatos e do sufrágio dos filiados, exigíveis nos partidos conforme o caput do artigo 17 da nossa Constituição.

Segundo a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, “possibilitar que os partidos políticos, em seus estatutos, definam livremente o prazo de vigência dos diretórios provisórios significa abrir largo horizonte para a concentração de poder e inequívoco obstáculo à renovação política municipal ou estadual, com não menos inexoráveis e indesejadas consequências sobre a perpetuidade dos líderes nacionais máximos”.

Com a promulgação da Constituição de 1988, os partidos políticos, pela primeira vez na história brasileira, deixaram de ser pessoas jurídicas de direito público, com regime especial de órgãos da administração, e adquiriram o status de pessoas jurídicas de direito privado, aproximando-os, com a devida vênia, de associações, sociedades e fundações, por exemplo.

Tanto era assim que a lei de regulação partidária que vigia no período anterior ao da Lei 9.096/95 — a revogada Lei 5.692, de 21 de junho de 1971 — era denominada Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Assim, ao primeiro exame, poder-se-ia entender que, sendo pessoas jurídicas de direito privado, e não mais órgãos, uma longa manus, do Estado, não haveria maiores problemas em deixar ao bel prazer dos dirigentes dos seus órgãos diretivos superiores o prazo de duração das comissões provisórias dos diretórios inferiores.

Se isso fosse tudo, não haveria por que continuar; mas há um relevante "porém" que mereceu a atenção da PGR. O argumento defendido — com muito acerto — pela Procuradoria parte de uma premissa que já conta com forte suporte no sistema constitucional-eleitoral: em que pese o artigo 17, parágrafo 2º da Constituição, reputar aos partidos a personalidade jurídica de direito privado, eles possuem uma natureza sui generis, que lhes impõe não só uma série de prerrogativas na defesa do Estado Democrático, mas também um rol de imposições constitucionais.

Até porque em nosso sistema eleitoral é indiscutível que, para se candidatar a qualquer cargo eletivo, a filiação partidária e a escolha em convenção são requisitos típicos de elegibilidade. Sem atender a isso, o cidadão que pretenda se candidatar estará tão inelegível quanto um estrangeiro, um analfabeto, alguém que não tenha título eleitoral ou um estrangeiro não naturalizado, conforme o artigo 14 da Constituição Federal.

Por conta dessa prorrogativa de deter monopólio de acesso dos que pretendem exercer cargos eletivos, a nossa Constituição estabelece um regime jurídico próprio aos partidos políticos, fixando-lhe requisitos, deveres e critérios de funcionamento próprios. Entre tais requisitos que lhes são ínsitos, de acordo com o caput do artigo 17 da Constituição, estão expressamente postos o seu caráter nacional, a necessidade de prestar contas à Justiça Eleitoral, o funcionamento parlamentar de acordo com a lei e a proibição ao recebimento de recursos de entidades ou governos estrangeiros.

Contudo, por mais relevantes que sejam tais questões, elas não estão no foco dos grandes debates eleitorais, pois tem a natureza jurídica de balizas gerais, externas, que limitam e condicionam a criação e o funcionamento dos partidos políticos.

Atualmente, o que mais se faz relevante na quadra constitucional brasileira é uma limitação não literalmente explícita no texto constitucional, mas eficaz e fundamental: a transposição do regime democrático para suas esferas internas, substanciando-se o que a doutrina tem denominado de regime de "democracia intrapartidária". Isso porque há um perceptível desafio de se compreender que não só os partidos são uma peça-chave no funcionamento do Estado Democrático de Direito na sua atuação externa — sua precípua e insubstituível função constitucional —, mas também que o Estado Democrático de Direito seja um elemento fundante e determinante das suas normativas partidárias internas, sobretudo pela imposição de direitos e garantias, constitucionais e fundamentais, no trato das questões usualmente postas à discricionariedade política dos seus dirigentes e filiados.

Primeiramente, o raciocínio que subjaz à referida teoria, aqui em análise, decorre de um desdobramento da construção teórica, hoje consagrada jurisprudencialmente, acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Segundo tal construção teórica, amplamente desenvolvida pelo constitucionalismo alemão e português, os direitos fundamentais não vinculam tão-somente o legislador e a administração pública para com os indivíduos (o que comumente se denomina eficácia vertical), mas também os particulares em suas relações entre si e com outros agentes privados.

Tomemos um exemplo cotidiano: se um indivíduo é excluído sumariamente do clube recreativo que frequenta, ou mesmo da equipe esportiva que apoia fielmente — sem que os dirigentes de tal entidade lhe permitam expor suas razões em sua defesa —, atualmente ninguém mais nega que houve uma violação aos seus direitos mais ínsitos como cidadão de um Estado de Direito. Reconhecido isso, o que se passa com a tessitura interna dos partidos políticos em nada difere; ao contrário, seria possível até mesmo afirmar que tais garantias se fazem ainda mais prementes e indispensáveis nessas agremiações, dada sua relevância e função constitucionais específicas.

Em segundo lugar — e aqui reside o principal argumento da Procuradoria-Geral —, é necessário perceber que o constituinte tratou de alicerçar, desde o início, o sistema constitucional brasileiro sob uma égide republicana e democrática, pautada pelos direitos fundamentais da pessoa humana, conforme se depreende do próprio caput, incisos e o parágrafo único do artigo 1º da Constituição. Isso significa afirmar, em síntese, que quaisquer relações jurídicas que envolvam os partidos políticos têm de possuir o ideal republicano e o sistema democrático como norte e paradigma.

Nesse sentido, e dentro desse paradigma democrático, veja-se que o texto constitucional prevê, expressamente, os prazos de mandato dos agentes políticos: veja-se, meramente como exemplo, as disposições relativas a deputados estaduais (artigo 27, parágrafo 1º), governadores e seus vices (artigo 28, caput), prefeitos, vices e vereadores (artigo 29, I) e senadores (artigo 46, parágrafo 1º), todas da Constituição de 1988. A tônica que pauta a república democrática brasileira é a da temporalidade do mandato e da alternância no poder; e, por tal razão, constitui um contrassenso conceber instituições públicas — ou, como no caso dos partidos, com finalidades públicas e funções constitucionais específicas — fora desse esquema constitucional.

O que resulta desse amálgama é a percepção de que os valores e princípios encampados pela Constituição da República são de observância obrigatória dentro das estruturas de cada agremiação. E isso não representa novidade na prática jurídica brasileira: como é sabido e razoavelmente aplicado há um bom tempo, e como apontado acima, as agremiações partidárias devem promover o respeito aos direitos fundamentais, como os princípios da ampla defesa e do contraditório no julgamento de questões interna corporis, sendo o seu descumprimento, aliás, motivo que autoriza a ingerência do Judiciário em suas esferas privadas, como desde há muito decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral no Acórdão 13.750, de relatoria do ex-ministro Eduardo Alckmin.

Antes, porém, de ser uma via natural da evolução histórico-partidária dentro no nosso sistema constitucional democrático no seu viés representativo, essencialmente partidário, a transposição de tais elementos configura questão, ao invés de ser até lógica diante das balizas constitucionais, ainda tem muita resistência. E isso se passa especialmente quando se tentam impor mecanismos republicanos e democráticos na esfera interna dos partidos políticos. Isso porque a legislação infraconstitucional que rege os partidos políticos — como destaque para a Lei 9.096/95 — não prevê nenhum mecanismo específico de democracia interna (por exemplo, seleção de candidatos, divisão de espaço nos meios de comunicação, distribuição dos recursos públicos, formação de listas etc.), limitando-se, tão-só, a assegurar uma igualdade meramente formal e remetendo todos esses fundamentais institutos aos estatutos e regimentos internos dos partidos, como amplamente reconhecido na doutrina eleitoralista. Exatamente por isso, faz-se necessário investigar a problemática das comissões provisórias.

Em linhas gerais, as comissões provisórias são órgãos partidários precários do ponto de vista estrutural, mais facilmente explicados pela sua nítida oposição aos diretórios partidários, uma vez que a maior diferença em comparação a estes é a inexistência de eleições para a escolha de seus dirigentes, os quais acabam sendo apontados diretamente pelos órgãos federais da legenda. Representando, como historicamente se constata, meros reprodutores da vontade de um grupo seleto — e muito homogêneo — de dirigentes das esferas estaduais e nacionais. Até mesmo por isso é frequente a infeliz prática de instâncias superiores partidárias que, a um só turno, dissolvem os seus diretórios e instituem e revogam comissões provisórias, as quais passam a agir completamente em consonância com a vontade dos dirigentes nacionais (ou estaduais).

Os dados apontados são evidentes e alarmantes. Em reportagem no final de janeiro, o jornal O Globo noticiou que 12 partidos possuem mais de 90% de seus órgãos regionais em situação provisória, outros 13 possuem entre 70% e 89% na mesma situação, seis agremiações se encontram abaixo dos 25% e somente uma, o Novo, possui as suas 14 comissões estaduais eleitas em definitivo. Ainda segundo a reportagem, das 55.204 direções municipais, estaduais e nacionais, 40.575 delas são provisórias e, por conseguinte, têm líderes indicados e subordinados pelas altas chefias partidárias.

Diante desse quadro, e após um longo período de discussões com dirigentes partidários, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 23.465/2015, que, em seu artigo 39, determinou o prazo máximo de 120 dias para a duração dessas comissões provisórias, a contar do dia 3 de agosto de 2017. Prazo que, findo sem a realização da convenção respectiva, para a eleição de uma direção partidária definitiva naquela instância, tornaria o partido impedido de lançar candidatos nas eleições que ocorressem na circunscrição com comissão provisória eterna.

Contudo, em 4 de outubro de 2017, menos de dois meses após a edição da resolução, foi promulgada a Emenda Constitucional 97/2017, a qual, em seu artigo 1º, conferiu nova redação ao artigo 17, parágrafo 1º do texto constitucional, a fim de assegurar “aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento (…)”. E isso, diga-se, em uma emenda que, a rigor, possuía como objeto “vedar as coligações partidárias nas eleições proporcionais, estabelecer normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuito no rádio e na televisão e dispor sobre regras de transição”, configurando o que se usou denominar de jabuti, na prática parlamentar — eis que a tramitação legislativa original não possuía esse fim inicial de modificar questões acerca das comissões provisórias, mas acabou entrando tal dispositivo à sorrelfa, sem maiores debates, sobretudo com a sociedade civil.

O que se pode perceber, portanto, é um quadro de flagrante inconstitucionalidade e de nítido desrespeito pelos ideais republicano e democrático, com essa alteração da redação do dispositivo constitucional, que, em verdade, possibilita que os partidos prorroguem, sem qualquer limite normativo, as comissões provisórias, bem como as renovem, violando os princípios da temporalidade dos mandatos e do sufrágio dos filiados, a um só tempo. Criando um ambiente que tem uma dupla, e igualmente perversa, consequência: o incentivo ao caciquismo partidário das instâncias superiores, em detrimento da participação dos filiados de base e, por outro lado, ainda maior falta de credibilidade dessas fundamentais instituições do sistema democrático representativo brasileiro.

Como apontado por Raquel Dodge, “[u]ma emenda que tenda a gerar donos de partidos é inconciliável com o regime democrático concebido pelo constituinte originário”. Esquecemo-nos dos avanços realizados e caminhamos novamente rumo ao retrocesso, pois, mantidas as (inconstitucionais) comissões provisórias, a democracia não subsiste ou, ainda, não surge na esfera intrapartidária. Ainda aprofundando a crise que, no seu limite, pode vir a gerar um ambiente ainda mais favorável às chamadas candidaturas avulsas — o que, em nosso entender, além de ser uma impossibilidade efetiva diante de nosso vigente sistema constitucional, ainda aprofundaria com maior gravidade a crise democrática que enfrentamos, possibilitando o surgimento dos deletérios líderes messias, salvadores da pátria e outsiders.

Por ora, resta esperar pelo acolhimento da cautelar ajuizada pela PGR e, após, pela declaração da patente inconstitucionalidade do referido dispositivo da EC 97/2017 pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADI 5.875. Ou, para aqueles que ainda creem que os indivíduos possam se pautar por ideais republicanos e democráticos, esperar pela decisão dos dirigentes partidários de promover — em ato de autorreflexão — a substituição de suas comissões provisórias por novos diretórios, com regras claras de eleição e de transitoriedade dos mandatos. Não custa ter um pouco de esperança, que está cada vez mais em falta.

Autores

  • Brave

    é sócio do GSG Advocacia, mestrando em Direito Constitucional Eleitoral e professor de Direito Público e de Direito Eleitoral. Fundador e ex-presidente do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade), membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e do Instituto Paranaense de Direito Administrativo (IPDA).

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