Opinião

Instituições com direitos previstos em lei não merecem a execração pública

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21 de março de 2018, 13h50

*Artigo originalmente publicado na edição desta quarta-feira (21/3) do jornal Correio Braziliense com o título "República e direitos".

Numa república — a República Federativa do Brasil —, não pode haver “privilégios”, arbitrariedades ou imunidades às responsabilidades. Desde 1649, na Inglaterra, os ingleses passaram a não tolerar arbitrariedades na cobrança de impostos e persiste hoje, naquele país, uma monarquia constitucional cuja essência não deixa de ser o espírito republicano. Nos Estados Unidos, o movimento ocorreu em 1776, com a independência das 13 Colônias, transparecendo a construção de normas constitucionais que consubstanciaram o chamado “devido processo legal”. E na França, a Revolução Francesa, em 1789, houve a ruptura do absolutismo e o surgimento dos direitos humanos e seu caráter universal. Um princípio comum às civilizações contemporâneas e às repúblicas, sem dúvida, é o da interdição à arbitrariedade dos poderes públicos e o da responsabilidade dos agentes estatais. Evidente que não há república sem observância à separação de poderes, à legalidade e ao combate à corrupção. Como dizia o jurista Eduardo García de Enterría, a corrupção é a antítese das democracias contemporâneas.

O que estamos observando no Brasil? Uma espécie de catarse coletiva e um debate intenso sobre as vísceras da república. Desde a operação “lava jato”, vieram à tona práticas espúrias e patrimonialistas no modo de se conceber leis, medidas provisórias, ou acordos visando satisfazer interesses políticos ilícitos. A operação “lava jato” é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro da história deste país e uma das maiores do mundo. Nela estão envolvidas múltiplas organizações criminosas com tentáculos poderosos no aparato estatal. Operadores financeiros, agentes políticos e altos mandatários da nação, de todos os poderes, estão ou já foram investigados, muitos condenados. O ministro Celso de Mello, ao manter a prisão de um parlamentar, pontuou, certa feita, que a lei vale para todos, “não importando sua posição estamental, se patrícios  ou plebeus, governantes ou governados”, o que significa dizer que decisões não são tomadas em caráter casuístico, tampouco em detrimento da república.  O Brasil estaria a caminho de deixar de ser o paraíso da impunidade dos criminosos do “colarinho-branco”. Inúmeras têm sido as tentativas de abafar essa operação, até porque a reação dos poderosos seria de se esperar. Esse embate tem sido intenso na história recente dos países em desenvolvimento, mas o Brasil vem se destacando no contexto internacional pelo combate firme à corrupção.

Múltiplas instituições são responsáveis pela implementação da "lava jato" e precisam ser fortalecidas e prestigiadas. Trata-se de instituições republicanas, cujo funcionamento permanente e estável assegura a continuidade de políticas públicas. Refiro-me à magistratura, Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal, advocacia pública federal, Controladoria-Geral da União (atual Ministério da Transparência — seu corpo técnico) e Tribunal de Contas da União, entre outras. Em especial, vale destacar o debate recente sobre supostos privilégios que têm sido apontados em relação a magistrados, membros do Ministério Público e advogados públicos federais: os primeiros, no tocante ao auxílio-moradia, e os últimos, relativos ao direito aos honorários advocatícios, que ganharam por força da Lei 13.327/16.

Os ataques a essas instituições baseiam-se em tentativa de seu enfraquecimento. Confundem a opinião pública, porquanto induzem à falsa ideia de que seus integrantes gozam de privilégios quando, na realidade, apenas estão no legítimo exercício de direitos que lhes são outorgados por leis. Qual o interesse em misturar instituições sólidas e republicanas num debate que se trava sobre privilégios odiosos no Brasil? Parece-me que o propósito é jogar todos num mesmo patamar, precisamente num momento em que as entranhas da república são expostas por essas instituições. Se todos são, digamos assim, “corruptos”, ninguém é corrupto. Se todos são “privilegiados”, ninguém é privilegiado. Aposta-se no caos. Mas é necessário separar o joio do trigo. As instituições fiscalizadoras, ou seus membros, que exercem ou gozam direitos previstos em leis, não ofendem a moralidade administrativa nem merecem a execração pública.  

Existe, sim, uma espécie de “mercado do escândalo”, que incentiva o sensacionalismo permanente. A essência da república não é impedir que agentes políticos — especialmente aqueles encarregados de combater a corrupção — sejam contemplados com determinados direitos em leis. Seria possível discutir imunidades a sistemas de responsabilidades, tema muito atual no que tange ao combate à corrupção. Também é possível debater o alcance de iniciativas como leis da mordaça, ou que criminalizem abusos de autoridade de forma genérica, ou ainda que inviabilizem o exercício de prerrogativas funcionais de delegados de polícia, agentes da Receita Federal, membros de instituições fiscalizadoras, da magistratura ou Ministério Púbico. Há um conjunto de leis que podem entrar num debate sobre o alcance do princípio republicano. Obviamente, sempre há que se considerar o espectro do princípio democrático, que outorga ampla margem de discricionariedade ao legislador. O princípio republicano, em tese, busca alargar as responsabilidades dos agentes públicos e políticos por seus atos.

É necessário tomar muito cuidado com os avanços dos discursos demagógicos no Brasil. Sob o pretexto de agradar a opinião pública de plantão, não se pode suprimir direitos, e aqui falo de um modo mais genérico, transcendendo o tema relacionado ao auxílio-moradia ou direito a honorários por advogados públicos. Os demagogos normalmente aproveitam-se dos momentos de instabilidade para manipular as massas, fomentando aspirações irracionais, e isso lamentavelmente tem ocorrido no Brasil, em várias searas. Geralmente, demagogos utilizam-se de palavras simples, não da técnica, buscando mais agradar os ouvintes do que demonstrar a consistência de sua tese.

Caberá ao STF arbitrar a discussão sobre o que é ou não correto juridicamente quanto à percepção do direito ao auxílio-moradia pelos membros da magistratura federal, no encontro previsto para esta quinta-feira (22/3), e aí, sim, o debate será estritamente jurídico. E devemos sempre confiar na palavra final do STF. É claro que a magistratura federal não pode, ou não deveria, merecer um tratamento dissociado da magistratura nacional, ou mesmo do Ministério Público brasileiro, dado o histórico princípio da simetria que vem pautando as carreiras em sua essência. Não deixa de ser lamentável que os magistrados e membros do Ministério Público estejam passando por um autêntico massacre midiático, em razão de um direito previsto em lei, e que a caça às “bruxas” agora esteja se voltando contra membros de instituições encarregadas justamente de combater a corrupção em nosso país. A confusão entre “direito” e “privilégio”, que se fez neste mercado do escândalo, confundiu a opinião pública, gerando abalo à imagem e à honra de pessoas que tem trabalhado pelo desenvolvimento de um país mais justo.

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