Opinião

Ministra Cármen, por que não pautar ações sobre execução antecipada?

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20 de março de 2018, 16h37

“Há cento e trinta anos, depois de visitar o País das Maravilhas,
Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso.
Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar
Nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela.”

(Eduardo Galeano, “Se Alice voltasse”)

A resistência e as justificativas apresentadas pela presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, para não pautar as ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, que colocam em xeque a decisão do próprio STF de fevereiro de 2016 que, revendo posição anterior, passou a admitir a inconstitucional e esdrúxula figura da execução provisória da pena em decorrência de condenação em segunda instância, não encontram abrigo na Constituição da República e no Estado Democrático de Direito.

Em entrevista à rádio Itatiaia (MG) e à TV Globo, a ministra Cármen Lúcia afirmou que “não há nenhuma razão para que a matéria – prisão em decorrência de condenação em segunda instância – volte agora abstratamente para levar a uma mudança da jurisprudência, desse entendimento”. Para a ministra, já tendo sido a matéria decidida anteriormente (2016), não há razão para que seja rediscutida agora pelo STF.

Na esteira da ministra e dos que querem que prevaleça a prisão em decorrência de condenação em segunda instância, o juiz federal Sérgio Moro decretou (19/3) a prisão do ex-vice-presidente da Engevix após confirmação da condenação e aumento da pena para 34 anos de prisão.

Necessário lembrar, principalmente aos punitivistas de plantão, que o vetusto Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941) bem como leis especiais, já preveem modalidades de prisão provisória (flagrante, temporária e preventiva). Sendo certo que de acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal, “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”.

É preciso destacar que dos cerca de 700 mil presos – terceira maior população carcerária do planeta – 250 mil são de presos provisórios, ou seja, que ainda não foram condenados definitivamente por uma sentença definitiva transitada em julgado. Como se percebe, a prisão provisória – medida de caráter cautelar extrema – tem sido utilizada muito além da sua finalidade. Ao longo dos anos, a prisão preventiva vem se transformando em antecipação da tutela penal, o que consiste em verdadeira afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência.

Destaca-se, ainda, dados da Defensoria Pública em relação aos julgamentos dos recursos dos mais pobres e mais vulneráveis perante os tribunais superiores:

  • 49% dos habeas corpus e recursos em habeas corpus tiveram resultado positivo, com impacto, portanto, na liberdade dos pacientes/recorrentes.
  • 41% dos recursos especiais e agravos em recursos especiais, tiveram resultado positivo.
  • 53% dos REsps e AREsps tiveram resultado positivo e levaram à absolvição, redução de pena ou reconheceram a ilegalidade do regime fixado pelo Tribunal de Justiça.
  • Em 7% dos casos, a pena privativa de liberdade foi substituída por restritiva de direitos.

Tais dados são mais do que suficiente para demonstrar que o julgamento pela segunda instância não pode ser tomado como definitivo para fins de decretação da prisão na modalidade de execução provisória da pena.

Esse quadro demonstra, ainda, que a presunção de inocência, como bem salientado pela Defensoria Pública, não deve ficar restrito ao binômio “absolvição/condenação”, já que outras questões, principalmente as que dizem respeito ao quantum da pena, ao regime inicial de seu cumprimento e/ou a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Todas essas questões causam impacto direto na liberdade dos condenados.

Como se percebe pelo quadro acima, a decisão do STF, tomada em fevereiro de 2016, relativizando o princípio da presunção da inocência e afrontando a Constituição da República, vem prejudicando, principalmente, os mais pobres e vulneráveis que são atingidos pela seletividade do sistema penal.

O fato do STF ter decidido há mais de dois anos em determinado sentido, por si só, não é razão ou justificativa jurídica para que a relevante matéria não seja imediatamente pautada. É notório, assim já se manifestaram, que alguns ministros mudaram seu entendimento. Sendo assim, não há porque insistir em manter uma decisão que prejudica milhares de seres humanos e que já faz parte do passado.

As ações declaratórias de constitucionalidade, propostas pelo Partido Ecológico Nacional e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados postulam a declaração da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei  12.403/2011, que prevê:

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Mais do que isso, a Constituição da República, em título que trata “dos direitos e garantias fundamentais” proclama no seu artigo 5º, inciso LVII que:

Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por tudo, resta saber: Por que não pautar?

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