Contas à Vista

A articulação dos acordos de leniência em um sistema de controle público

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

20 de março de 2018, 8h00

Spacca
Compliance provém do verbo inglês to comply, que dentre vários sentidos possui o de adequar ou de obedecer. Sob certo prisma, esse anglicismo foi introduzido na língua portuguesa a partir da Lei 12.846/12, mais conhecida por Lei Anticorrupção ou Lei do Compliance, regulamentada no âmbito federal pelo Decreto 8.420/2015. Trata-se de uma norma com nítidos traços penais, conforme escrevi em conjunto com Renato Silveira, porém o tema não se esgota nesse campo do conhecimento jurídico.

Sob a ótica do Direito Financeiro, a atividade de compliance se caracteriza como uma forma de controle social do Estado[1]. Como é sabido, o controle público é composto de um conjunto complexo de órgãos, competências e funções que envolvem o Poder Legislativo, o Tribunal de Contas, o Ministério Público e o sistema de controle interno de cada Poder, além de uma plêiade de outros órgãos públicos.

Já o controle social é usualmente identificado com a norma constante do artigo 74, parágrafo 2º, da Constituição, que afirma ser qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato, parte legítima para denunciar irregularidades e ilegalidades perante o TCU. Entendo que essa norma apenas afirma o direito de petição (artigo 5º, XXXIV, “a”, CF) no âmbito desse órgão. A controle social é muito mais amplo do que isso, envolvendo a liberdade de expressão e de imprensa, o direito de associação e muitos outros direitos fundamentais.

É dentro desse sistema de controle social do Estado que se inserem as atividades de compliance criadas pela Lei 12.846/12, não só pelo seu conteúdo, mas também por sua abrangência, tratando-se de uma forma sofisticada de controle que o poder público transferiu para ser exercido pelas empresas, para que estas controlem o comportamento de seu próprio pessoal.

Observa-se, a partir desse lugar, que o sistema de controle público, seja interno ou externo, não deu conta da enorme tarefa que lhe foi incumbida pela Constituição, transferindo por lei às pessoas jurídicas privadas parte da responsabilidade pelo controle das infrações que podem vir a ser cometidas em razão de seu relacionamento com a administração pública. São as pessoas privadas que, em sua autonomia, devem passar a controlar as ações de seus agentes nas relações com o poder público. A lógica é a da autorregulação e da autocontenção do setor privado em seu relacionamento com o setor público, impondo-lhe severas punições para o caso de infrações — constituindo um Direito Financeiro sancionador. Pode-se dizer, com alguma atecnicidade, que o Estado terceirizou uma parte do sistema de controle para as empresas, que devem se autofiscalizar, caracterizando-se como um dos aspectos contemporâneos do controle social. É como se o Estado dissesse às empresas: “Previne o teu pessoal nas relações com o meu pessoal, a fim de evitar que caiam na tentação da corrupção, de lado a lado”. Daí por que se afirma que as empresas devem se autorregular, ou seja, criar as normas internas para evitar o efeito danoso combatido pela lei. E o foco da autorregulação é a autocontenção, ou seja, conter os agentes privados da tentação de burlar os procedimentos normativos, de tal forma a dificultar a obtenção de vantagens indevidas.

Observe-se que a adoção dos sistemas de compliance não gerará, por si só, a indenidade punitiva, porém, seguramente, acarretará minoração do risco empresarial e será levada em consideração no caso de identificação de irregularidades pelo poder público[2]. Quanto melhor for o sistema de compliance adotado pelas empresas, menor será o risco e menor deverá ser a pena, em caso de eventual irregularidade[3]. Todavia, por melhor que seja esse sistema, o risco de corrupção sempre existirá, pois, por sermos humanos, queremos sempre potencializar nossos prazeres e felicidade, e minorar nosso mal-estar. Se houver um caminho mais fácil para obtenção de uma vantagem, com menor risco de punibilidade, essa alternativa terá grandes chances de ser adotada. E isso poderá ocorrer com o “sinal trocado”, tanto pelo lado das empresas, como pelo lado da administração pública. Afinal, quanto mais detalhada e complexa for a regulamentação de uma atividade, e menor for o risco de sanção, tanto os agentes públicos se aventurarão a criar dificuldades quanto os agentes privados serão estimulados a buscar facilidades. Essa relação é mediada pelo risco da sanção.

Na Lei 12.846/13 foram estabelecidas regras para a responsabilização administrativa das pessoas jurídicas, independentemente da responsabilização criminal pessoal dos envolvidos. Algumas das penalidades são draconianas: a multa imposta pode chegar a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, podendo ser maior caso a vantagem auferida possa ser aferida e supere esse valor (artigo 6º). Na fase judicial, as penas são ainda mais incisivas, pois podem chegar à dissolução compulsória da pessoa jurídica (artigo 19, III), passando pela perda do direito de receber incentivos fiscais, subsídios, subvenções, doações etc. (artigo 19, IV), o que também pode levar a empresa a fechar suas portas, pois essa vedação não impede que seus concorrentes recebam tais incentivos, o que seguramente gerará enorme perda da capacidade concorrencial da empresa penalizada[4].

Aliás, registre-se que a Portaria PGFN 33/18 cria um conjunto de restrições bastante semelhantes para as empresas que tiverem seus débitos fiscais inscritos em dívida ativa da União — só que sem o amparo legal acima constatado. É necessário também estar atento a esses aspectos de compliance essencialmente tributário.

Aqui se inserem os acordos de leniência, cujo perfil os aproxima de uma versão empresarial das delações premiadas[5], este relacionado ao Direito Penal e aplicável à pessoas físicas.

A introdução dos acordos de leniência ocorreu na legislação brasileira no ano 2000, por meio da Medida Provisória 2.055, alterando a Lei 8.884/94, que tratava do sistema de regulação da concorrência econômica, e que deveria ser realizado com o braço administrativo daquele sistema, que era a Secretaria de Direito Econômico (SDE), independentemente de aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (artigo 35-B, parágrafo 3º), ao qual competia apenas a verificação do cumprimento do acordo. A intenção era a redução da pretensão punitiva dos acusados desde que, por meio desse acordo, fosse possível identificar a participação de coautores e também facilitasse a comprovação da imputação sob análise (artigo 35-B, I e II), embora não fosse permitida sua utilização em benefício das pessoas ou empresas que estivessem sendo objeto da investigação (artigo 35-B, parágrafo 1º). A ideia era a busca de informações por terceiras pessoas implicadas ainda não alcançadas pela investigação.

Essa legislação foi revogada pela Lei 12.529/2011, que manteve a figura do “programa de leniência”, em que a restrição supramencionada foi mitigada, pois passou a ser permitida sua utilização em benefício das pessoas ou empresas que estivessem sendo objeto da investigação, desde que cumpridos certos requisitos (artigo 86 e seguintes). A lógica que preside essa colaboração é a de favorecer quem primeiro tocar o apito (whistleblowing) denunciando o esquema fraudulento[6].

No Brasil, os acordos de leniência encontram-se na Lei 12.850/2013, com o nome de colaboração premiada (artigo 3º). E também estão presentes na Lei da Compliance ou Anticorrupção (artigo 16 e seguintes).

Seu foco é regular a celebração desse tipo de acordo com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos ou fatos investigados, desde que colaborem efetivamente com as investigações. Busca-se a identificação dos demais envolvidos na infração, ou, de forma célere, a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação (artigo 16).

Trata-se de um debate assaz interessante. Não é possível deixar esses acordos apenas ao alvedrio de órgãos de controle internos (como pretendido pela MP 703/15, cujos efeitos foram cessados sem aprovação do Congresso). São necessárias a publicidade e a transparência, pois é preciso disseminar a informação e disponibilizar o controle[7]. E deve-se também ter bastante atenção quanto às fórmulas que devem ser adotadas para sua revisão/anulação.

O fato é que em um país onde existem diversos órgãos de controle, dispostos em diferentes níveis federativos, a complexidade do sistema pode até mesmo inviabilizar a realização de acordos de leniência, transformando-os em (mais) uma norma sem aplicabilidade.

A empresa interessada em fazer um acordo de leniência deve procurar quais órgãos para firmá-lo? Esse é o ponto central da questão, pois pode envolver um conjunto não harmônico de exigências apresentadas por diversos órgãos, tais como a AGU, o Ministério da Transparência e CGU, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal. Haverá uma negociação centralizada? Quem organiza e faz cumprir o acordado? Além disso, o Poder Judiciário aceitará os termos do ajuste, ou entenderá que se trata de um caso de indisponibilidade do interesse público, sendo incabível a leniência?

A situação se torna ainda mais complexa em uma federação com o formato da brasileira, na qual todos os órgãos de controle estaduais podem vir a apresentar outras exigências para respeitar o acordo de leniência firmado no âmbito federal. Entram em cena as Procuradorias-Gerais dos estados, o Ministério Público Estadual e as Controladorias Internas estaduais, além do Tribunal de Contas do Estado; e mais, a depender no alcance do que tiver sido acordado, pode envolver os Tribunais (estaduais) de Contas dos Municípios, ou do específico município (que existem apenas em SP e RJ). Com tantos órgãos envolvidos, todos autônomos e constitucionalmente competentes para dispor sobre a matéria (seja de forma plena ou parcial), será necessário criar uma força-tarefa federativa para permitir que tais acordos venham a ser validados perante todo o sistema de controle público brasileiro.

É imperioso que sejam criados mecanismos institucionais que permitam o diálogo intraestatal para coordenar esses acordos, sob pena de sua completa ineficácia; é necessário que a pessoa privada possa negociar em bloco com o Estado, aqui entendido como o governo nacional, e não de forma fracionada em diferentes órgãos, em distintos níveis federativos. Da forma atual, as exigências se superpõem e se multiplicam, criando um ambiente de insegurança jurídica que não se justifica e que inviabiliza o instituto. Afinal, se se trata de um instituto útil, como creio, deve-se viabilizá-lo e não solapar sua existência.

É necessário solucionar o impasse já criado, pois diversos acordos de leniência pendem de confirmação em vários órgãos isoladamente considerados. Se tal tipo de coordenação intraestatal não for criada, ninguém mais irá tocar o apito (whistleblowing) denunciando o esquema fraudulento — ou perderá o fôlego, apitando em vão. Pensando bem, será que há interesse real em resolver essa situação? Ou é apenas um exercício de retórica?


[1] Essa ideia foi exposta em muito breves linhas no texto: Scaff, Fernando Facury. Controle público de projetos de infraestrutura. In: Bercovici, Gilberto; Valim, Rafael (orgs.). Elementos de direito da infraestrutura. São Paulo: Ed. Contracorrente, 2015. p. 277-304.
[2] Ver artigo 42 do Decreto 8.420/2015, que trata da avaliação do “Programa de Integridade”, que é a pauta mínima do que deve conter o programa de compliance da empresa.
[3] Silveira, Renato de Mello Jorge; Saad-Diniz, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 322-323.
[4] Sobre esse tema, ver: Scaff, Fernando Facury. Tributação, livre concorrência e incentivos fiscais. In: Nusdeo, Fábio (org.). O Direito Econômico na atualidade. São Paulo: RT, 2015. p. 301-320; e também: Scaff, Fernando Facury. Efeitos da Coisa Julgada em matéria tributária e livre concorrência. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte: Fórum, v. 13, p. 141-164, jan.-mar-2006.
[5] Vê-se “delação premiada” no Brasil desde a Lei 8.072/90, conhecida por Lei dos Crimes Hediondos (artigo 8º, parágrafo único).
[6] Essa ideia, no âmbito da delação premiada, denominada whistleblowing, está mencionada em Silveira, Renato de Mello Jorge; Saad-Diniz, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 345.
[7] Diversos projetos de lei encontram-se em trâmite no Congresso Nacional visando regular essa questão, dentre os quais se destacam os PLs 5.208/16, 4.703/16 e 3.636/15.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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