Opinião

O artigo 1.015 do CPC em destaque: o STJ e a construção jurídica

Autor

  • Ronaldo Kochem

    é sócio do Souto Correa Cesa Lummertz & Amaral Advogados mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Global Rule of Law and Constitutional Democracy pela Universidade de Gênova (Itália).

19 de março de 2018, 16h15

Introdução
Em acórdão publicado no dia 28 de fevereiro, o STJ novamente trata do rol do artigo 1.015 do CPC, que prevê as decisões contra as quais é cabível agravo de instrumento.

No acórdão da Proposta de Afetação no Recurso Especial 1.704.520/MT, a corte afetou recurso para julgamento como recurso repetitivo com a seguinte questão jurídica: “Definir a natureza do rol do art. 1.015 do CPC/15 e verificar possibilidade de sua interpretação extensiva, para se admitir a interposição de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que verse sobre hipóteses não expressamente versadas nos incisos de referido dispositivo do Novo CPC”.

O acórdão impulsiona ainda mais o debate já existente sobre o cabimento de agravo de instrumento fora das hipóteses previstas em lei e os efeitos de decisões tais como a do Recurso Especial 1.679.909/RS, que apresentam um argumento analógico para sustentar nova hipótese de cabimento. O STJ parece estar se propondo a decidir mais sobre a recorribilidade imediata da decisão que define a competência relativa. O tema de afetação é mais amplo. Envolve a natureza do rol do artigo 1.015 do CPC e a possibilidade de construção jurídica de novas hipóteses de recorribilidade imediata.

O presente ensaio se propõe a analisar o julgamento já feito pela 4ª Turma a respeito do mesmo tema e, com um apoio teórico específico, sugerir alguns mecanismos processuais aptos a darem conta da atividade criativa do STJ, posta em evidência na afetação do tema para julgamento como recurso especial repetitivo.

Recurso Especial 1.679.909/RS e as questões em aberto
Recentemente, a 4ª Turma do STJ decidiu, no julgamento do Recurso Especial 1.679.909/RS, pela “interpretação analógica ou extensiva” da hipótese recursal do inciso III do artigo 1.015 do CPC. Com isso, concluiu pelo cabimento de agravo de instrumento contra decisão que “define a pretensão relativa à incompetência relativa”.

O argumento a favor da analogia baseou-se em um juízo de semelhança entre a decisão que define a incompetência relativa e a decisão que rejeita a alegação de convenção de arbitragem. A semelhança configurar-se-ia pela existência de uma “mesma ratio”, identificada na intenção de “afastar o juízo incompetente para a causa, permitindo que o juízo natural e adequado julgue a demanda”. Já a justificação para o uso da analogia, essa foi feita por argumentos sistemático, consequencialista e doutrinário.

Muito embora o tema da ampliação do rol do artigo 1.015 do CPC esteja sendo objeto de franco debate na doutrina processual e na jurisprudência e conquanto tenha sido bem argumentado o acórdão que julgou o recurso especial, alguns problemas processuais surgem da decisão. Problemas esses que poderiam ter sido prevenidos no julgamento do caso e que podem ser agora remediados.

Com efeito, está-se diante de situação peculiar em que há decisões conflitantes, algumas entendendo que o rol não poderia ser ampliado pelo Judiciário, outras entendendo pela possibilidade.

Além disso, há casos individuais em que as partes não recorreram imediatamente contra decisão que definiu a competência em razão da ausência de previsão legal, ou que recorreram e tiveram seus agravos de instrumento inadmitidos em decisões já cobertas pela preclusão. Nesses casos, a recorribilidade por meio de apelação é adequada, mesmo se o STJ chegar à conclusão de que o recurso cabível era o agravo de instrumento? A confiança na não interposição de recurso pela inexistência de previsão legal expressa deve ser tutelada?

Ainda, considerando o Recurso Especial 1.679.909/RS, hoje se tem dúvidas sobre qual o entendimento que se deverá seguir — seja pelo fato de a forma de julgamento do caso não estar incluída nos incisos do artigo 927 do CPC, seja pelo fato de que as demais turmas do STJ também têm competência para interpretar o artigo 1.015 do CPC.

Essa decisão, ainda, não apresenta justificação de segundo e terceiro nível (é dizer, justificar a razão de os argumentos utilizados haverem de ser utilizados, e não outros, com base em procedimentos, preferências e, em última análise, em um código interpretativo claro sobre como o CPC deverá ser interpretado)[1], o que é um fator gerador de instabilidade, pois o exame de outros argumentos, em novo momento, poderá alterar o posicionamento inicial da corte.

Parece que a afetação do tema ao julgamento como recurso especial repetitivo ocorre em boa hora. Além disso, é promissor o fato de a questão jurídica delineada ser mais abrangente, pois o julgamento poderá ser capaz de estabelecer uma diretiva interpretativa geral para o tema da recorribilidade no novo código.

A construção jurídica do STJ
Dada a estrutura argumentativa do acórdão do STJ no Recurso Especial 1.679.909/RS — que partiu de uma premissa sobre a ausência de norma autorizando o agravo de instrumento e que concluiu enunciando norma autorizando esse recurso —, quer nos parecer que a corte utilizou um determinado significado do termo “interpretação”. Referiu-se justamente à interpretação criativa, ou construção jurídica.

Conforme tem apontado a Teoria do Direito[2], o termo “interpretação”, referindo-se ao produto de uma atividade interpretativa, tem três possíveis significados: interpretação cognitiva, no sentido de detecção dos diversos significados que podem ser atribuídos a um texto normativo (e, por isso, dificilmente realizada em juízo, se não apenas como passo anterior à interpretação decisória ou criativa); interpretação decisória, entendida como a escolha de um dos possíveis significados do texto normativo entre os diversos significados detectados por uma exaustiva interpretação detecção; e, finalmente, interpretação criativa, compreendida como a escolha de um significado distinto daqueles detectados pela exaustiva interpretação detecção.

Em um discurso justificativo, como o das decisões judiciais no Estado Constitucional, a interpretação criativa ocorre por um processo que se denomina construção jurídica, entendido como tal o estabelecimento de normas não expressas (implícitas) a partir de normas expressas (explícitas).

Dadas as considerações acima, é possível se concluir que, no Recurso Especial 1.679.909/RS, o STJ justamente fez uma construção jurídica: enunciou a norma explícita reconstruída a partir do inciso III do artigo 1.015 do CPC e, passo seguinte, argumentou pela construção de uma hipótese recursal não prevista no código.

Além disso, a questão afetada para julgamento como Recurso Repetitivo 1.704.520/MT parece também ser justamente esta: a possibilidade de construção jurídica de novas hipóteses recursais de agravo de instrumento. Por exemplo, pode-se ler no voto do ministro Og Fernandes que, “[d]e fato, encontra-se nacionalmente estabelecida controvérsia sobre a possibilidade de se atribuir às disposições do art. 1.015 do CPC/2015 interpretação extensiva, a fim de integrar às hipóteses ali preconizadas outras espécies decisórias, que possibilitem acesso adequado e útil à instância recursal das interlocutórias de primeiro grau” (grifou-se).

A relevância das considerações teóricas acerca da distinção entre interpretação decisória e construção jurídica nos parece grande para a solução dos problemas deixados em aberto pelo STJ.

Entre insegurança e segurança no processo civil
“Certa” ou “errada”, mais ou menos “adequada” ao sistema de normas processuais, a solução dada pelo STJ no Recurso Especial 1.679.909/RS e a que será dada no julgamento do Recurso Especial 1.704.520/MT têm implicação direta na segurança do sistema de preclusões.

A partir da distinção entre interpretação jurídica decisória e interpretação jurídica criativa, ou construção jurídica, e dado o caráter do processo civil de instrumento para a tutela do direito — no que vai incluído o Princípio à Segurança Jurídica — em seus aspectos particular (solução do caso) e geral (orientação)[3], parece-nos ser necessário adotar alguns mecanismos processuais para o presente caso e para outros casos envolvendo construção jurídica.

Possíveis soluções
Em primeiro lugar, a partir do Princípio da Segurança Jurídica e da Isonomia, pode-se construir regras de transição entre um determinado contexto normativo e outro.

Conforme apontam Antonio do Passo Cabral[4] e Fredie Didier Jr.[5], a adoção de regras de transição é um dever do Estado-juiz frente à passagem de uma posição estável para novas posições jurídicas. Reconhece-se o direito de adaptação dos jurisdicionados por meio de regras que minimizem o impacto da quebra da confiança.

E dado que, no presente caso, há um reconhecimento pelo próprio STJ de que a atividade em questão não se limita a escolher entre um dos significados possíveis ao artigo 1.015, inciso III do CPC, parece-nos que a utilização das regras de transição se impõe para prevenir a insegurança no sistema de preclusões. A permissão da interposição de agravo de instrumento contra decisões não expressamente previstas no rol do artigo 1.015 do CPC representa uma quebra da confiança, a qual deve ser remediada por meio de regras de transição.

Uma possível regra de transição, por exemplo, poderia ser justamente o reconhecimento expresso da possibilidade de interposição de ambos os recursos, apelação e agravo de instrumento, contra decisões fora do rol do artigo 1.015 do CPC[6].

Essa regra de transição, inclusive, pode ser retirada da interpretação do acórdão de afetação do Recurso Especial 1.704.520/MT. A decisão dos ministros pela não suspensão dos processos em curso teve a justificativa de que o prosseguimento dos agravos de instrumento não traria prejuízos e, de outro lado, que obstar a interposição de recursos fora do rol do artigo 1.015 do CPC, sim, seria capaz de causar prejuízos aos jurisdicionados.

Uma forma de interpretar a fundamentação dada no acórdão de afetação, coerente com os Princípios da Segurança Jurídica e da Igualdade, é a de que a corte decidiu mais do que pela não suspensão dos processos em curso, decidindo também pelo estabelecimento da regra de transição segundo a qual devem ser aceitos ambos os recursos até que haja o julgamento do recurso repetitivo sobre o tema.

Em segundo lugar, partindo da já demonstrada pressuposição do julgador consciente de sua atividade criativa, poder-se-ia dizer que, em casos envolvendo construção jurídica, a corte deveria se abster da realização da alteração normativa de uma só vez. Recomendável seria a realização de um julgamento-alerta[7] a respeito da possível prolação de decisão com essa conclusão, ou de uma sinalização[8], em ambos os casos evitando aplicar diretamente a “nova norma” ao caso concreto.

Em terceiro lugar, dado que o tema processual é de competência de diversas turmas de diferentes seções do STJ, e que a questão de direito tem evidente relevância e grande repercussão social, a corte poderia de ter levado — já na primeira oportunidade — o Recurso Especial 1.679.909/RS para julgamento em incidente de assunção de competência, de competência da corte especial.

Com esse mecanismo, não apenas se daria um marco temporal claro a partir de quando passou a viger a nova regra processual, como também se teria o efeito de diminuir a insegurança com relação à possibilidade (fática) de outras turmas e outros tribunais decidirem de forma distinta.

A afetação do Recurso Especial 1.704.520/MT para julgamento como recurso repetitivo também responde à mesma preocupação. O próprio acórdão de afetação é claro ao indicar a necessidade de prevenir a divergência jurisprudencial da corte.

O que se sugere neste breve artigo tem um duplo aspecto: particular aos casos examinados e geral para o caso de construções jurídicas.

Quanto ao Recurso Especial 1.679.909/RS, entende-se que a decisão representa uma quebra de confiança, carecedora de tutela. Nesse sentido, ainda que o STJ não tenha estabelecido regras de transição, nada impede que os magistrados de casos futuros tutelem a confiança do jurisdicionado por meio do reconhecimento de regra de transição que receba o recurso de apelação sobre hipóteses fora do rol do artigo 1.015 do CPC, mesmo quando a jurisprudência se posiciona no sentido do cabimento de agravo de instrumento. Isso até que haja uma consolidação do entendimento.

No que diz respeito ao Recurso Especial 1.704.520/MT, como acima apontado, quer parecer que o STJ realizou o alerta de que existe dúvida sobre o cabimento de recurso de agravo de instrumento fora das hipóteses do rol do artigo 1.015 do CPC e estabeleceu uma regra de transição: a possibilidade de insurgir-se contra decisões fora do rol legal por meio de agravo de instrumento e apelação, até o julgamento do recurso repetitivo.

Quanto a outros casos de construção jurídica, em geral, propõe-se que os mecanismos processuais aptos para a tutela do direito em situações de transição normativa sejam utilizados expressamente pelas cortes. Tendo em vista a distinção entre interpretação decisória e interpretação criativa, os tribunais não podem não decidir sobre as situações de incerteza criadas por suas decisões judiciais (aqui, a impossibilidade é jurídica, não fática).

A construção jurídica, embora não seja o único caso, é sempre um tipo de alteração normativa, de modo que o processo civil, pelo menos para esses casos, deve ter soluções aptas a tutelarem o indivíduo na alteração do contexto normativo. Assim, ganha relevo a utilização de mecanismos tais como a criação de regras de transição, o julgamento-alerta, a sinalização e a assunção de competência.


[1] CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’interpretazione giuridica. Bologna: Il Mulino, 2007, pp. 78 e ss.; KOCHEM, Ronaldo. Racionalidade e Decisão – A fundamentação das decisões judiciais e a interpretação jurídica. Revista de Processo, a. 40, v. 244, pp. 59-83, jun./2015.
[2] O exame a seguir baseia-se em GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011, pp. 13-37 e pp. 155-163.
[3] MITIDIERO, Daniel. A Tutela dos Direitos como Fim do Processo Civil no Estado Constitutional. Revista de Processo, a. 39, v. 229, pp. 51-74, mar./2014.
[4] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas, 2ª ed., Salvador: JusPodivm, 2014, p. 561.
[5] DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 17ª ed., Salvador: JusPodivm, 2015, p. 143.
[6] Cfr. Marcelo Pacheco Machado, https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/tenho-que-agravar-de-tudo-agora-sob-pena-de-preclusao-17112017.
[7] CABRAL, Antonio do Passo. A técnica do Julgamento-Alerta na Mudança de Jurisprudência Consolidada. Revista de Processo, a. 38, v. 221, jul./2013.
[8] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 236-243.

Autores

  • Brave

    é sócio do Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Global Rule of Law and Constitutional Democracy pelas universidade de Gênova (Itália) e de Girona (Espanha).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!