Direito Civil Atual

A irreparabilidade do dano evitável no Direito Civil brasileiro (parte 3)

Autor

  • Daniel Pires Novais Dias

    é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio doutor em Direito com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo na Alemanha (2015).

19 de março de 2018, 8h10

1. Introdução
A regra da irreparabilidade do dano evitável (ride) tem fundamento legal no artigo 403 CC, como apresentado na primeira parte da presente trilogia. Na segunda coluna, foi abordada a aplicação dessa regra no Direito brasileiro. Na presente e última parte, analisa-se qual é a natureza jurídica da irreparabilidade do dano evitável, ou seja, o que essa regra representa, qual é o seu significado no sistema jurídico-civil brasileiro vigente.

A natureza jurídica da irreparabilidade do dano evitável é uma questão ainda sem solução satisfatória no Direito brasileiro e também em outros ordenamentos jurídicos em que norma análoga vigora. Na Inglaterra, por exemplo, esse tema sofre da ausência de análises teóricas e críticas. Segundo o doutrinador inglês Michael Bridge, a base jurídica do mitigation of damages é “obscura”, havendo “pouco a ser achado na literatura jurídica ou nos casos decididos”1.

No Brasil, a doutrina majoritária considera a irreparabilidade do dano evitável como uma sanção decorrente da violação do dever do credor, fundado na boa-fé (artigo 422 CC), de evitar o próprio dano. Na presente coluna, em termos muitos breves, essa posição majoritária é refutada e é apresentada brevemente a tese de que a irreparabilidade do dano evitável é um critério de imputação objetiva2.

2. Da ride como sanção por violação do dever de atuar segundo a boa-fé; crítica
A tese que fundamenta a irreparabilidade do dano evitável no dever dos contratantes de guardar a boa-fé objetiva, previsto no artigo 422 CC, afirma que, diante da inexecução do devedor, o credor deve evitar o próprio dano, pois essa conduta estaria de acordo com a “forma cooperativa” que a boa-fé exige das partes em uma relação contratual. Essa posição foi aprovada pelas jornadas de Direito Civil no Enunciado 169 ao artigo 422 CC: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

Esse entendimento se baseia na percepção de que a conduta do credor inadimplido de não evitação culposa do próprio dano elevaria desnecessariamente o valor da indenização, o que violaria os interesses do devedor inadimplente, sendo assim, portanto, contrário à boa-fé.

Essa percepção, contudo, não deve ser seguida. Em primeiro lugar, é questionável a própria ideia de que seria contrária ao Direito a “oneração” do devedor inadimplente com o agravamento da pretensão indenizatória do credor. Em verdade, é inadequado “qualificar o desencadeamento de pretensões indenizatórias como lesão juridicamente reprovada”, porque a oneração do devedor com essas pretensões é consequência (também) do inadimplemento do próprio devedor. Sob essa perspectiva, mesmo que o credor não tenha evitado o próprio dano, essa oneração do devedor pode ser vista como “querida pelo ordenamento jurídico”3.

Além disso, com o reconhecimento de que o artigo 403 CC estabelece a irreparabilidade do dano evitável, não há mais como pensar que, com o comportamento culposo de não evitação do próprio dano, o devedor inadimplente seria onerado com pretensões indenizatórias para além da sua “quota” de responsabilidade. Isso porque a pretensão indenizatória do credor, desde o início, já é limitada ao efeito direto e imediato, ou seja, a sua pretensão indenizatória, desde o seu surgimento, já não abrange o dano evitável. Dessa maneira, a conduta do credor inadimplido de não evitação culposa do próprio dano implica desvantagem apenas para o próprio credor. Esse comportamento, portanto, não pode contrariar a boa-fé, pois o dever de atuar segundo a boa-fé é imposto em função dos interesses da outra parte no contrato, e não para proteger os interesses do contratante em relação a si mesmo4.

Por fim, essa linha de entendimento majoritária vai longe demais sob a bandeira da “correção” e da “bondade” do credor inadimplido. Mesmo que se concorde com o pressuposto de que, em face de um inadimplemento, o credor não pode agir como se estivesse “em guerra” com o devedor, a irreparabilidade do dano evitável, nessa linha de entendimento, representaria não só a imposição de o credor ser leal com quem não foi leal com ele, mas também de ele suportar sozinho um dano decorrente de “deslealdades” de ambas as partes — do inadimplemento contratual do devedor e da não evitação de dano do credor. O argumento de que se deve agir segundo a boa-fé não é, portanto, suficiente para justificar a imposição de uma sanção assim tão drástica5.

3. Da ride como critério de imputação objetiva
A irreparabilidade do dano evitável somente pode ser compreendida adequadamente como um critério de imputação objetiva. O devedor inadimplente não responde pelo dano que o credor poderia ter evitado, porque esse comportamento interrompe o nexo objetivo de imputação entre o devedor inadimplente e o dano. O dano evitável está, portanto, fora do nexo de imputação objetiva previsto pelo artigo 403 CC.

Na responsabilidade civil, a imputação objetiva corresponde ao nexo objetivo de atribuição de responsabilidade a uma pessoa por um dano que ela causou6. O qualificativo “objetivo” é utilizado aqui em contraposição a subjetivo, ou seja, em oposição a critério ligado à culpa do agente causador do dano. Além de pressuposto da responsabilidade, a culpa pode funcionar também como um elemento de limitação da extensão da responsabilidade. Esse é o caso do Direito francês, na hipótese de inexecução obrigacional negligente, em que o devedor inadimplente responde apenas pelos danos que ele previu ou podia ter previsto no momento da celebração do contrato (artigo 1231-3 CC francês)7. Diferentemente, o Direito brasileiro, seguindo nesse ponto a linha alemã, prevê a culpa do devedor apenas como pressuposto da responsabilidade obrigacional (artigo 392 CC), mas não como um elemento de limitação da sua extensão. Por outro lado, para os casos de inadimplemento doloso, o Brasil dispõe, assim como a França (artigo 1231-4 CC francês), da previsão de que o devedor inadimplente responde apenas pelo efeito direto e imediato da sua inexecução (artigo 403 CC). Essa é uma delimitação objetiva da responsabilidade do devedor inadimplente, porque não se baseia no elemento subjetivo da previsibilidade do dano por parte do devedor8.

Essa previsão de limitação da responsabilidade do devedor inadimplente à consequência direta e imediata da sua inexecução foi sendo historicamente preenchida por diversos critérios, como os fornecidos pelas teorias da necessariedade e da adequação. Contudo, apesar de esses critérios serem comumente chamados de causais, eles não se confundem com o nexo de causalidade (fático, material ou naturalístico), porque esse corresponde à cadeia infinita e indistinta de eventos que tem entre si uma relação material de causa e consequência. No Direito, essa relação de causalidade funciona especialmente como pressuposto de responsabilidade e a questão sobre a sua existência é determinada pela teoria da equivalência9.

Nesse sentido, ao contrário do que a literatura brasileira majoritária deixa entender, as referidas teorias utilizadas para dar conteúdo ao artigo 403 CC não estão voltadas para identificar a relação de causalidade, mas, sim, a pressupõem. Elas mantêm alguma relação com a causalidade, pois procuram identificar, a partir da sequencia fática de eventos decorrentes de um determinado evento danoso, algum outro evento que funcione como limite da responsabilidade do lesante. Por esse motivo, uma parte da doutrina adota, para ambas os vínculos, nomenclaturas baseadas no termo “causalidade”: a relação entre eventos determinada pela teoria da equivalência é chamada de causalidade fática; e a relação entre eventos determinada por teorias como a da adequação é chamada de causalidade jurídica10.

Contudo, em um movimento de busca por uma maior precisão terminológica, a doutrina mais moderna, especialmente na Alemanha, não mais adota a expressão “causalidade jurídica”, mas, sim, “imputação objetiva” (objektive Zurechnung) 11 ou “imputação de dano” (Schadenszurechung)12. De fato, chamar de causais as teorias que se propõem a solucionar o problema de imputação de dano leva a confusões e equívocos. A própria resistência da doutrina brasileira em extrair a irreparabilidade do dano evitável do artigo 403 CC advém da percepção que esse dispositivo trataria da causalidade e que, portanto, seria algo diferente e incompatível com a irreparabilidade do dano evitável, porque essa regra leva em conta a análise (subjetiva) do comportamento do credor.

Por exemplo, segundo Christian Lopes, se a irreparabilidade do dano inevitável fosse justificada pelo nexo de causalidade, o credor não teria direito à indenização não porque o credor poderia ter evitado o próprio dano, mas porque o dano evitável seria um efeito indireto e imediato da inexecução do devedor (artigo 403 CC)13. Para justificar essa sua posição, Lopes recorre à célebre análise de Pothier ao caso da compra e venda da vaca pestilenta: “A lição de Pothier acerca da venda de uma vaca contaminada, que causa a perda do rebanho e o fato de ficar a terra inculta, é geralmente referida como um dos primeiros reconhecimentos da mitigação pela doutrina francesa. No entanto, Pothier analisava o nexo de causalidade para formular sua teoria de que os efeitos diretos e imediatos deveriam ser analisados como consequência necessária do inadimplemento. Em outros termos, a análise do problema foi realizada sob a ótica da causalidade e não do comportamento que se esperava do credor”14.

O problema desse raciocínio é que, como apresentado na primeira coluna desta trilogia, ao analisar o caso da vaca pestilenta, Pothier não trabalhava em termos causais, mas, sim, enfrentava o problema da fixação de limites à responsabilidade do devedor pela inexecução de uma obrigação15. Os pontos de partida dele eram a constatação (fática) de que da inexecução de uma obrigação pode decorrer uma série infinita de consequências danosas e a constatação (jurídica) de que não é acertado que se atribua uma responsabilidade ilimitada ao devedor inadimplente, ou seja, apesar de haver nexo de causalidade (esse era um pressuposto implícito do argumento), as consequências do inadimplemento deveriam ser limitadas. Para restringir a responsabilidade do vendedor da vaca pestilenta pelos danos decorrentes da falta de plantio, Pothier de fato afirmou que esses danos não deveriam ser indenizados pelo devedor por eles não serem necessários. Contudo, ele concluiu que esses danos não eram necessários, precisamente porque o credor poderia ter adquirido outros animais para fazer o plantio, ou mesmo arrendado as terras a terceiro, ou seja, porque o credor lesado poderia ter adotado medidas para evitar a ocorrência do próprio dano. A desnecessariedade do dano e a sua evitabilidade pelo lesado não se opunham nessa célebre lição de Pothier, pelo contrário elas coincidiam em conteúdo.

Além disso, como foi apresentado na primeira coluna, historicamente, a hipótese de evitabilidade do dano pelo credor esteve sempre ligada ao limite da responsabilidade do devedor à consequência imediata e direta da inexecução, seja no Direito francês, italiano e brasileiro.

4. Conclusão
A natureza jurídica da irreparabilidade do dano evitável, imposta pelo artigo 403 CC, é a imputação objetiva. A posição majoritária que vê na ride a sanção por violação de dever de atuar segundo a boa-fé, previsto no artigo 422 CC, deve ser refutada, porque: (i) como o devedor inadimplente já não responde pelo dano evitável, não há necessidade de impor ao credor o dever de evitar o próprio dano; e (ii) o dever do credor, fundado na boa-fé, de evitar o próprio dano não é capaz de justificar a consequência de o credor suportar sozinho todo o dano evitável, sendo que esse dano foi resultado tanto do inadimplemento contratual do devedor, quanto da não evitação do credor.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


1 Michael G. Bridge. Mitigation of damages in contract and the meaning of avoidable loss. In: LQR, vol. 105. London: Stevens & Sons Limited, 1989, p. 400.
2 Para um desenvolvimento mais detalhado dessas questões, ver: Daniel Dias. A corresponsabilidade do lesado no direito civil: da fundamentação da irreparabilidade do dano evitável. Tese de doutorado. USP. 2016, p. 176 e ss.
3 Fazendo afirmação análoga à luz do parágrafo 254 BGB — dispositivo em que o dano evitável é regulado no Direito alemão —, ver: Dirk Looschelders. Die Mitverantwortlichkeit des Geschädigten im Privatrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 185.
4 Dirk Looschelders, Schuldrecht I, nm. 60, p. 27.
5 Nesse sentido, ver Dias, A corresponsabilidade, op. cit., p. 187.
6 Sobre a imputação objetiva na responsabilidade civil, ver: Karl Larenz, Zum heutigen Stand der Objektive Zurechnung im Schadensersatzrecht, in Festschrift für Richard M. Honig, 1970, p. 79 e ss.
7 “O devedor só é responsável por perdas e danos previstos ou que podiam ser previstos na conclusão do contrato, salvo quando o incumprimento for devido a negligência grave ou a dolo.”
8 Para mais detalhes, ver: Dias, A corresponsabilidade, op. cit., p. 213 e ss.
9 Para mais detalhes, ver: Dias, A corresponsabilidade, op. cit., p. 213 e ss.
10 Para mais detalhes, ver: Dias, A corresponsabilidade, op. cit., p. 213 e ss.
11 Entre outros, ver: Dirk Looschelders, Schuldrecht I, nm. 983 ss., p. 346 ss.
12 Por todos, ver: Hermann Lange e Gottfried Schiemann. Schadensersatz. 3. ed. 2003, p. 74 e ss.
13 Christian Lopes. Mitigação dos prejuízos no direito contratual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 174.
14 Lopes, Mitigação, op. cit., p. 174-175.
15 Nesse ponto, de maneira expressa, ver: Lílian Neira, La carga del prejudicado de evitar o mitigar el daño, 2012, p. 178 ss.

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    é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio, doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015). Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

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