Opinião

País tem o dever de efetivar regularização de terras quilombolas

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18 de março de 2018, 6h15

Com a Constituição Federal de 1988, houve uma mudança na concepção acerca do tratamento dado às minorias. Passou-se da ideia de assimilação para a de reconhecimento de direitos e respeito às diferenças.

Nesse contexto, deve-se buscar o significado de um instituto segundo a lógica própria do grupo minoritário, e não segundo o entendimento da maioria, ou dos grupos tidos como "civilizados".

Os remanescentes de quilombolas são grupos étnico-raciais, com algum traço de ancestralidade negra, provenientes das comunidades que habitavam os quilombos. Em outras palavras, são grupos que possuem vínculos históricos com a escravidão, e que carregam o estigma da opressão e da violação dos seus direitos, até os dias atuais.

A terra, para os quilombolas, significa muito mais do que uma mera mercadoria. Na verdade, ela é um espaço essencial à sua sobrevivência. A identidade coletiva é formada pelos laços com a terra. Ela possui alto valor afetivo para os quilombolas.

Assim, o reconhecimento do direito a terra para este grupo minoritário faz parte do escopo da regularização fundiária. Ela contempla, outrossim, um conjunto de medidas aptas a garantir o direito dos remanescentes de quilombolas aos espaços necessários à sua reprodução cultural, social e econômica.

Respeita-se, desta maneira, a dignidade da pessoa humana e a pluralidade étnica. A garantia dos direitos dos quilombolas faz parte do patrimônio cultural brasileiro, sendo obrigação do Estado tomar medidas para a sua proteção. O resguardo dos direitos das minorias é de interesse de toda a sociedade brasileira, e não só dos quilombolas.

Nesse diapasão, o Decreto 4.887/2003 tratou do procedimento para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Referido decreto foi questionado no âmbito do STF, em ação direta de inconstitucionalidade, que recebeu o número 3239, proposta pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), nos idos de 2004.

A ADI pedia a inconstitucionalidade do decreto, em virtude da forma pela qual foi regulamentado o procedimento para o reconhecimento das terras quilombolas, ou seja, sem uso de lei formal. Ainda, buscava a declaração da inconstitucionalidade da desapropriação das terras para as comunidades quilombolas. Também, pleiteava a inconstitucionalidade do critério de autoatribuição, ou seja, o reconhecimento pelas próprias pessoas de que são remanescentes de quilombolas. Por fim, questionava o critério de delimitação das terras onde se localizavam os quilombos, uma vez que os próprios interessados ficariam responsáveis pela sua indicação.

Em 8/2/2018, após mais de 13 anos de tramitação, o STF julgou referida ADI improcedente, por maioria. Oito ministros votaram pela improcedência, dois pela procedência parcial e um pela total procedência da ação.

Os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli votaram pela parcial procedência, a fim de que fosse dada interpretação conforme para que, não só as comunidades remanescentes de quilombolas presentes na data da promulgação da CF/88, mas também as que foram suspensas ou perderam a posse em virtude de atos ilícitos, tivessem direito as terras. Fundamentaram, em outras palavras, a necessidade de um marco temporal para o reconhecimento dos direitos dos quilombolas.

O único voto pela total procedência da ação foi o do ministro Cezar Peluso, ao argumento de que o Decreto 4.887/2003 não poderia regulamentar diretamente dispositivo constitucional, mas sim uma lei.

Não obstante, a maioria do STF entendeu que o Decreto 4.887/2003 é constitucional, sem que fosse devida a fixação de um marco temporal para a regularização fundiária das terras quilombolas.

Esta decisão do STF é histórica, na medida em que reconheceu o direito de uma minoria a seu espaço de sobrevivência, essencial à preservação da dignidade humana.

Tal decisão está em conformidade, também, com os diplomas internacionais que tratam dos direitos das minorias, como a Convenção 169 da OIT e a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Decreto 6.177/2007).

Note-se que o único voto pela total procedência da ADI baseou-se fundamentalmente num aspecto formal, qual seja, a falta de uma lei.

Em que pese a existência de normativos que dão suporte ao aludido Decreto, especialmente, o artigo 14, IV, c, da Lei 9.649/1998 e o artigo 2º, III e parágrafo único, da Lei 7.668/1988, verifica-se que referidos diplomas legais cuidam da organização da Presidência da República e dos Ministérios (Lei 9.649/98) e da constituição da Fundação Palmares (Lei 7.668/98).

Já que o único voto pela total procedência da ADI asseverou que há a falta de normativo adequado, seria uma ótima oportunidade para que o Congresso editasse lei específica sobre os direitos dos quilombolas, contemplando as diretrizes tomadas no aludido julgamento, em conjunto com os diplomas normativos internacionais e nacionais já existentes.

Enfim, a regularização fundiária das terras quilombolas insere-se num contexto mais amplo de respeito aos direitos fundamentais das minorias, sendo dever do Estado Brasileiro adotar as medidas para a sua efetivação.

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