Embargos Culturais

O delírio de Brás Cubas e os motivos da proteção ambiental

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de março de 2018, 8h00

Spacca
Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas1, descreveu seu próprio delírio, não sem afirmar que não havia notícias de quem tivesse relatado as próprias alucinações. Delirar é uma forma disfarçada de acertarmos contas com nós mesmos. Ao longo de 20 a 30 minutos, Brás Cubas, o pirrônico narrador inventado por Machado de Assis, que era ainda mais descrente, afirma ter se tornado um barbeiro chinês, que escanhoava um mandarim, e que era pago com beliscões e confeitos. Tornou-se também um livro de Tomás de Aquino e, em seguida, foi arrebatado por um hipopótamo. Por fim, Brás Cubas delirou com um vulto imenso, uma figura feminina, que escapava à compreensão do olhar do humano. Perguntou quem era, e, respondendo à curiosidade do delirante, a figura afirmou ser a Natureza, que era, ao mesmo tempo, mãe e inimiga.

Essa insuspeita passagem de Machado de Assis, menos do que revelar preocupações ambientais, porque essa preocupação é datada, desdobramento mesmo das limitações que o espaço impõe à expansão econômica, é paradoxalmente provocadora. Efeito estufa, biodiversidade, reflorestamento, aumento populacional, buraco na camada de ozônio, desenvolvimento sustentável, compensação ambiental, financiamento de áreas protegidas, gestão compartilhada e escassez de água, entre outras, são categorias desconhecidas pelo criador de Brás Cubas. Uma natureza metafórica, como aparece no delírio de Brás Cubas, se revela como fonte da vida e, ao mesmo tempo, desafio permanente para a continuidade da vida que possibilitou. Afinal, mãe ou inimiga, ou as duas?

O imaginário de Brás Cubas, centrado em nós, e não na natureza, que era uma figura de delírio, é fruto de uma tradição ocidental que nos coloca no centro do universo, medida de todas as coisas, na consagrada expressão de Protágoras. Por causa dessa ilusão conceitual, colocamo-nos no centro de tudo, e não no centro de uma vida particular. Esse antropocentrismo pode traduzir um chauvinismo humano, comparável a idiossincrasias outras, de gênero, nacionalistas, xenófobas. É comportamento típico de quem desenhou Deus a sua imagem e semelhança, ainda que atuando justamente de modo contrário. O que se pode lembrar dessa tradição2?

No Timeu, Platão referiu-se ao homem como ente superior. Aristóteles apontou o natural desejo que temos de conhecimento, traço que nos distinguiria dos animais. Nós humanos seríamos conhecimento, sabedoria, sagacidade. Agostinho concebeu-nos como criaturas abençoadas, presente de Deus, luz. Tomás de Aquino afirmou que excedemos os animais em razão e inteligência: transcendemos as agruras da sobrevivência e obtemos prazer no próprio trabalho. Descartes proclamou a perfeição da inteligência humana. Locke referiu-se a Adão (o homem) como detentor de força e razão. Montesquieu reconheceu em nós conhecimento, enquanto poder, intrínseco à existência. Rousseau diferenciou-nos de outras criaturas, detemos livre-arbítrio, determinado infalivelmente pela razão. Hegel lembrou que temos o poder de nos destruir, condição que os animais não possuem. Tolstoy terminou Guerra e Paz enfatizando que o agente condutor da história não seria o livre-arbítrio, mas a representação humana que fazemos de nossas escolhas. Dostoiévski concebeu um personagem, Ivan Karamazov, conturbado com um estado depressivo que não conseguia explicar, que lhe retirava esperanças de vida, que só valia a partir das expectativas que a individualidade formula.

Machado de Assis não teria como fugir dessa tradição arrogante. O antropocentrismo de Brás Cubas radica nos racionalistas primitivos, que separaram a humanidade da natureza, o mortal do imortal, premissa abraçada pelo cristianismo, que cindiu o mundo físico do universo mental. Sacralizou-se o individualismo, tônica do protestantismo de primeira leva, ambientado no luteranismo e no calvinismo, a aceitarmos os postulados da sociologia religiosa weberiana. Essa natureza, mãe e inimiga, seria relativizada e subordinada, objeto de controle, e não de comunhão. A humanidade detentora da ciência arroga-se protagonista dessa messiânica tarefa: precisaria dominar uma natureza inimiga. Equívoco.

Nossa sobrevivência e prosperidade predicam na qualidade da biosfera e na interdependência de ecossistemas. Deve-se levar em conta também uma racionalidade econômica que prescreve cálculos de custo e benefício. Questões ambientais tenderiam a ser assimiladas pela economia. Uma análise supostamente econômica e racional do meio ambiente se preocuparia com a produtividade, isto é, com a obtenção de maior utilidade com um mínimo de ineficiência ou perda. Aplicaríamos as fórmulas de Bentham e protegeríamos o meio ambiente porque seria economicamente útil.

Há ainda espaços para uma ecoteologia, que acrescentaria justificativas religiosas para a proteção ambiental. É o panteísmo de Spinoza, que identificava Deus na natureza. Tem-se um ambientalismo espiritual. São Francisco de Assis seria o padroeiro dessa ecologia santa, com apologias ao irmão sol, à irmã lua, à irmã água, ao irmão fogo, este último belo, robusto, forte. O ambientalismo passaria a ser captado num contexto bíblico, com reminiscência no Livro de Gênesis (1:26).

Haveria também premissas estéticas. A beleza das montanhas, o pôr do sol e o torvelinho de um riacho são exemplos de forma bambificadora de apreciação. É a idealização devaneadora da natureza, que conheceu seu auge na estética romântica, que festejou o meio ambiente em Keats, Byron, Shelley e Rousseau, o caminhante solitário que fazia devaneios numa Genebra ainda bucólica e pastoral. Tudo, naturalmente, acrescentado por conceituações mais recentes, a exemplo da ecofilosofia radical, da ética ambiental e do reformismo antropocêntrico, onde preponderam autores como Peter Singer, Arne Naess e Richard Routley, os pais fundadores da filosofia ambiental, em ensaios publicado emblematicamente em 1973.

No núcleo do problema, uma tensão entre desenvolvimento econômico e equilíbrio ambiental, traduzido nos conceitos de desenvolvimento sustentável e de gerações futuras. A Lei 9.433/97 indica como objetivo da política nacional de recursos hídricos assegurar-se à atual e às "futuras gerações" a necessária disponibilidade de água. O artigo 225 da Constituição dispõe sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado às presentes e "futuras gerações". Defende-se uma educação ambiental como necessário e efetivo compromisso político para com as "futuras gerações". Essa preocupação é típica do pós-guerra: está na Convenção Internacional de Regulamentação da Pesca da Baleia (1946), na Declaração de Estocolmo (1972) e na Declaração do Rio, princípio 3 (1992). Um autor australiano, Alexander Gillespie, idealizou um ombusdman universal que teria como objeto de proteção essas "futuras gerações".

A tensão do delírio de Brás Cubas enfrenta-se com uma ética do equilíbrio, que tem como certa a premissa que confere validade à preservação da integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. É condição mesma de sobrevivência. É um desacerto comportar-se de outra forma. Machado de Assis não previa essa ambiguidade. Desinteressadamente escreveu também para gerações futuras, problematizando situações futuras, tal como o profeta bíblico de quem se esperava a interpretação de sonhos nunca sonhados.


1 Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W. M. Jackson, 1946, pp. 29 e ss.
2 Explorei essa tema com indicações bibliográficas em “Fundamentos Filosóficos da Proteção Ambiental”, Revista Scientia Juris da Universidade Estadual de Londrina, disponível em www.arnaldogodoy.academia.edu.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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