Diário de Classe

Brasil, quase 30 anos depois... O que é uma Constituição?

Autor

  • Rafael Fonseca Ferreira

    é advogado pós-doutor doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e da Universidade Feevale membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e sócio de Rafael Ferreira & Anadon Advocacia Consultoria e Compliance.

17 de março de 2018, 8h05

Em 1972, Gadamer[1] escreveu um texto sobre a incapacidade para o diálogo onde “pró-vocou” — no sentido de chamar a vocação (humana) de refletir — com algumas questões fundamentais.

A arte do diálogo está desaparecendo? Na vida social de nossa época não estamos assistindo a uma monologização crescente do comportamento humano? Será um fenômeno típico de nossa civilização que acompanha o modo de pensar técnico-científico? Ou será que experiências específicas de autoalienação e de isolamento presentes no mundo moderno é que fazem os mais jovens se calar? Ou será ainda que o que se tem chamado de incapacidade para o diálogo não é propriamente a decisão de recusar a vontade de entendimento e uma mordaz rebelião contra o pseudoentendimento dominante na vida pública?

Essa interpelação inicial é importante porque no Direito, em particular, há uma sensível dificuldade de se recorrer as causas dos problemas, senão diretamente as respostas ou pretensas respostas, sobretudo, para problemas complexos e não conceituais. Nisso, ainda com Gadamer[2], o diálogo hermenêutico, estruturado na dinâmica da pergunta e da resposta, como matriz de concepção de verdade historicamente condicionada pode nos revelar contribuições fundamentais[3].

Também não é por acaso a primazia da pergunta sobre a resposta. A pergunta é sempre o start de qualquer reflexão hermenêutica, na medida em que denuncia a antecipação de sentido e projeta o intérprete em um jogo, por ele não arbitrado, em direção ao encontro com coisa mesma[4].

Nisso, dois elementos são derradeiros para o diálogo: a capacidade de ouvir e a existência de uma linguagem comum entre os participantes; outros fatores podem determinar a impossibilidade de participar no diálogo como a alienação social e política, o dogmatismo e o ceticismo, a indiferença acerca do que se dialoga, o bloqueio da produtividade interpretativa e o fatalismo da conformidade[5].

Um texto é sempre uma pergunta; ele nos interpela e com ele vamos dialogando na medida que nos compreendemos e o compreendemos com a linguagem que nos envolve, isto é, a linguagem que nos dá o sentido comum. No Direito, em tese, numa graduação de cinco anos (e deveríamos continuar depois) estudamos com a finalidade de adquirir uma linguagem comum compartilhada e a partir daí podermos nos mover nesse mundo.

Na base desse mundo, há uma Constituição (1988) com toda a sua carga histórica, social e política. Num dado momento, ela (Constituição) é o “estranho” e para o estranho devemos estar preparados, pois ele sabe como fazer perguntas[6]. Nesse curto período de interpelação e aproximação com a Constituição, buscamos compreender seu sentido (ou não?!), o sucesso dessa empreitada dependerá do modo como nos é/foi apresentada. Este é o ponto: aprendemos ou não a defendê-la?!

O título é uma provocação reflexiva que, de certa forma, recupera em diálogo aquela interpelação lançada já aos 15 anos da Constituição por Lenio Streck: como é possível olhar o novo (texto constitucional de 1988) se os nossos pré-juízos (pré-compreensão) estão dominados por uma compreensão inautêntica do Direito, onde, no campo do Direito Constitucional, pouca importância tem sido dada ao estudo da jurisdição constitucional[7]? Então, eu pergunto hoje (ainda sem respostas), véspera dos 30 anos da Constituição de 1988, se temos algo diferente para dizer sobre Constituição? E no Direito, progredimos ou regredimos?

Disso, seguimos o diálogo: é sabido que a Constituição não pode prescindir da política e do direito. No entanto, é o Direito a condição de possibilidade da própria democracia e da Constituição, ao menos essa parece ter sido a opção. Por isso, talvez seja esse um dos enigmas ainda não desvendados a partir do pacto fundacional de 1988 com o Estado Democrático de Direito no Brasil.

Passados quase 30 anos e ainda imersos em mazelas políticas e jurídicas típicas de pré-CF/88: autoritarismos, protagonismo das relações de poder, estamentos, clientelismo, do direito como instrumento etc., todos dilemas (predadores exógenos e endógenos do Direito) que servem para denunciar que não compreendemos materialmente a Constituição.

E é por aí que trilharam temas de duvidosa constitucionalidade, sem maior estranhamento (e com torcida), alguns deles recentíssimos: o impeachment; a emenda dos gastos públicos; a presunção de inocência transformada em presunção de culpabilidade; a intervenção federal militar no RJ. A Constituição não foi feita para resistir às maiorias eventuais? E o que aconteceu com a jurisdição constitucional?

Com essa mesma Constituição — digo isso porque acredito no Direito e na democracia e, como jurista, não quero perder o bonde da história sem tê-la defendido (aliás, em tempos difíceis, essa tem sido a relevante contribuição da CHD) —, temos a instância de validade e as condições de possibilidade para superar o velho imaginário dominante e assim assentar novas premissas teóricas para uma adequada compreensão dialética entre Constituição e Direito.

Não podemos ceder, ou vamos abdicar do Estado Democrático de Direito. Entendam, segundo Cárdenas Gracia, que la Constitución sólo puede cumplir sus tareas allí donde consiga, bajo cambiadas circunstancias, preservar su fuerza normativa, es decir, allí donde consiga garantizar su continuidad sin perjuicio de las transformaciones históricas, lo cual presupone la continuidad de su identidad[8].

Isso está a indicar que, sempre voltando a Hesse, a força normativa da Constituição está identificada com a sua resistência e preservação de sua identidade, não obstante as transformações históricas. Dito de outro modo, as transformações históricas de uma forma ou de outra, sempre encontram ressonância na Constituição, não o contrário, sob pena de vulnerabilizar sua identidade e sua resistência.

Em suma, a Constituição, mesmo diante das possibilidades de reforma ou alteração, tem o que podemos chamar de “mínimo é”, DNA, a ser garantido mediante autêntico diálogo entre Direito e Constituição. O Direito lhe é a condição de possibilidade. Por ora, enfim, muito temos para dizer o que NÃO é uma Constituição.

Daí porque, no horizonte daquilo que venho me dedicando a escrever nos últimos meses, a legitimidade desse diálogo passa por uma espécie de identificação e enfrentamento do que denomino de crises de compreensão (ou de identidade, talvez) com as quais o Direito precisa lidar, com a finalidade de superar o denunciado velho imaginário dominante e tomar conta de seu papel no constitucionalismo contemporâneo de ofertar resistência às práticas e aos discursos predatórios contra a Constituição: a crise interpretativa, a crise dogmática, a crise do ensino jurídico e a crise funcional. Não darei spoiler neste momento… Fica como pró-vocação.

Mas, de fato, tudo isso tem a ver com a autonomia do Direito, tema que já foi falado aqui neste espaço pelo meu amigo Rafael Oliveira (ver aqui) e que é produto direto das pesquisas e debates da CHD (ver aqui e aqui[9]).

É o Direito como instância de validade, produzido democraticamente, que não pode ser predado pela economia, pela política e pela moral, uma blindagem contra as próprias dimensões que o engendra(ra)m (Streck).

A autonomia do Direito nesse contexto será a principal responsável pela realização da justiça (constitucional) enquanto expressão das práticas cotidianas dos valores públicos que constituem uma sociedade a partir do jurídico[10], que integrado em uma realidade de vida que deliberadamente o instituiu como condição histórico social é capaz de produzir autossubsistência de sentido[11] e onde o homem seja o sujeito do próprio direito e que assuma do/no Direito a responsabilidade vivida (comunitária) no seu sentido[12].

Por essa razão, penso que a (de)predação da Constituição é muito mais um problema de autonomia do Direito (e das condições dessa compreensão) do que meramente um problema político ou econômico, pois a opção pelo Estado Democrático de Direito enquanto tradução da intencionalidade sociocultural em razão da institucionalidade do Direito na história tem, no Brasil, tarefas e compromissos de justiça social e constitucional que não podem ser secundarizados.

Assim, como a política foi protagonista durante séculos e o direito não lhe era relevante ou servia-lhe apenas funcionalmente, o constitucionalismo pós-segunda guerra rompeu com essa tradição[13]. Hoje, a resistência às tensões e violações constitucionais a partir da política, da economia e, por vezes, de movimentos da própria sociedade, ao alvedrio da mediação jurídica, nunca será suficiente para garantir respostas constitucionalmente adequadas.


[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: EDUSF, 2011. p. 243.
[2] Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 12. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: EDUSF, 2012. p. 482.
[3] Cf. FERREIRA, Rafael F. Internacionalização da Constituição: Diálogo hermenêutico, perguntas adequadas e bloco de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016.
[4] MORATALLA, Agustin Domingo. El arte de poder no tener razón: la hermenéutica dialógica de H.G. Gadamer. Salamanca: Publicaciones Universidade Pontifica de Salamanca, 1991. p. 126 et seq.
[5] Cf. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica. Col. Ideias, vol. 7. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005. p. 188-189.
[6] T. S. Eliot, Coros de A Rocha. Coimbra: Tenacitas, 2014.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Quinze anos da Constituição: análise crítica da jurisdição constitucional e das possibilidades hermenêuticas de concretização dos direitos fundamentais-sociais. In. SCAFF, Fernando Facury (org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 125.
[8] Hacia uma Constitución normativa. El significado actual de la Constitución. México: Unam, 1998. p. 99.
[9] Ambos os textos publicados na Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), São Leopoldo: Unisinos. Ao fim do último texto, Oliveira e Trindade destacam as principais e repercutidas contribuições da Crítica Hermenêutica do Direito: a teoria da Constituição adequada aos países de modernidade tardia, a tese da resposta adequada à Constituição, a noção de autonomia do Direito entre outras.
[10] FISS, Owen. A Autonomia do Direito. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Constituição e Crise Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 62.
[11] CASTANHEIRA NEVES, A. O Direito hoje e com Que Sentido? O problema actual da autonomia do direito. Col. Pontos de Vista. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 21.
[12] Id. Ibid, p. 75.
[13] FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la antigüidad a nuestros días. Madrid. Trotta, 2011.

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    é advogado, pós-doutor, doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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