Senso Incomum

O indulto e a Escola do Direito Livre: o STF que vai de zero a cem!

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15 de março de 2018, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Escrevi, ainda em 2015, uma coluna, aqui na ConJur, sobre a Freirechtslehre, a Escola do Direito Livre.[1] De forma breve, retomo:

“[f]undada por Hermann Kantorowicz (1906, A Luta pela Ciência do Direito), essa doutrina defende — atenção! — para a época — a plena liberdade do juiz no momento de decidir os litígios, podendo, até mesmo, confrontar o que reza a lei. O juiz não estaria lançando mão apenas do seu poder decisório, mas, mais do que isso, a sua função de legislador, seu poder legiferante para encontrar aquilo que ele, juiz, percebe como ‘o justo’.”

Uma observação necessária: Como venho mostrando — e especialmente farei isso nesta coluna — setores do Judiciário chegaram ao ponto de radicalizar para além da Escola do Direito Livre. Afinal, ainda que o movimento (i) fosse cético quanto ao Direito e (ii) defendesse uma espécie de atuação legislativa do julgador, atendendo às vontades sociais (contingentes, diferenciando-se assim do jusnaturalismo lato sensu),[1] ainda assim, Kantorowicz pregava sua tese a partir das lacunas, isto é, a partir da ideia de que o Direito não é um sistema completo capaz de prever todas as hipóteses de aplicação. É aí que entra a ideia de "Direito Livre". Aqui, no Brasil, o Direito parece ser livre desde-já-sempre.

E o que isso tem a ver com o que está acontecendo por aí? Tudo. Um exemplo bem concreto — entre tantos que poderia citar (e como venho citando) — é a decisão monocrática da lavra do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, sobre o decreto de indulto. Sobre ela é que falarei. Como sempre, faço-o lhanamente e com o elevado espírito acadêmico, pensando sempre que posições opostas podem proporcionar confluências no futuro.

Ao trabalho. Para o ministro, o indulto agora está proibido — por ele, monocraticamente — em casos de crimes como peculato e corrupção ativa e passiva, de penas pendentes de recurso da acusação, de presos que cumpriram menos de um terço da pena… enfim, há uma série de perfis a partir dos quais o indulto está vedado. Atenção: Também penso — e neste ponto estou de acordo com o ministro — que o presidente da República não tem liberdade absoluta para conceder indulto. Não tem carta branca. Já escrevi sobre isso, falando sobre indulto para crime hediondo (comentei a decisão do STF na ADI 2.795). Mas daí o Judiciário, no caso, um ministro do STF, reescrever o decreto vai uma distância enorme. Se fizer controle de constitucionalidade — bem fundamentado — o que acontece é a invalidação do texto. Ou uma interpretação conforme (verfassungskonforme Auslegung). Ou uma nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung). Ou até uma nulidade parcial com redução de texto. Mas, fazer um “novo”? Legislar em lugar do presidente?

Acho correto pretender um controle da “discricionariedade” do chefe do Executivo, assim como prego, de há muito, que devemos controlar também a discricionariedade judicial. Bingo. Presidente não pode indultar quem quiser; mas também um juiz não pode decidir como quer. Vale para um, vale para o outro.

Outra questão intrigante: em qual teoria constitucional se justifica utilizar como critério para controlar a discricionariedade — no caso, a do poder executivo — uma coisa chamada “legitimidade corrente”, que seria uma espécie de sintonia entre a decisão política e a voz das ruas, o apoio popular? Quer dizer que o STF tem a capacidade de aferir a voz das ruas e, baseado nisso, pode corrigir as leis e a própria Constituição? Ao que se depreende da decisão do ministro, é disso que se trata. A vingar essa tese, teríamos um Judiciário plebiscitário, que seria, à toda evidência, autofágico. O critério seria o Vox Populi, o Ibope e o Data Folha. Ou a mera intuição… A propósito: isso vale para a decisão que condenou o ex-presidente Lula? Se a maioria do povo achar injusta, pode ser revogada? Ou a tese da “legitimidade corrente” só vale para determinados casos? Ora, nem um, nem outro. Quem tiver paciência (embora esses links quase nunca sejam abertos e lidos nestes tempos de pressa e pós-modernidade), lembro que, dias atrás, perguntei, aqui na ConJur: E se a opinião pública fosse contra a prisão em segunda instância?. E respondi, com uma pergunta: que importância tem o Direito e os tribunais se a voz das ruas (como aferi-la, digam-me) vale mais que a Constituição Federal? Isso é uma distopia epistêmica.

No rumo que as coisas vão, há fundadas razões para afirmar que institucionalizamos e, pior, naturalizamos o realismo jurídico, a Escola do Direito Livre e diversas formas de voluntarismo. Lembremos Kantorowicz, com a sua ode à plena liberdade do juiz (com a ressalva que ele falava das lacunas). O juiz decidindo a partir do que é “o justo” ou “certo”. Que justo é esse? Quais são os critérios? Bem, aí temos um problema…

“Professor, então o senhor quer ver corruptos na rua? Não sabemos o que é, mas isso não é ‘o justo’!” Pois bem. Estamos discutindo juridicamente. Eu não quero, nem preciso, e mais, nem devo entrar nesse mérito. Aliás, esse é um dos problemas: confundimos as coisas a tal ponto que juristas, hoje, devem explicar e justificar o motivo pelo qual suas análises são jurídicas. Nas minhas aulas peço desculpas para falar de Direito em uma Faculdade de… Direito. Bom, eu não sou cientista político, nem filósofo moral. Sou jurista.

Uma coisa, para mim, como jurista, é clara: não é da competência do Judiciário ditar políticas públicas e nem políticas prisionais. Nem cabe ao Judiciário, muito menos monocraticamente, definir perfil de preso que recebe ou não indulto com base em critérios vagos como moralidade ou legitimidade corrente. E também não basta falar em “proibição de proteção insuficiente”. A Untermaßverbot — nome que se dá à tese alemã — é bem mais complexa do que isso. Exige efetiva demonstração e, por óbvio, possui limitações muito específicas, não permitindo que o judiciário se substitua ao legislativo (no caso, ao executivo) quando ela, efetivamente, for constatada. Qual é a prognose? Em que se baseia a alegada proteção insuficiente? Isso não está na fundamentação da decisão.

Numa palavra, o que define — ou pelo menos deveria definir — um indulto, uma prisão, um habeas corpus, enfim, o que define tudo isso é o Direito. Não é o Judiciário. Isso é tão óbvio, tão fundamental, e, ao mesmo tempo, parece ser ignorado.

Por fim, chamo a atenção para uma curiosidade. O principal critério escolhido pelo ministro Roberto Barroso foi o mesmo escolhido por um juiz de primeira instância quando do episódio do afastamento da deputada Cristiane Brasil: o “princípio [sic] da moralidade”. Pois é. O princípio que vai de seca à meca. Ora, basta fazer o teste: justifica-se basicamente qualquer coisa a partir de um “princípio” como o “da moralidade”, que, por si, é capaz de reduzir a argumentação a termos com os quais, de tão abstratos, qualquer um concordaria. O que é, afinal, a moralidade? Vamos a fundo nisso ou vamos ficar no periférico?

Quando o Direito é livre (da lei), dependemos do intérprete. E, se dependemos dele, contrariamos o próprio Estado de Direito, pois passamos a nos submeter a discricionariedades, arbitrariedades (que, para mim, são a mesma coisa), subjetivismos, e quetais. Eu defendo a necessidade de critérios.

Em tempos difíceis — essa expressão do ministro Marco Aurélio pegou mesmo — defender a legalidade virou um ato revolucionário. O professor de Direito Constitucional virou um subversivo. Quem diria? Ao que parece, com essa recepção da Escola do Direito Livre em terrae brasilis, chegamos ao ponto de ter de defender uma Escola do Direito… ponto. Escola do Direito.

O interessante nisso tudo é que, ao mesmo tempo em que o ministro Edson Fachin nega, monocraticamente, medida cautelar em habeas corpus para uma pessoa e, em vez de levar ao juízo natural — a 2ª Turma — remete, para surpresa de parte de seus colegas, o processo ao plenário, o ministro Roberto Barroso considerou adequado decidir monocraticamente sobre a liberdade de milhares de pessoas. E, para isso, legislou.

Difícil entender a nossa Suprema Corte (ou parte dela). Vai de zero a 100 em poucos segundos.


1 Escrevo com mais vagar sobre o(s) positivismo(s) clássico(s) e sua(s) antítese(s) em algumas de minhas obras, como Hermenêutica Jurídica e(m) Crise e o Dicionário de Hermenêutica.

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