Opinião

É frustrante constatar o olhar passivo do STF em relação à magistratura

Autor

  • José Munhoz

    é juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Blumenau (SC) e mestre em Direito pela Universidade de Lisboa. Foi conselheiro do CNJ (2011-2013) presidente da Amatra-SP (2004-2006) e vice-presidente da AMB (2008-2010).

14 de março de 2018, 6h14

A lei do município determina que os salários dos médicos devem ser corrigidos anualmente com base na inflação. O prefeito passou quatro anos sem dar o reajuste, concedeu uma pequena correção e deixou os médicos mais quatro anos sem nada. Com a reclamação do sindicato, foi dado aos médicos um “abono plantão”, já previsto na lei, mas nunca implementado, que já vinha sendo pago aos diretores do hospital, vereadores, outros secretários da prefeitura, aos chefes de serviço, aos empregados do laboratório. Nos anos seguintes, apenas dois ajustes salariais. Em 12 anos, a perda inflacionária dos médicos é de 41%.

Agora, o novo prefeito vai à Justiça e tenta cancelar o abono, alegando que a maioria dos médicos não faz plantão! O juiz da cidade, já com diversas ações dos médicos, nunca mandou a prefeitura dar os reajustes inflacionários previstos na lei e, agora, vai decidir se anula ou não o abono plantão que vem sendo pago aos médicos.

Se o abono for retirado dos médicos, os enfermeiros-chefes e alguns outros empregados vão ganhar mais do que eles, sem terem a mesma qualificação e responsabilidade. E para complicar mais, o jornal local começou a atacar os médicos e influenciar a opinião pública contra eles: “Como querem ganhar o abono se não fazem plantão?”.

Os médicos sentem-se completamente injustiçados e ameaçam entrar em greve.

As arbitrariedades da prefeitura e a omissão do juiz não lhe parecem injustas?

No entanto, essa é uma história real. Só que, em vez de atingir os médicos, isso está ocorrendo com os juízes da União (federais e trabalhistas).

A Constituição Federal exige a recomposição anual dos subsídios (mera atualização inflacionária). Nos últimos 12 anos, a União não cumpriu a Constituição em oito deles! Descontando os reajustes concedidos parcialmente, os magistrados estão com altas perdas inflacionárias desde 2006.

Em 2014, ante a ausência da recomposição integral, foi implementado o auxílio-moradia (que era previsto em lei e já recebido por ministros dos tribunais superiores, deputados, senadores, ministros do Executivo, alguns servidores da União e de estatais, alguns promotores e diversos juízes estaduais.).

E agora se propõe excluir esse pagamento apenas dos juízes da União (federais e do trabalho), mantendo o de todos os outros profissionais. Mesmo com o pagamento do famigerado auxílio-moradia, a perda inflacionária ainda é de 22,58%. Caso se suspenda tal pagamento, para meramente se repor a inflação e cumprir a Constituição, a União precisaria repor os subsídios dos juízes em mais de 41%[1].

Excluído o “auxílio-moradia”, diversos servidores (que tiveram a reposição inflacionária mais regular nestes últimos 12 anos), subordinados aos juízes, passarão a ganhar mais que seus chefes e sem as mesmas responsabilidades.

Para se ter uma ideia, só no STF, cerca de 20 servidores ganham mais que os juízes da União! Outros tantos ganham igual ou muito próximo. E isso se repete em diversos tribunais e varas judiciais pelo país afora (sem contar advogados da União, procuradores federais, servidores de estatais, servidores do Senado e da Câmara, empregados de bancos públicos).

Esse sentimento de injustiça é que está levando os juízes federais e trabalhistas à revolta e protesto[2]. E grande responsabilidade desse contrassenso todo é do Supremo Tribunal Federal, que não encontrou mecanismos para simplesmente fazer cumprir a Constituição Federal (sua obrigação elementar, aliás!). É frustrante constatar o olhar passivo do STF quanto ao descumprimento constitucional que se vem produzindo em face da magistratura da União.

É angustiante, do ponto de vista pessoal e profissional, ter de garantir o direito dos outros, enquanto se assiste o seu próprio ser diariamente espezinhado. Mas pior do que não receber o que lhe é constitucionalmente devido é, ainda, ser publicamente “atacado” por isso, nesse complicado jogo midiático e de poder.

E não há qualquer justificativa para que servidores de tribunais ou varas, procuradores, advogados da União ganhem mais que os juízes. Isso representa a mais absurda inversão de valores. Os juízes não querem “penduricalhos”, mas tão somente o tratamento justo previsto na própria Constituição da República, descumprida por mais de uma década. Se eventualmente há pagamentos irregulares ou abusivos para algum setor da magistratura, que se corrija aquela situação específica. O que não se pode é generalizar e, com base numa irregular perspectiva individual, prejudicar toda uma carreira profissional.

Nesse cenário, como convencer um estrangeiro que seus direitos de investimento serão respeitados neste país se a Constituição Federal não é cumprida nem mesmo em face das garantias básicas dos próprios juízes e sob a omissão da mais alta corte de Justiça?


[1] O subsídio de um juiz titular de vara, em janeiro de 2006, era de R$ 21.005,69 (R$ 14.200 líquido, excluído o INSS e o IR). Pela mera correção monetária, o subsídio precisaria ser atualmente de R$ 40.851,09 (R$ 27.631 líquido), pois a inflação nestes 12 anos foi de 94,48% (IPC-A). Atualmente (março/2018), o subsídio do juiz titular de vara é de R$ 28.947,55 (R$ 19.275,72 líquido), o que representa uma correção de apenas 37,8% em 12 anos, gerando uma perda de mais de 41%.
[2] De todo modo, embora compreenda essa revolta, viva essa angústia e sinta esse desrespeito básico ao direito profissional dos juízes, eu não sou favorável à paralisação das atividades nesta quinta-feira (15/3). E não é porque “juiz não pode fazer greve” (eis que esse é o instrumento de luta de qualquer profissional!). São muitas outras razões para justificar esse posicionamento pessoal, que não caberiam neste artigo.

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    é juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Blumenau (SC) e mestre em Direito pela Universidade de Lisboa. Foi conselheiro do CNJ (2011-2013), presidente da Amatra-SP (2004-2006) e vice-presidente da AMB (2008-2010).

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