Opinião

Violação das prerrogativas da advocacia e a retórica dos direitos não absolutos

Autor

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

14 de março de 2018, 18h00

Em recente decisão, o Conselho Nacional de Justiça validou resolução do Tribunal de Justiça do Maranhão que disciplina o atendimento aos advogados, “especificamente quanto ao acesso ao interior das secretarias e gabinetes, mediante prévia autorização”.

A resolução, evidentemente, é absolutamente contrária à disposição literal e inequívoca do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), que estabelece as prerrogativas do advogado de “ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça”[1], bem como de “dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho”.

Afinal, se, “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social”, por óbvio, devem ser outorgadas garantias instrumentais à consecução dessa nobre atividade, que necessariamente envolvem a facilitação do acesso do defensor às serventias do Poder Judiciário, bem como aos julgadores.

Então, diante da incontornável incompatibilidade com o texto legal, não restaria alternativa senão reconhecer a invalidade da resolução, aplicando-se elementar raciocínio de resolução de antinomias jurídicas (minimamente, deveria ser reconhecido que a Lei 8.906/94 tem status hierarquicamente superior à resolução do TJ-MA, de modo que, sendo conflitantes, a primeira deve prevalecer, conforme o brocardo latino lex superior derogat legi inferior).

Entretanto, como já anunciado, não foi esse o entendimento do Conselho Nacional de Justiça.

Em decisão impregnada de desvirtuada utilização de uma lógica utilitarista pouco elogiável (muito menos pensada em suas últimas consequências), entendeu-se que “o direito previsto no Estatuto da OAB não pode ser visto de forma absoluta”, retórica de infeliz uso comum quando da violação às prerrogativas legais do advogado.

Ora, se o acesso ao interior das secretarias e gabinetes somente é garantido mediante prévia autorização, esvaziou-se por completo a prerrogativa legal, eis que condicionada a juízo, nem sempre democrático e fundamentado, de diretores de cartório e magistrados. Basta uma visão pragmática: não sendo, como conhecida regra geral, documentável as negativas de acesso (até mesmo pela recalcitrância na expedição de certidão que ateste esses atos), como será sindicada a violação do direito do advogado? O Poder Judiciário aceitará avaliar a legalidade de cada negativa de autorização?

Ainda que se relevasse a ausência de qualquer fundamento jurídico robusto acerca do frágil argumento da “inexistência de direitos absolutos”, jamais se poderia relativizar uma prerrogativa em relação a qual não se vislumbra qualquer limitação prevista em lei através de mera resolução administrativa.

Resoluções como essa, com todas as licenças, ainda que se reconheça a boa intenção de quem as edita (evidentemente preocupados com a boa prestação jurisdicional), tornam ainda mais difícil a já exaustiva profissão do advogado, para além de abarrotar o Poder Judiciário (e aqui se ilustra o contrassenso do raciocínio utilitarista empregado) com discussões desnecessárias e muito facilmente evitáveis. Basta ver as diretas repercussões de atos normativos que restringem acesso a autos de processos e de investigações, com a consequente quantidade de reclamações constitucionais, mandados de segurança e pedidos de Habeas Corpus manejados para combater essas medidas.

A bem da verdade, após mais de 20 anos da publicação do Estatuto da Advocacia, o artigo 7º, no qual foram previstas as prerrogativas da advocacia, tornou-se praticamente irreconhecível (virtualmente inaplicável). Notícias pululam sobre as mais afrontosas violações, desde a ainda inexplicável declaração de inconstitucionalidade de determinados incisos, passando pelas constantes e imotivadas negativas de acesso a autos de processo, culminando nas absurdas agressões à inviolabilidade do local e instrumentos de trabalho do advogado.

A decisão do Conselho Nacional de Justiça, nesse sentido, possui alguns tristes simbolismos.

Em primeiro lugar, pelo fato de dois dos três advogados que compõem o órgão de controle externo do Poder Judiciário[2] estarem ausentes à sessão de julgamento, sendo que o único presente, indicado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, votou de acordo com o reconhecimento da validade da resolução questionada, em detrimento à prerrogativa prevista no Estatuto da Advocacia.

Ainda que se respeite e, logicamente, exalte a atuação independente no exercício do cargo de conselheiro, a experiência na prática forense, “no outro lado do balcão”, permitiria uma maior sensibilidade aos reclamos da classe, contrapondo-se à visão dos membros originários do próprio Poder Judiciário.

Ademais, em que pese a documentada existência de voto divergente, cassando a questionada resolução do TJ-MA, constou do acórdão, aparentemente em razão da sucessão de conselheiros, a aprovação unânime do voto do relator.

Não se desconhece que, por não raras vezes, o exercício das prerrogativas da advocacia represente custos à eficiência do Poder Judiciário, nem se ignora o potencial abuso de direito que delas pode decorrer. Mas sua observância compõe a essência do devido processo legal, somente a partir do qual a jurisdição guarda legitimidade.

Assim, roga-se que a constante retórica de que “o Estatuto da OAB não contém normas de caráter absoluto” não sirva como nova panaceia para tolher o exercício da profissão de advogado.


[1] Art. 7º São direitos do advogado:
VI – ingressar livremente:
a) nas salas de sessões dos tribunais, mesmo além dos cancelos que separam a parte reservada aos magistrados;
b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares;
c) em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado;
d) em qualquer assembléia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde que munido de poderes especiais.
[2] Lembrando que, conforme o artigo 103-B da CF/88, o CNJ compõe-se de 15 membros, sendo apenas dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Atualmente, um dos dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, por coincidência, também é advogado, assim totalizando o número de três advogados na presente composição.

Autores

  • é advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.

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