Opinião

País não pode ser prejudicado pela patuscada do sindicalismo de toga

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14 de março de 2018, 16h40

*Artigo originalmente publicado na edição desta quarta-feira (14/3) do jornal O Estado de S. Paulo, com o título "Quem deve protagonizar na democracia: sindicatos de juízes ou cortes supremas e parlamentos?"

“Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei mais o quê” — o slogan criativo da revolução de 68, na França, ganhou o mundo.

Os juízes não têm a licença poética dos revolucionários. Cuidam da previsibilidade das relações sociais. Os magistrados podem, até, ser curadores de direitos revolucionários. Se assim o desejar a comunidade.

Seja qual for o regime político, nos julgamentos os magistrados precisam dizer o que acreditam tenha sido ditado pelo povo aos legisladores. Outra coisa é a engenharia do sistema de Justiça. Depende, histórica e predominantemente, da influência decisiva de duas outras vozes: as que estão nas supremas cortes e nos parlamentos.

Nas sociedades democráticas, os juízes alimentam a justa expectativa de que essas instituições, ouvindo outras tantas — e os próprios magistrados —, sejam hábeis no trato do tema público e estratégico do regime de benefícios da magistratura. Na América Latina, no final dos anos 1990, muitas correntes de pensamento estavam preocupadas com esse e outros aspectos de um projeto de modernização dos sistemas de Justiça.

O Banco Mundial disse aos juízes, no conhecido Documento Técnico 319: “Um Judiciário independente requer padrões salariais competitivos. Em geral, os salários permanecem baixos se comparados com setores privados e algumas vezes com outros cargos no setor público”.

O populismo autoritário latino-americano percebeu a importância da questão: a organização de um Poder do Estado com quadros qualificados e remuneração competitiva. Denunciou logo, como de estilo, a voz do imperialismo. E roubou a pauta. Correu a fazer reformas nos sistemas de Justiça.

O documento “imperialista” do Banco Mundial foi publicado em 1996. Depois de superado o voluntarismo de coturno do tenente-coronel Hugo Chávez e a perspectiva ingênua da tentativa do golpe de Estado de 1992.

Em 1998, já por dentro da democracia, Chávez vence as eleições contra a elite corrupta e insensível. Convoca Assembleia Nacional Constituinte. Com a métrica da democracia populista, converte o escrutínio, de 52% (chavista) contra 48% (oposição) dos votos, em esmagadoras 125 cadeiras situacionistas, das 131 disponíveis. A Constituinte edita decreto centralizando todos os poderes na pessoa do novo e sempre velho representante do caudilhismo continental.

A Suprema Corte da Venezuela capitula — com os votos de 8 de seus 15 juízes — e se associa ao poder militar discricionário. Coube à primeira mulher presidente de Suprema Corte, no continente, a corajosa Cecília Sosa, ditar o epitáfio: “Sinceramente, a Corte Suprema de Justiça da Venezuela se suicidou para evitar ser assassinada. O resultado é o mesmo: está morta”.

No Brasil, o mandato presidencial de 2002 elegeu a primeira de suas reformas: a do Judiciário. Os velhos vícios — do Brasil e, portanto, de seu sistema de Justiça — foram institucionalizados. O clientelismo. O pouco-caso com a independência funcional dos juízes. A preguiça premiada. A burocratização. A falta de decoro. A aversão ao mérito. O assembleísmo corporativo.

Para acomodar a nova elite judiciária, o contribuinte brasileiro foi convocado a sustentar quatro conselhos de Justiça — nem o presidente Hugo Chávez foi tão imodesto com o dinheiro público. O Poder Executivo, por sua vez, assumiu a violência institucional de introduzir, no Ministério da Justiça, uma certa Secretaria de Reforma do Poder Judiciário, ato inusitado na história do Brasil. O experimento precário das escolas de juízes foi ampliado e ganhou orçamento próprio — verdadeira temeridade com as contas públicas —, para abrir a porta ao dirigismo intelectual dos juízes.

A nova elite judiciária foi premiada com “penduricalhos” e dispensada do trabalho pesado. Por outro lado, a magistratura silenciosa e trabalhadora foi sufocada com relatórios e tarefas descabidas ou inúteis.

A intimidação difusa e desmoralizante contra a magistratura silenciosa e trabalhadora foi feita com cálculo. O juiz, como qualquer profissional, não pode atrasar o serviço. Salvo se houver justificativa, é elementar.

O Conselho Nacional de Justiça criou um tipo de expediente pelo qual era possível acusar juízes de negligência, sem considerar, no primeiro momento, as circunstâncias do fato. Da noite para o dia, foi possível dizer, com estardalhaço, que centenas ou milhares de juízes respondiam a investigações no CNJ, quando isso nunca foi verdade.

Não obstante este cenário na América Latina, em vários países, o Brasil incluído, os magistrados começaram a reagir contra o populismo autoritário incrementado com o método gramsciano. Por aqui, o arranjo populista entre juízes e militares não prosperou.

As Forças Armadas cultivaram silenciosa resistência. Só depois do impeachment o comandante do Exército, o hábil general Villas Bôas, deixou saber que, sondado para a artificial decretação do Estado de Defesa contra o povo nas ruas, recusou o cálice de veneno.

Agora, diante do fracasso bilionário dos quatro conselhos de Justiça no controle do teto constitucional, as boas intenções de alguns e as más motivações de outros levaram o tema da remuneração dos juízes ao palco iluminado.

Neste momento, sem que nada tenha sido decidido, o sindicalismo de toga convoca greve inconstitucional contra a população. Não há autenticidade em quem cerrou fileiras com a reforma do Judiciário feita contra o país e a magistratura séria e trabalhadora.

Há algo a dizer-lhes e todos sabem bem o quê: a sociedade brasileira não pode ser prejudicada pela patuscada sindical, só para dar rumo a quem quer navegar nos ventos que estão a mudar.

No Estado Democrático de Direito, o sindicalismo de toga é parte — grave — do problema, não de sua solução. Vamos aguardar a resposta institucional do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.

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