Garantias do Consumo

Aos 30 anos da CF, uma reflexão sobre os resultados do Direito do Consumidor

Autor

  • Amanda Flávio de Oliveira

    é sócia-fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre e especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

14 de março de 2018, 10h50

Spacca
Comemora-se nesta quinta-feira (15/3) o Dia Internacional do Consumidor. Neste ano, a comemoração coincidirá, no Brasil, com o aniversário dos 30 anos da Constituição em vigor, a qual, por sinal, consagrou a temática pela primeira vez no ordenamento jurídico pátrio. Ao definir a proteção do consumidor como princípio informador da ordem econômica e ao reconhecê-la como direito fundamental, fez-se uma opção política cuja expressão é inafastável pela vontade do legislador ou do poder econômico público ou privado. De modo convergente, a mesma Constituição afirma expressamente ser objetivo fundamental da República garantir o desenvolvimento nacional, condição essencial para propiciar dignidade humana.

Resultado de mandamento da própria CF/88, nos últimos 28 anos temos contado com uma das leis mais completas e elogiadas do mundo em matéria de proteção ao consumidor, seja pelo conjunto coerente de normas que congrega, seja por sua sólida sustentação principiológica. Ademais, mesmo em um ordenamento jurídico que se vale da ficção jurídica de que não se pode alegar desconhecimento da lei, o Código de Defesa do Consumidor, em contraste com a maior parte dos diplomas nacionais, goza de amplo conhecimento de sua existência por parte da população, em todos os níveis socioeconômicos.

É fato incontestável que sua entrada em vigor, em um momento econômico de expansão considerável da economia nacional, como foi a década de 1990, permitiu atingir resultados bastante positivos em muitos aspectos. Relembre-se que, até então, sequer todos os produtos perecíveis apresentavam data de validade. Também no campo da teoria contratual, o reconhecimento da vulnerabilidade de uma das partes serviu para conferir tratamento mais adequado às relações jurídicas até então sustentadas em uma narrativa abstrata e desconectada da realidade imposta pelo uso crescente — e desejável — dos contratos de adesão. Por muitos motivos, então, tem-se na Lei 8.078/90 um excelente diploma normativo, a que se pode atribuir alterações relevantes e necessárias à dinâmica do consumo nacional nos últimos tempos.

Porém, a dura realidade nos mostra que os países que apresentam os melhores índices de bem-estar do consumidor (ou de níveis de proteção de sua saúde e segurança, para usar os termos da lei) assim como melhores índices de desenvolvimento humano não são exatamente aqueles que possuem a legislação melhor formulada. Nesse sentido, três décadas após a consagração constitucional do Direito do Consumidor no Brasil, são muitas as evidências de que, mesmo com uma lei de tamanha qualidade, está-se distante de um nível desejável de respeito ao consumidor ou de desenvolvimento econômico nacional que propicie dignidade humana.

Observe-se, a título de exemplo, alguns dados. Segundo o excelente relatório Justiça em Números, anualmente publicado pelo Conselho Nacional de Justiça[1], o número de demandas judiciais em Direito do Consumidor segue crescendo, ano após ano. Igualmente, o índice de reclamações nos órgãos especializados segue alto e, incomodamente, os campeões de reclamação persistem, historicamente, sendo os mesmos, há 10, 15 anos. Note-se, a propósito, que neste grupo figuram recorrentemente empresas provenientes do sistema financeiro, de telecomunicações, planos de saúde — curiosamente, empresas que integram setores regulados pelo Estado.

Por fim, pode-se agregar a esses fatos a constatação de que muitas são as vozes que têm manifestado preocupação por um possível momento de retrocesso em Direito do Consumidor no país, tendo em vista algumas decisões oficiais, do Executivo, Legislativo e Judiciário, que, aos seus olhos, estariam representando uma aposta no mercado e um afastamento do Estado na solução do problema em questão.

Todo esse cenário impõe uma reflexão conscienciosa por parte de todos que com o tema se importam, ou que sobre ele se debruçam profissionalmente, em uma data em que já se pode considerar atingida a maturidade do direito social no país. É possível acreditar que a fase inicial de afirmação da lei e do direito já se encontra superada e que se tem avançado pouco em termos de qualidade de proteção nos últimos anos? Em que medida a recente realidade política brasileira, que viu reavivar antigas discussões populares entre partidários de “direita” e “esquerda” pode influenciar — positiva ou negativamente — a evolução da política consumerista? A proteção do consumidor passa, necessariamente, em todos os casos, pela ação positiva do Estado na economia ou a experiência — brasileira mesmo — pode nos indicar que essa alternativa fracassou em casos pontuais?

Tomemos como base para análise a regulação de mercado que se faz no Brasil. O Prêmio Nobel de 2001, Joseph Stiglitz, já vem evidenciando há tempos o fato de que há inúmeras ações do governo que deixam os pobres mais pobres e os ricos mais ricos. Em especial, a Ciência Econômica há muito descreve o fenômeno conhecido como rent seeking e que, em breves palavras, pode ser entendido como a obtenção de benefícios ou privilégios individuais ou por um grupo por meio da influência ou manipulação política. Retomando o caso dos principais alvos de reclamação dos órgãos de defesa do consumidor no Brasil, é no mínimo curioso observar que eles integram empresas reguladas em âmbito federal por uma agência. Nós, estudiosos do Direito do Consumidor, temos estudado o possível (ou não) impacto dos mecanismos de rent seeking na produção de normas administrativas pelas agências reguladoras federais? Ou ao menos os levamos em consideração? Por outro lado, cada vez que uma agência adota uma política de intervenção mínima na economia, em situações pontuais, parte dos consumeristas identificam ali um retrocesso… Seria mesmo? Sempre? Ruim com as agências, pior sem elas?

Retomemos muito brevemente o histórico jurídico-constitucional das agências reguladoras no Brasil. Sabe-se que elas foram criadas, sobretudo na década de 1990, com autorização constitucional, como uma alternativa então identificada para a necessidade de atrair investimentos privados, sobretudo estrangeiros. Ademais, pretendia-se transferir a capacidade decisória sobre aspectos técnicos para entidades descentralizadas, visando conceder credibilidade, estabilidade e eficiência à intervenção estatal nos setores econômicos. Mas, principalmente, elas eram o símbolo de um movimento pelo tecnicismo, procedimentalização e maior transparência da atuação da administração pública sobre a atividade econômica, ao preferir uma concepção de Estado-mediador e transferir para o poder econômico privado o protagonismo na condução da economia, acreditando em sua capacidade de endereçar a contento o atendimento a finalidades públicas. Não à toa, sua criação foi acompanhada, em muitos casos, do processo de privatização de estatais.

Entretanto, para realizar suas atividades, elas demandariam condições e características reconhecidas em lei que as dotassem de independência e força. A solução encontrada foi no sentido de a elas designar a natureza jurídica de autarquias de regime especial, por deterem certos privilégios em relação às autarquias tradicionais, especialmente relacionados à ausência de subordinação hierárquica, à independência ou autonomia administrativo-financeira e ao mandato fixo e estabilidade de dirigentes.

Todavia, entre a teoria e a prática do Estado regulador no Brasil, 30 anos depois da CF/88, há um grande descompasso. A prática regulatória, em nível federal, no Brasil desde 1988, tanto em agências de infraestrutura (entre elas Anatel e Anac, dois constantes alvos de reclamações dos consumeristas) quanto nas demais, aponta que sua independência e autonomia têm sido constantemente colocadas à prova. Pesquisadores do tema identificam uma série de evidências gerais de carência de autonomia desejável, como: i) ausência de efetiva autonomia orçamentária ou financeira; ii) demora na indicação de nomes de seus integrantes-chave como diretores e conselheiros; iii) indicações de nomes para cargos estratégicos em inobservância a critérios técnicos, ou por indicação política. Além disso, podem ser percebidas iniciativas dos ministros da pasta correlata e/ou do Legislativo que surpreendem as agências e tem sido frequente a desconsideração, por elas, de aspectos concorrenciais relevantes dos mercados sobre os quais atuam.

Mormente, as agências, não raro, são acusadas de promoverem excesso de regulamentação, ensejando desestímulo ao investimento privado, sem verificação adequada de evidências seguras da aptidão do regulamento proposto de alcançar a finalidade desejada. Toda essa situação se agrava exatamente pela falta de um marco legal único e geral para o modelo, já que cada agência é regida por sua própria lei, muitas vezes sem qualquer alinhamento entre si[2].

Esses dados todos — que integram a própria história político-jurídica das agências reguladoras federais — têm deixado marcas e ineficiências no desenvolvimento da política e da prática consumerista nacionais e, por isso, tornam-se objeto de primeira preocupação.

Sempre que se identifica o insucesso de uma prática intervencionista estatal, pode-se decidir, em tese, por abandonar a prática ou aprimorá-la.

Um aspecto a merecer reflexão contemporânea no ponto diz respeito à tendência de se compreender que sempre que o Estado, por qualquer de suas expressões, adota uma medida de desregulação ou desregulamentação, em um caso concreto, ele, necessariamente, estaria descurando do mandamento constitucional de proteção do consumidor. Essa concepção fundamentar-se-ia na concepção equivocada de que as teorias liberais não se preocupam com a proteção do consumidor. Essa concepção não se sustenta por diversos motivos. Em primeiro lugar, relembre-se que pensadores liberais influentes consentem com a ideia de que a intervenção estatal se justificaria em circunstâncias que eles elencam como excepcionais: a) diante de assimetria de informações; b) diante de bens públicos; c) diante de monopólios; d) diante de situações em que o exercício da liberdade individual pode afetar negativamente a coletividade[3]. Em segundo lugar, porque para a teoria liberal igualmente importa o nível de proteção dos consumidores. O que difere pensadores liberais daqueles que defendem a intervenção estatal consiste apenas na maneira utilizada por cada um deles para se obter o mesmo objetivo. Para os primeiros, a melhor proteção do consumidor resultará de um mercado livre. Para os segundos, é imprescindível a atuação direta do Estado para o atingimento deste fim. De toda sorte, entretanto, pelo menos no contexto constitucional brasileiro, eventual medida de desregulação ou de desregulamentação igualmente deverá ser hábil a promover a proteção do consumidor, para se fazer legítima e atender aos preceitos dispostos na própria Constituição.

Mas, se não se abre mão do modelo intervencionista, em todos os casos ou pontualmente, e se os fatos demonstram o esgotamento do modelo até então utilizado, é chegada a hora de buscar seu aprimoramento. Se se volta ao exemplo dos setores regulados, isso significaria a imperiosidade de se avaliar os impactos regulatórios ou as consequências da norma ou ato administrativo antes e depois de sua realização ou propositura. Essa prática não é uma realidade no Brasil. Destaque-se a existência de proposta legislativa que pretende exigir AIR (Análise de Impacto Regulatório) prévio a medidas de regulamentação adotadas pelas agências. Tal sistema poderia ser um caminho.

Enfim, sabe-se que a comemoração dos 30 anos de defesa do consumidor no texto constitucional brasileiro acontece em um momento global (e brasileiro) de crise, em vários aspectos, bem como de revisão e readequação do papel do Estado em relação à economia, haja vista as discussões constantes nos fóruns de debate jurídicos a respeito dos temas consumidor, antitruste, propriedade intelectual, trabalho, previdência e moradia, entre tantos outros. Neste momento, ressalta-se a prioridade do objetivo sobre o instrumento. Quer seja pelas mãos do Estado ou do mercado, o compromisso dos consumeristas — e de todos os que com sua atividade contribuem para essa política — deve pairar sobre o melhor meio — comprovável e no caso concreto — de se obter a proteção à saúde e à segurança do consumidor, ou sua melhor tutela.


[1] Confira em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros.
[2] A esse respeito, o PL 6.621, de 2016, pretende constituir-se precisamente nesta lei geral. Recomenda-se sua leitura e o acompanhamento de sua tramitação. Veja mais em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2120019.
[3] Cite-se, a título de exemplificação, mesmo que rápida, os pensadores liberais clássicos Adam Smith e John Stuart Mill.

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