Paradoxo da Corte

A arbitrária e descabida ameaça judicial de aplicação de multa

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

13 de março de 2018, 8h00

Este artigo é dedicado a repudiar de forma veemente o constrangimento pelo qual passa o advogado quando o juiz o adverte de que irá impor sanção ao seu constituinte caso venha a ser praticado determinado ato processual.

O juiz, como é cediço, tem o dever de aplicar a lei. Não o de ameaçar a aplicá-la…

O advogado, a seu turno, tem o dever de atuar com ética e lealdade. Não o de abusar do processo, em detrimento da celeridade…

No plano do direito material, a aferição da boa-fé objetiva decorre da interpretação do padrão de conduta normalmente exigível dos sujeitos e dos efeitos jurídicos que razoavelmente deveriam ser esperados pelos contratantes. A atenção a essas duas premissas estabelecerá o conteúdo objetivo do negócio jurídico, ao qual estarão vinculadas as partes.

A teoria da boa-fé objetiva encerra um formidável instrumento de hermenêutica jurídica para detectar, num determinado caso concreto, eventual abusividade das cláusulas contratuais expressas ou para reconhecer a inaplicabilidade parcial dos efeitos do negócio jurídico, ou ainda para proceder à interpretação integrativa da declaração de vontade, sempre que seja preciso restabelecer o equilíbrio contratual.

Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas Normas Fundamentais do Processo Civil, constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabeleceu, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a conduta, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os atores do processo: o juiz, as partes, os respectivos advogados, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da Justiça (serventuários, peritos, intérpretes etc.).

O fundamento constitucional da boa-fé decorre da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há que se falar em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do devido processo legal.

É ponto pacífico que cada um dos protagonistas do processo tem direitos e responsabilidades, presumindo-se, em princípio, que todos atuam imbuídos de boa-fé. Assim sendo, qualquer desvio do padrão de comportamento esperado não pode ser presumido, porquanto, somente pode ser aferido diante de uma situação específica, já perpetrada. É de fato impossível inferir, antes que o ato seja realizado, atuação abusiva ou desleal.

A jurisprudência dos nossos tribunais, adiantando-se à novel legislação, tem preconizado que determinadas condutas, caracterizadas como abuso de direito, vulneram a boa-fé processual. Confira-se:

“(…) Ocorre que, na hipótese, a apresentação da petição de desistência logo após a concessão dos efeitos da tutela recursal, reconhecendo à autora o direito de receber 2/3 de um salário mínimo a título de pensão mensal, teve a nítida intenção de esvaziar o cumprimento da determinação judicial, no momento em que o réu anteviu que o julgamento final da apelação lhe seria desfavorável, sendo a pretensão, portanto, incompatível com o princípio da boa-fé processual e com a própria regra que lhe faculta não prosseguir com o recurso, a qual não deve ser utilizada como forma de obstaculizar a efetiva proteção ao direito lesionado” (STJ, 3ª Turma, REsp 1.285.405-SP, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, v. u., DJe de 19/12/2014); “O formalismo desmesurado ignora, ainda, a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz” (STF, 1ª Turma, ED no ARE 674.231-RS, rel. min. Luiz Fux, v. u., DJe de 11/9/2013).

Acrescente-se, com efeito, que o Código de Processo Civil também impõe comportamento ético e leal aos órgãos jurisdicionais, coibindo-os, por exemplo, de proferir “decisão-surpresa” (artigo 9º). Exemplo marcante da lealdade do órgão jurisdicional em relação aos litigantes vem expresso na preciosa regra do parágrafo único do artigo 932 do novo Código: “Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível”.

Note-se que a boa-fé processual desdobra-se nos deveres de veracidade e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos artigos 77 e 142 do diploma de 2015. O descumprimento desses deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas nos artigos 77, 80, 81, 100, parágrafo único, 334, parágrafo 8º, 536, parágrafo 3º, e 702, parágrafos 10 e 11 do Código de Processo Civil.

Não é preciso dizer, até porque a prática tem revelado, que realmente há abusos cometidos por profissionais que, sem qualquer reflexão acerca do caso concreto, valem-se “automaticamente”, por exemplo, dos embargos de declaração como se fossem um mecanismo processual destinado a obter o rejulgamento da causa.

Nem sempre, contudo, como é curial, os embargos de declaração têm escopo infringente da decisão, visto que, com alguma frequência, são recebidos e providos para sanar obscuridade ou omissão. Observe-se que, em especial, nos domínios do Superior Tribunal de Justiça, não é raro o acolhimento dos embargos de declaração, inclusive para alterar parcialmente o julgado embargado.

Aduza-se, nesse particular, que a própria lei processual, dada a utilização muitas vezes abusiva dos embargos de declaração, incumbe-se de prever a aplicação de multa. Dispõem, a propósito, os parágrafos 2º e 3º do artigo 1.026 do Código de Processo Civil que: “Quando manifestamente protelatórios os embargos de declaração, o juiz ou o tribunal, em decisão fundamentada, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente a dois por cento sobre o valor atualizado da causa”; e que: “Na reiteração de embargos de declaração manifestamente protelatórios, a multa será elevada a até dez por cento sobre o valor atualizado da causa, e a interposição de qualquer recurso ficará condicionada ao depósito prévio do valor da multa, à exceção da Fazenda Pública e do beneficiário de gratuidade da justiça, que a recolherão ao final”.

Assim como ocorre em outras situações previstas no diploma processual, as multas contempladas neste transcrito dispositivo legal têm o nítido propósito de coibir o uso indevido da técnica processual, mediante expediente que conspira contra o princípio da duração razoável do processo. Dúvida não pode subsistir de que a avaliação de seu caráter meramente procrastinatório apenas tem lugar após a consumação do ato, vale dizer, depois de opostos os embargos de declaração.

Antes do exame das razões expendidas pelo embargante não se descortina possível fazer-se prévia suposição de que a atuação processual deste merece ser reprimida com a imposição de multa.

Desse modo, irrompe de todo arbitrária e absolutamente descabida a ameaça genérica, previamente formulada na decisão, de futura imposição de sanção processual, se for praticado determinado ato pela parte, como, por exemplo, a exortação de que, sendo interposto recurso pelo litigante que experimentou derrota, poderá ser majorada a verba honorária, ou, ainda, com mais recorrência, caso opostos novos embargos de declaração, o embargante poderá ser condenado a pagar multa decorrente de abuso processual…

Ora, essas, sem dúvida, são questões éticas e técnicas que devem ser compartilhadas entre advogado e cliente, não podendo haver ingerência — esta, sim, abusiva — de qualquer órgão jurisdicional, seja do juiz de primeiro grau, de desembargador ou de ministro de tribunal superior.

Em primeiro lugar, porque o juiz não pode se considerar infalível, antevendo que a sua decisão é completa, perfeita e incensurável!

Ademais, a aludida ameaça, que certamente exerce alguma indevida influência sobre advogados menos experientes, não pode interferir na liberdade de atuação do profissional, a quem cabe, com exclusividade, avaliar as estratégias e exercer o patrocínio do direito de seu constituinte do modo que bem entender, sempre dentro dos limites deontológicos que são impostos pela legislação em vigor, em particular pelo Código de Ética e Disciplina da Advocacia.

Ressalto, a guisa de conclusão, que essa prática inusitada e crescente, totalmente desfocada, além de não contribuir, em nada, para a celeridade do processo, revela um lado místico da magistratura, qual seja, a de que o juiz imagina ser detentor de enorme poder de controle sobre a conduta dos litigantes.

Sem dúvida, como apregoava Carnelutti, o juiz pode muito, mas, com toda certeza, não pode tudo.

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