Academia de Polícia

Buscamos contraditório ou ampla defesa na investigação criminal?

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

13 de março de 2018, 8h40

Spacca
Caricatura Ruchester Marreiros [Spacca]O Senado Federal noticiou1 que seu Plenário aprovou há menos de seis dias que “o projeto de lei que assegura que investigados em inquéritos policiais poderão ter espaço para defesa e contraditório dentro do próprio inquérito. De autoria do senador Roberto Rocha (PSDB-MA), o PLS 366/2015 segue agora para votação na Câmara dos Deputados”. O texto final foi aprovado pelo Parecer 30, com algumas emendas ao projeto original, que iniciou sua tramitação em 17/06/15.

Não há dúvidas de que essa tramitação vem tomando ares de celeridade pelas mesmas razões do PL 6.705, de 5 de novembro de 2013, de autoria do deputado federal Arnaldo Faria de Sá, do PTB-SP (um dos estados que mais sucatearam a polícia judiciária), o qual originou a Lei 13.245, de 13 de janeiro de 2016, que alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, a Lei 8.906/94, já que esta aborda o mesmo pano de fundo que o PLS 366/15, qual seja, a efetivação de garantias fundamentais e convencionais do “contraditório” e da “ampla defesa” na investigação criminal.

O projeto de diminuto texto, que em nada inova, trazendo aquele “mais do mesmo”, que atrapalha mais do que ajuda.

Peço vênia aos leitores para transcrevê-lo:

Art. 1º O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 14. ……………………………………………………….

§ 1º É direito do defensor, no interesse do investigado ou do indiciado, ter acesso aos elementos de prova que, já documentados nos autos do inquérito policial ou em outro procedimento de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa, excetuados os registros relativos a diligências em andamento e a medidas cautelares sigilosas, cujo acesso possa prejudicar a eficácia das investigações.

§ 2º Ressalvado risco à eficácia das investigações, em caso de indiciamento pelo delegado de polícia, em ato fundamentado nos elementos de prova que comprovem a materialidade delitiva e os indícios de autoria, o indiciado, por meio de seu defensor, terá vista dos autos, podendo tomar nota, obter cópia e requerer diligência, observado o disposto no caput, suspendendo-se o prazo do inquérito, se for o caso.” (NR)

“Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos de prova colhidos no inquérito, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
…………………………………………………………..” (NR)

Inicialmente, cumpre salientar uma pequena síntese e distinção entre contraditório e ampla defesa.

O contraditório pressupõe o binômio ciência-participação, que significa tomar conhecimento de um ato, seja administrativo ou judicial, e dele participar, não se distinguido esse direito entre acusador e defesa, ou seja, princípio aplicável a ambas as partes, em se tratando de um processo judicial. Em outras palavras, aplicando-se esse princípio a uma investigação criminal, a consequência seria a intimação do investigado ou sua defesa para participar de todos os atos investigatórios, como, por exemplo, do depoimento de uma testemunha ou vítima, podendo realizar perguntas.

A legislação vigente não abarcou esse modelo de contraditório.

A ampla defesa é uma consequência do contraditório para a defesa, contudo, que implica dizer, além da ciência e informação da imputação criminal, o direito a uma defesa técnica, direito à produção de prova e a impugnar os atos decisórios.

Evidentemente que uma alteração diminuta, como ocorreu pela Lei 13.245/16, não atribuirá valência suficiente para uma mudança tão profunda à investigação criminal, mas traduz um movimento legislativo, que, em conjunto com outros de mesma direção realizados hodiernamente, parece demonstrar um grito (dos poderosos) por mudanças mais significativas na investigação criminal em uma democracia, que por sua vez é bem mais completa que o PLS 366/15, transformando-o em uma inutilidade legislativa.

A Lei 13.245/13 deve ser lida com vistas a uma interpretação prospectiva. Em assim procedendo, sequer ela teria sido necessária, muito menos o PLS 366/15, que nada acrescenta ao que já foi estipulado por aquela. Afinal, algumas disposições dela não alteram certas interpretações já realizadas, mas outras, em nosso ponto de vista, traduz um passo, apesar de tímido, significativo à aplicação, até mesmo de uma teoria das nulidades à investigação criminal, consequentemente, o repensar sobre a natureza jurídica desta, como já o fez o novo Codigo Procesal Penal de la Nación Argentina2 e que inclui a investigação criminal como etapa do procedimento ordinário do processo de conhecimento, alterando o paradigma do processo como relação jurídica, elevando a uma categoria de processo como uma garantia constitucional, categoria de uma situação jurídica, na qual fizemos uma pequena diferença de investigações previstas no diploma argentino em artigo publicado no Canal Ciências Criminais3.

A verdade interessa a todos, inclusive ao Estado. A sociedade não tem interesse em processar inocente e deixar o verdadeiro culpado impune, portanto a evolução teórica gira em torno da construção da verdade, e não em torno da existência ou não de um procedimento investigatório prévio à fase de julgamento. Seja o nome que for, inquérito policial, procedimento de investigação criminal, termo circunstanciado, auto de investigação de adolescente pela prática de ato infracional etc., o interesse está em construir uma verdade ética.

Ao nosso juízo, a melhor versão da verdade é aquela com maior capacidade de preservar a cadeia de custódia da prova, principalmente as provas irrepetíveis. Não resta a menor dúvida de que sua demonstração deve ser feita sob o prisma da paridade de armas.

Não fosse a cultura autoritária e a dogmática literal que se apregoou, mesmo após a Constituição de 88, inclusive pelo STF, de que no inquérito policial não há contraditório e ampla defesa, o artigo 14 do CPP combinado com artigo 5º, LXII, CR/88 já autorizaria que o advogado apresentasse “razões e quesitos”, conforme veio previsto na alínea “a” do artigo 7º, XXI, da Lei 8.906/94, com a redação introduzida pela Lei 13.245/16.

A cultura punitivista que reina em nosso ordenamento é o verdadeiro inimigo íntimo da democracia, pois é incapaz de reconhecer em nosso sistema normas que reconhecidamente previam intervenção da defesa, desde a década de 1980, período, inclusive, de início do processo de redemocratização do país, portanto, norma bem mais próxima a um cariz democrático do que o CPP de 1941, consoante o artigo 103 do Decreto 86.715/81, que regulamenta a Lei 6.815/80, atualmente revogados pelas novas regras de migração, Lei 13.445/17 e seu Decreto 9.199/17 e no artigo 33, parágrafo 4º Lei 7.170/83, ainda que seja uma intervenção restrita da defesa, aduzia “em qualquer fase do inquérito, a requerimento da defesa”, o que pressupunha acesso aos autos do inquérito policial

A esse respeito deixamos salientado que as novas regras sobre migração revogaram o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80) e um novo modelo de procedimento administrativo de expulsão foi criado, e denominado de inquérito policial de expulsão, que continua a se realizar sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, não obstante despossuir caráter penal, conforme artigo 58 da Lei 13.445/17 e artigos 196 a 199 do Decreto 9.199/17.

Outra fonte normativa que institui a defesa na investigação criminal advém do Direito Internacional Público e perfeitamente admissível como regra no âmbito interno, seja pelo mecanismo da analogia, conforme o artigo 3º do CPP, ou, acaso não se entenda adequado, pelo o sistema do Diálogo das Fontes4, razão esta autorizada pela própria Constituição da República de 1988, no artigo 7º Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deixando explícita a intenção do constituinte originário de aderir à ideia da criação de um Tribunal Penal Internacional, donde se extrai que “o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”.

Outrossim, a EC 45/04, ao incluir o parágrafo 4º no artigo 5º, CR/88, dispôs que o Brasil “se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

Nesta feita, o Estatuto de Roma, que criou um Tribunal Penal Internacional (TPI), regulamentou a fase investigatória, instrutória, julgamento, recurso e execução da pena. A investigação preliminar no TPI pode ser instaurada de ofício ou por intermédio da câmara de questões preliminares ou juízo de instrução (composta de três juízes), desde que tenha um fundamento razoável em ambos os casos.

Instaurada a investigação, o suspeito possui diversos direitos previstos no artigo 55 (1) e (2) do Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil através do Decreto Presidencial 4.388/02. Dentre esse rol de direitos há o de se garantir a obrigatoriedade de defesa (não contraditório) nas denominadas provas irrepetíveis, conforme artigo 56 (1), “a” e “b”.

Percebe-se nitidamente que o artigo 14, caput, do CPP, no qual aduz que “o ofendido, ou seu representante legal, o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, associado ao direito de assistência de advogado insculpido no artigo 5º, LXIII, CR/88, já autorizaria a efetivação do direito de defesa na dimensão dos dispositivos anteriormente citados, principalmente após a Constituição de 1988, mas o viés autoritário forjado em 1941 e uma interpretação distorcida a respeito dos precedentes do STF sobre o contraditório e a ampla defesa na investigação criminal que dificultam a incidência da defesa nesta fase, não obstante a existência da Súmula Vinculante 14 dessa suprema corte.

Nesse diapasão, os parágrafos 1º e 2º, que seriam introduzidos no artigo 14 do CPP pelo PLS 366/15, explicitam com outras palavras o que já vem disposto na SV 14 do STF:

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Não obstante o conteúdo epistemológico idêntico ao da Lei 13.245/16, esta foi mais ousada, pois ainda permite a formulação de razões e de quesitação, conforme novatio legis introduzida no artigo 7º, XXI do EOAB, se referindo, neste condão, à participação da defesa nas provas periciais irrepetíveis, o que corrobora com o procedimento investigatório no TPI acima mencionado.

Corroborando com esse raciocínio, lembramos das lições da saudosa professora Ada Pellegrini5:

"Excluídos os casos em que há urgência, seja porque há risco de desaparecerem os sinais do crime, seja porque é impossível ou difícil conservar a coisa a ser examinada, ou ainda as hipóteses em que inexiste suspeita contra pessoa determinada, a autoridade policial deveria dar oportunidade ao indiciado de apresentar quesitos para maior garantia de defesa".

Quanto ao termo “razões”, antes de “quesitos”, previsto no artigo 7º, XXI, da Lei 8.906/94, introduzido pela Lei 13.245/16, entendemos que seu alcance se refere a qualquer manifestação por escrito (como já havia no artigo 14, caput, do CPP), no entanto, haverá maior aplicabilidade para a construção da verdade, a concessão de oportunidade de se notificar o investigado ou sua defesa ao final da investigação para apresentação das razões da defesa, que fariam as vezes de memoriais ou alegações finais a despeito dos elementos probatórios colhidos na investigação criminal, antes da elaboração do relatório final, pelo delegado.

Outrossim, do parágrafo 11 do mesmo artigo 7º, se deduz que o advogado teria acesso àquelas provas já documentadas, ou seja, a posteriori e não concomitantemente (excluindo-se a ideia de contraditório), seguindo orientação já aduzida pela Súmula Vinculante 14 do STF, como podemos verificar na redação do dispositivo, in verbis:

“A autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências”.

A nova redação trazida pelo PLS 366/15 ao artigo 155 do CPP não altera absolutamente em nada a natureza jurídica das evidências colhidas na fase da investigação criminal, devendo-se seguir os moldes e contornos até agora previstos, ou seja, as evidências materializadas nos autos, seja sob a nomenclatura de elementos probatórios, como preferem o STJ e o STF, elementos informativos ou prova lato sensu, como prefere uma ou outra doutrina, autorizam embasar (o que já é de muita responsabilidade) as decisões sobre medidas de natureza cautelar, corroborando ou não com eventual formação da justa causa para o exercício da pretensão acusatória. Noutro giro, arquivamento ou absolvição sumária ao exercício da pretensão defensiva.

Por fim, a previsão de suspensão do prazo da investigação criminal na parte final do parágrafo 2º que seria introduzido no artigo 14 do CPP, pelo PLS 366/15, é totalmente desnecessário. A existência dessa suspensão ou sua inexistência em nada alterar o sistema de prazos na investigação criminal, por duas razões: a uma, porque somente se poderia aplicá-la ao investigado solto, e não ao detido em flagrante, diante de ausência de regra clara de prorrogação do status prisional do investigado; a duas, que em se tratando de prazo para investigado solto, o prazo é impróprio, inexistindo consequência jurídica para uma prorrogação além do prazo regular (regra: 30 dias) para o exercício da defesa pelo investigado, não passando, em muito, de uma mera irregularidade.

Em suma, a Lei 13.245/16 traz como conteúdo epistêmico o direito de acesso aos autos da investigação criminal por uma defesa técnica e proteção efetiva ao princípio já consagrado em nossa carta política em seu artigo 5º, LVII (nemu tenetur se detegere), muito mais do que o PLS 366/15, que, depois de aprovado no Senado, corre para a Câmara, ao que parece, para cumprir antiga gincana parlamentar em profícuo sadismo de nos açoitar com mais uma inutilidade legislativa.

Oremos.


1 Disponível: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/07/projeto-que-garante-acesso-da-defesa-a-inquerito-policial-segue-para-a-camara, acesso em 12/3/2018.
2 Disponível: <http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/383/texact.htm>, acesso em 12/3/2018.
3 BARBOSA. Ruchester Marreiros. Teoria dos jogos aplicável à investigação criminal. Disponível: <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/teoria-dos-jogos-aplicavel-a-investigacao-criminal/>, acesso em 13/1/2016.
4 Explicamos melhor no artigo disponível: https://www.conjur.com.br/2017-dez-05/academia-policia-inquerito-expulsao-dialogar-inquerito-comum, acesso em 12/3/2018.
5 GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 129/130.

Autores

  • é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!