Segunda Leitura

Avanço tecnológico nos tribunais, Buser e profissões, entre ontem e hoje

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

11 de março de 2018, 10h17

Spacca
A tecnologia avança implacável. Tal qual um tsunami, passa por cima de costumes, regras jurídicas, princípios, não poupando nada e ninguém. Assustados e seduzidos a um só tempo, assistimos às transformações, pensando em que medida seremos, por ela, alcançados, e em que mundo viverão nossos descendentes.

Na minha infância, lia encantado as revistas em quadrinhos de Flash Gordon voando no espaço. No início dos anos 1970, assisti ao filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, dando voos à minha imaginação. Aos poucos, o que era ficção foi se tornando realidade.

Mas foi em 2005 que tive contato, “ao vivo e em cores”, com um drama humano envolvendo a chegada da tecnologia.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que à época eu presidia, implantou o sistema e-proc, de processo eletrônico nos Juizados Especiais e Turmas Recursais do Rio Grande do Sul. E a ordem, nos termos do artigo 2º da Resolução 13/2004, da Presidência, era não aceitar mais petições em papel. Um advogado de Porto Alegre, alegando que a Resolução não tinha força de lei, impetrou segurança, afirmando estar sendo impedido de exercer a sua profissão, porque desejava continuar utilizando o sistema antigo.

Era flagrante que ali estava um drama humano, o conflito entre mundos diferentes, máquina de escrever versus computador. Como eu havia assinado o ato administrativo, tornei-me autoridade coatora e não participei do julgamento. A Corte Especial do TRF-4, no dia 29 de setembro de 2005, assim decidiu:

MANDADO DE SEGURANÇA. ATO PRESIDENTE TRF4. OBRIGAÇÃO DE UTILIZAÇÃO DO PROCESSO ELETRÔNICO (E-PROC) NOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS.

A instituição do processo eletrônico é decorrência da necessidade de agilização da tramitação dos processos nos Juizados Especiais Federais, representando a iniciativa o resultado de um enorme esforço institucional do Tribunal Regional da 4a Região e das três Seções Judiciárias do sul para que não se inviabilize a prestação jurisdicional à população, diante da avalanche de ações que recai sobre a Justiça Federal, particularmente nos Juizados Especiais Federais.

O sistema em implantação é consentâneo com os critérios gerais da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade que devem orientar os Juizados Especiais, previstos no art. 2º da Lei 9.099/95, e que são aplicáveis aos Juizados Especiais Federais, conforme disposto no art. 1º da Lei 10.259/2001.

A sistemática implantada assegura o acesso aos equipamentos e aos meios eletrônicos às partes e aos procuradores que deles não disponham (Resolução nº 13/2004, da Presidência do TRF/4ª Região, art. 2º, §§ 1º e 2º), de forma que, a princípio, ninguém tem o acesso à Justiça ou o exercício da profissão impedido em decorrência do processo eletrônico.[i]

O mandado de segurança foi julgado improcedente, o processo eletrônico é, hoje, uma realidade em todo o território nacional e o acórdão merece estar em todos os arquivos históricos do Poder Judiciário brasileiro.

De lá para cá o mundo mudou e não apenas no sistema de Justiça. As comunicações se tornaram fáceis e acessíveis, os telefones celulares ocuparam o espaço dos fixos, a internet promoveu a interligação de pessoas de países distantes e até o conceito de soberania foi atenuado.

No entanto, países e seus sistemas legais continuaram a mover-se lentamente. O processo legislativo atual pouca diferença tem do existente há um século. Isto gera um descompasso entre o mundo legal e o mundo real, fazendo com que, cada vez mais, se normatize através de resoluções e outros atos administrativos, ou formas novas de exercício profissional se imponham.

Óbvio que disto resultam conflitos entre interesses divergentes. Alguns não podem ser confrontados, como a compra de bens pela internet, esvaziando as lojas que praticam, por décadas, o comércio tradicional. Outros são mais visíveis e atingem pessoas diretamente. O Uber é o exemplo clássico. Praticando viagens de carro a preços mais baratos, se contrapõem aos táxis, cuja autorização é cercada de formalismos e exigências.

Nesta linha surge o Buser, criação brasileira que, imitando, em certa medida o Uber, se propõe a promover viagens de ônibus com preços mais vantajosos do que os das companhias de transporte. Segundo Marcelo Abritta, co-fundador do Buser, “o objetivo é baratear os custos de deslocamento diante dos preços atuais das empresas que operam sem concorrência”.[ii]

Já estavam programadas viagens de Buser de Belo Horizonte para Ipatinga e Viçosa, no Estado de Minas Gerais. Contudo, elas foram impedidas por decisão judicial, oriunda da 23ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, que proibiu esta nova modalidade de transporte.[iii]

Então o Buser migrou para o estado de São Paulo. A primeira viagem ocorreu no trecho de São Paulo a Ribeirão Preto e contou com apenas dois passageiros. Na mesma ocasião outras duas foram barradas pela Agência Nacional de Transporte Terrestre – ANTT, com apoio da Polícia Militar. [iv]

É cedo para prever o desfecho deste novo campo de disputa. Mas uma coisa é certa. O Estado não consegue mais fornecer os serviços reclamados pela população, nem mesmo através de formas que buscam simplificar o fornecimento, como as permissões dadas a particulares. E a população, que no mundo real deve movimentar-se velozmente, não suporta a espera, a ineficiência.

Vejamos alguns exemplos de variados tipos de serviços públicos. Como sempre, baseados em casos reais.

Se os Correios, em razão da elevada criminalidade, não entregam cartas ou encomendas em 43,6% dos endereços do Rio de Janeiro[v], o particular não pode valer-se de serviço privado que o faça? O monopólio dado à empresa pública tem razão de ser em tal situação?

Se uma Vara de Família e Sucessões demora mais de sete meses para expedir um ofício, impresso ou eletrônico, visando atender um banal levantamento de FGTS, não é o caso de delegar-se a redação e entrega a um particular, uma vez que o serviço público judiciário não atende a um mínimo de eficiência?

Em Colombo, Estado do Paraná, no dia 15 de janeiro Carlos Ramón Días Del Antonio, de 18 anos, foi assassinado a facadas. O corpo demorou 14 horas para ser recolhido, porque faltavam veículos no IML.[vi] Também no Paraná, mais recentemente, “Um motoboy de 19 anos, morreu ao ser atingido com um tiro na madrugada desta sexta-feira (9), na Avenida Carlos Cavalcanti, em Uvaranas, Ponta Grossa. A ocorrência foi registrada por volta de 1h da madrugada e o corpo ficou na calçada até as 7h55”, quando o carro do IML chegou no local”.[vii]

Se o Poder Público não consegue prover sua Polícia Científica de meios mínimos para que exerça suas funções, não está na hora de cogitar-se de soluções alternativas? Que tal a Secretaria da Segurança aceitar voluntários, no caso do IML podendo ser estudantes de Medicina a serem recrutados mediante convênio com as universidades?

Por tudo o que se vê e que se passa, é possível concluir-se que o Poder Público, por múltiplas razões, não consegue prestar com eficiência os serviços a seu cargo, acompanhar o desenvolvimento da tecnologia, as mudanças na sociedade, o anseio de rapidez típico do mundo contemporâneo.

Se esta é a realidade, é razoável impedir que particulares o façam? A disputa entre profissões justifica a ineficiência? Ou deve prevalecer o que mais atenda ao consumidor, a quem pouco importa quem o serve?

 


[i] TRF4, processo nº 2004.04.01.036333-0/RS, Carlos de Souza Gomes x Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, Corte Especial, relator João Surreaux Chagas, j.29/9/205, DJU 19/10/2005.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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