Opinião

Banalizar a condução coercitiva só prejudica o sistema processual penal

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10 de março de 2018, 6h31

Batizada de operação trapaça, a terceira fase da famigerada operação carne fraca foi deflagrada na última segunda-feira (5/3) com o escopo de apurar condutas fraudulentas consistentes na adulteração de análises laboratoriais por parte de empresa do ramo do agronegócio, para ocultar a presença da bactéria salmonella spp em aves.

Em que pese a imperiosa necessidade de preservação da incolumidade da saúde pública, tema central da operação, causou estranheza o fato de a decisão do juízo de Ponta Grossa (PR) ter determinado a condução coercitiva de um grupo de testemunhas, muito embora o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato de constitucionalidade (ADPF 395 e 444), tenha vedado a condução coercitiva de investigados para interrogatório.

Compulsando a decisão proferida na operação, entrevê-se que o magistrado de Ponta Grossa consignou que não está sendo desrespeitada a decisão do STF, ao argumento de que, na ADPF 444, foi proibida tão somente a condução forçosa de investigados para fins de interrogatório, não havendo quaisquer óbices no tocante à condução coercitiva de testemunhas.

De plano, sobreleva notar que a condução coercitiva é um meio de restrição, ainda que temporário, da liberdade de locomoção do indivíduo, sendo, portanto, uma modalidade disfarçada de prisão. Com efeito, ao forçar a presença do investigado a ato processual para o qual não é obrigado a comparecer, a condução coercitiva, prevista no artigo 260 do Código de Processo Penal, caminha na contramão do princípio constitucional da presunção da não culpabilidade.

No que tange à prova testemunhal, o Código de Processo Penal admite, em seu artigo 218, a possibilidade de condução coercitiva, caso a testemunha, devidamente intimada, deixe de comparecer, imotivadamente, para prestar declarações sobre os fatos em apuração. Cumpre frisar, desde já, que a hipótese em tela descortina-se distinta da preconizada pelo artigo 260 da Lei Processual Penal, já que a testemunha, ao contrário do investigado, tem o dever legal de depor, além de assumir o compromisso de relatar a verdade acerca dos fatos que tem conhecimento, sob pena de, não o fazendo, responder pelo delito de falto testemunho.

A despeito de ser incontestável o dever legal de depor, a inobservância dos requisitos elencados no artigo 218 da Lei Adjetiva Penal torna a condução coercitiva arbitrária, como sói ter ocorrido no âmbito da operação trapaça.

Isso porque a condução coercitiva, no caso em apreço, foi determinada “sem” a prévia intimação dos conduzidos, não havendo sequer notícia de que os mesmos haviam se recusado a depor sobre os fatos investigados.

A par disso, conforme se depreende do bojo da decisão judicial, a medida coercitiva foi embasada na necessidade de ser evitada a combinação prévia de versões entre testemunhas e investigados. A argumentação, na realidade, revela-se inidônea, mais aproximando a “testemunha” de um investigado, uma vez que a conduta de acertar versões, se comprovada, poderia, em tese, configurar os delitos de falso testemunho e obstrução de Justiça, motivo suficiente para que as “testemunhas” figurassem, na realidade, como investigados no apuratório criminal.

Com efeito, há uma presunção, em abstrato, de possível acerto preliminar entre os depoentes, não havendo, contudo, elementos concretos que permitam tal inferência. Em suma, supõe-se a má-fé daquele que tem a obrigação legal de falar a verdade, o que, evidentemente, não encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio, pois, segundo famosa parêmia, “a boa-fé se presume; a má-fé se prova”.

De outro giro, não é possível dissociar a escorreita aplicação do artigo 218 do CPP do princípio da proporcionalidade, que adquire hercúleo relevo no espectro penal ao funcionar como limitador de eventuais excessos perpetrados pelo juiz. A restrição da liberdade individual, como cediço, traduz-se em medida excepcionalíssima e subsidiária, devendo ocorrer apenas quando necessária a proteção de outro bem juridicamente relevante.

Ao tratar do assunto, o ministro Roberto Barroso ressaltou, no HC 124.306/RJ, que “(…) o princípio da proporcionalidade destina-se a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos estatais, seu equilíbrio ou justa medida. Em uma palavra, sua justiça. Conforme entendimento que se tornou clássico pelo mundo afora, a proporcionalidade divide-se em três subprincípios: (i) a adequação, que identifica a idoneidade da medida para atingir o fim visado; (ii) a necessidade, que expressa a vedação do excesso; e (iii) a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste na análise do custobenefício da providência pretendida, para se determinar se o que se ganha é mais valioso do que aquilo que se perde”.

Nesse cenário, a condução coercitiva de testemunhas, na hipótese em liça, mostra-se extremamente desproporcional; seja porque feita à míngua de prévia intimação daqueles que deveriam depor, em flagrante violação ao artigo 218 do CPP; seja porque a fundamentação expendida pelo juízo, ao admitir possível combinação de versões para justificar a condução forçosa, culmina por aproximar a figura da testemunha a de um investigado, malferindo, por via oblíqua, a decisão proferida pela corte suprema em sede de arguição de descumprimento de preceito fundamental; seja porque há uma inversão de valores, em que se prestigia a má-fé em detrimento da boa-fé.

De mais a mais, se o STF vedou a possibilidade de condução coercitiva de investigados, que, ao final da persecução penal, podem vir a suportar os efeitos de uma sentença condenatória, com mais razão é preciso admitir que a condução coercitiva de testemunhas deve observar os estritos termos do artigo 218 do CPP, como decorrência lógica da aplicação do princípio da proporcionalidade. Entendimento diverso, aliás, implicaria reconhecer que a situação da testemunha se apresentaria mais gravosa em comparação com a do próprio investigado, o que, em certa medida, seria uma aberração.

Sob outra ótica, curial salientar que a condução coercitiva, deferida em desconformidade com o artigo 218 do CPP, acarreta danos incalculáveis à integridade psíquica e à imagem do indivíduo, podendo prejudicar, inclusive, a credibilidade do seu testemunho. Deveras, imagina-se que ninguém, em sã consciência, gostaria de ser despertado, de supetão, por policiais federais, às 6h, na porta de sua residência, com o fito de ser conduzido, exclusivamente, para prestar depoimento na condição de testemunha. A infeliz surpresa, no particular, abalaria emocionalmente aquele que nada deve, situação que poderia, inexoravelmente, influenciar o seu depoimento.

Por tais breves premissas, espera-se que o episódio retratado no presente arrazoado não seja banalizado e que decisões judiciais deste jaez não se tornem corriqueiras, sob pena de o sistema processual penal quedar desacreditado. Vivemos em tempos estranhos, mas a proibição do excesso é decorrência natural do Estado Democrático de Direito. Sem a necessária limitação do poder estatal, retrocederemos a um estado policialesco, em que a exceção se tornará regra. O combate à impunidade deve ser incentivado, desde que em estrita consonância com os direitos fundamentais.

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