Opinião

É possível o julgamento de demandas eleitorais repetitivas

Autor

  • João Paulo Lordelo

    é procurador da República em auxílio à Procuradoria-Geral da República pós-doutor (Universidade de Coimbra) doutor em Direito (UFBA) coordenador do Grupo de Trabalho sobre Processos Coletivos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) membro da comissão de juristas designada pela Câmara dos Deputados para elaboração do projeto reforma da Lei de Lavagem de Capitais e ex-defensor Público Federal.

10 de março de 2018, 6h55

Logo que editado, o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) provocou — e ainda provoca — inúmeros questionamentos a respeito da sua incidência sobre os demais campos processuais, sobretudo em razão da redação do seu artigo 15, que trata da sua aplicabilidade subsidiária e supletiva.

O aludido dispositivo é peremptório quanto à possibilidade de o novo diploma processual incidir sobre a seara eleitoral: "[N]a ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente" (artigo 15).

É cediço, contudo, que o campo do processo eleitoral não dispõe de muito tempo para controvérsias procedimentais, tendo em vista a urgência do processo eleitoral, a exigir uma regulamentação célere e uniforme.

Nessa linha, um dos pontos controvertidos reside em saber se é aplicável à seara eleitoral a sistemática de julgamento de casos repetitivos, que, na dicção do artigo 928 do novo CPC, compreende o incidente de resolução de demandas repetitivas, bem como os recursos especial e extraordinário repetitivos.

Diante das incertezas a respeito da aplicabilidade do novo CPC, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 23.478/2016, que estabelece as diretrizes gerais sobre o tema.

O referido diploma prevê, em seu artigo 2º, parágrafo único, a regra geral de aplicabilidade do novo CPC: "[A] aplicação das regras do Novo Código de Processo Civil tem caráter supletivo e subsidiário em relação aos feitos que tramitam na Justiça Eleitoral, desde que haja compatibilidade sistêmica".

Não se veda, portanto, a incidência dos novos institutos aos processos eleitorais, o que pode ocorrer de forma supletiva ou subsidiária, desde que verificada a compatibilidade sistêmica.

Quanto ao ponto, é importante estabelecer algumas distinções conceituais. De um lado, a subsidiariedade diz respeito à incidência de um determinado diploma normativo, na hipótese de haver lacuna na lei principal. Cuida-se, portanto, de hipótese de integração sistêmica da legislação. Já a aplicação supletiva ou complementar ocorre na hipótese de uma lei completar a outra, conferindo-lhe um sentido geral[1].

O tema do julgamento de casos repetitivos, dentre muitos outros, não encontra previsão na legislação processual eleitoral, cuja marca é a tipicidade. Diante de tal lacuna, a Resolução TSE 23.478/2016, em seu artigo 20, estabeleceu expressamente que "[a] sistemática dos recursos repetitivos prevista nos arts. 1.036 a 1.042 do Novo Código de Processo Civil não se aplica aos feitos que versem ou possam ter reflexo sobre inelegibilidade, registro de candidatura, diplomação e resultado ou anulação de eleições".

A partir de tal redação, duas observações podem ser feitas de imediato.

A primeira delas consiste na percepção de que o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), regulado entre os artigos 976 e 987 do novo CPC, não foi mencionado pela resolução, de modo que a sua aplicação, no âmbito dos tribunais regionais eleitorais, fica plenamente assegurada. É possível, assim, conceber o julgamento de demandas eleitorais repetitivas, bem como recursos eleitorais, de natureza ordinária, no âmbito dos tribunais regionais.

Para tanto, é suficiente a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito — em primeira ou segunda instância —, bem como o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (artigo 976, I e II, novo CPC).

Uma segunda observação que pode ser extraída da resolução consiste no registro de que, quanto ao recurso especial repetitivo, seu cabimento não restou vedado em absoluto, impedindo-se a incidência do novo CPC apenas nos feitos que versem ou possam ter reflexo sobre inelegibilidade, registro de candidatura, diplomação e resultado ou anulação de eleições.

Assim sendo, é plenamente possível, por exemplo, a instauração tanto do incidente de resolução de demandas repetitivas — no âmbito dos tribunais regionais — quanto de recursos especiais repetitivos — no âmbito do TSE — em temas como o da prestação de contas, cujos processos, mesmo no caso de desaprovação, podem não ter consequência alguma ao candidato.

A bem da verdade, a sistemática de julgamento de casos repetitivos, que restou potencializada pelo novo Código de Processo Civil, é um fenômeno verdadeiramente global. Destacam, na experiência jurídica estrangeira, o procedimento-modelo alemão (Musterverfahren), os Representative Proceedings e os Test Cases australianos, a Group Litigation Order inglesa, dentre muitos outros exemplos. Em todos eles, há o reconhecimento da técnica como uma forma de tutela coletiva de direitos, prestigiando-se a economia processual e da aplicação uniforme da lei[2].

Diferentemente das ações coletivas, o julgamento de casos repetitivos parte do pressuposto de que já existem inúmeros processos com idêntica questão jurídica, a merecer um tratamento célere e uniforme, a partir de um caso representativo. Assim sendo, com maior razão, deve ser reconhecida a sua aplicação na seara eleitoral, assegurando-se não apenas a celeridade do processo eleitoral, mas também a igualdade entre os candidatos.

Indubitavelmente, o julgamento de recursos especiais repetitivos permitiria ao TSE o julgamento em massa de inúmeros processos pendentes não apenas na corte superior, mas também no âmbito dos TREs, de forma célere, diminuindo-se o tempo e o custo do julgamento de questões meramente repetitivas — muitas delas sem grandes repercussões práticas no campo político.

Na hipótese de a suspensão dos processos afetados poder causar qualquer prejuízo, nos eleitos eleitorais, uma solução simples e prática consistiria na redução do prazo de um ano para julgamento, estabelecido no artigo 1.037, parágrafo 4º, ou até mesmo a possibilidade de o julgamento em bloco, a partir do recurso representativo, ser feito sem a suspensão das causas afetadas, que continuariam a tramitar normalmente.

Em síntese, não parece haver motivos para a rejeição dos incidentes representativos no âmbito da Justiça Eleitoral. Ao revés, o seu reconhecimento representaria um grande avanço, a caminho de uma tutela jurisdicional mais isonômica e eficiente.


[1] ZANETI JR., Hermes. Aplicação supletiva, subsidiária e residual do CPC ao CPP. Precedentes normativos formalmente vinculantes no processo penal e sua dupla função. Pro futuro in malam partem (matéria penal) e tempus regit actum (matéria processual penal). In: CABRAL, Antonio do Passo; PACELLI, Eugênio; CRUZ, Rogerio Schiatti (Coord). Coleção repercussões do Novo CPC: Processo penal. Vol. 13. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 461.
[2] BLENNERHASSETT, Joanne. Civil Justice Systems: A comparative Examination of Multy-Party Actions. Oxford; Portland, Oregon: Hart Publishing, 2016, p. 16 e ss.

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    é procurador da República, ex-defensor Público Federal, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador visitante na Universidade de Sevilha e professor de Direito Processual Civil.

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