Diário de Classe

O ensino jurídico brasileiro vive a sua morte anunciada

Autores

  • Emerson de Lima Pinto

    é professor advogado pós-doutorando em Direito doutor em Filosofia e mestre em Direito Público pela Universidade Feevale. Também é membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Giovanna Dias

    é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

10 de março de 2018, 8h01

Há décadas fala-se na crise do ensino jurídico brasileiro, na medida em que se atribui também a ela a responsabilidade pela falta de respostas do Direito às demandas sociais. Portanto, não é uma questão nova, mas permanece latente e de extrema relevância, sendo debatida e denunciada por vários juristas comprometidos com o caminho para o qual a juventude de estudantes direcionará o Direito.

No mesmo sentido, aqui na ConJur, juristas como Lenio Streck (ler aqui ou aqui), Alexandre Morais da Rosa (aqui) e Francisco Soares Campelo Filho (aqui) escrevem acerca das consequências que o ensino acrítico traz para o Direito no cotidiano das práticas jurídicas. Ou seja, é quase como o livro Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez: algo está sendo exageradamente anunciado e continuamos fazendo nada. A reação tem sido cada vez mais de abstenção e inércia.

No entanto, há um pano de fundo por trás dessas consequências que vêm sendo demonstradas, servindo de pilar estrutural para essa problemática. Eis, então, o nosso objetivo: esclarecer que tudo isso que está sendo “anunciado” possui um motivo, e nada mais é do que o senso comum teórico dos juristas e a dificuldade de compreensão por parte dos operadores do Direito.

O senso comum jurídico (também chamado de “sentido comum” aos juristas), por exemplo, trata-se da linha de raciocínio teórica que é reproduzida no ensino e, consequentemente, aplicada na prática por juízes(as), promotores(as), advogados(as), delegados(as) e desembargadores(as), por exemplo, como uma verdade absoluta, inerente ao discurso jurídico, como se ele fosse autossuficiente[1].

É como se o Direito lato sensu já possuísse uma linguagem própria, e as outras fundamentações serão decorrentes dela. Para desenvolver melhor essa questão, vale a pena tratar de autores que direcionaram seus estudos para uma nova produção de sentido teórico e comunicativo.

Na tentativa de defender uma educação que fosse mais abrangente para o indivíduo, preparando-o enquanto sujeito intelectual, Hans-Georg Gadamer, inserido em um contexto de pós-guerra e pós-nazismo, na primeira etapa de sua longa pesquisa[2], manteve sua atenção voltada ao estudo dos “conceitos-chave” da filosofia e da tradição grega clássica.

Tendo em vista ser essa a base de todo o pensamento e raciocínio da sociedade ocidental, Gadamer viu aí uma oportunidade de dissecar os preconceitos que envolvem tais conceitos, com a finalidade de desconstruir aqueles enganos do “saber prévio”, já olvidados, e que, por sua vez, produziram sentido, tanto para a Filosofia quanto para o próprio Direito.

Esses sentidos estão presentes na tradição e na cultura ocidental, fato percebido pelo filósofo alemão, ao compreender que são os preconceitos esquecidos e não percebidos que nos afastam da consciência da autoridade da tradição. Sua hermenêutica filosófica busca, pois, esclarecer as condições sob as quais surge a compreensão, com foco na análise de seu processo global. É exatamente isso que significa dar-se conta das próprias antecipações e suspender os preconceitos.

Mas o que isso tem a ver com o Direito? Bem, são os pré-conceitos não percebidos que nos distanciam, também, da consciência de qualquer pré-compreensão. Antes do advento da CF/88, o ensino jurídico era focado no estudo da lei, quando a base de sua tradição ainda era a escola positivista clássica (não iremos adentrar na discussão acerca das diferenças entre suas vertentes, nem da continuidade dessa ideia nos dias atuais e dos limites que estão envolvidos nesse debate).

A grande questão proposta é o quanto isso produziu de efeitos para o ensino jurídico, que restou direcionado para o estudo da legislação, daquilo que foi positivado pela autoridade legítima, “pouco comprometido com a formação de uma consciência jurídica e do raciocínio jurídico capaz de situar o profissional do Direito com desempenhos eficientes perante as situações sociais emergentes”[3]. Não há novas produções de sentido, como proposto em Gadamer. Há, portanto, a mecanização e reprodução do direito material e formal, conforme alertava Benjamin[4] em sua obra sobre a arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

Após a década de 80, com a tentativa de implementação do Estado Democrático de Direito, o ensino jurídico passou a ter um enfoque maior na jurisprudência, e o problema se repetia com outra vertente da escola baseado em uma ideia de positivismo jurisprudencialista. O que mais se estuda na graduação acerca das questões que envolvem o Direito é o que os tribunais e os juízes entendem, como se eles é que dissessem exclusivamente o que o Direito é e quais os critérios para isso,[5] de forma que ainda não se tem um ensino suficientemente crítico em relação às decisões e ao próprio conceito de Direito.

No entanto, onde fica o estudo da doutrina nisso tudo? Que tarefa ela exerce concretamente? De que forma os estudantes são instigados a lerem os livros clássicos de Teoria do Direito, de Filosofia do Direito e, inclusive, da própria dogmática jurídica? Como vamos estar preparados para dar respostas a casos complexos, se não entendemos o Direito como um fenômeno complexo?

Verificamos que, nas escolas de Direito, a maioria dos estudantes apenas têm esse contato direto com um ensino crítico quando se envolvem em núcleos de extensão e de pesquisa, de maneira que aqueles que direcionam o seu percurso profissional para a reprodução tecnicista passam por um ensino jurídico acrítico. Como se o ensino que produz pensamento crítico e não apenas o reproduz tivesse um caráter secundário, reduzido apenas àqueles alunos que têm a possibilidade e querem buscar por isso.

Dessa forma, é fundamental um enfoque maior no estudo da doutrina jurídica na própria graduação, e não apenas na lei ou na jurisprudência, com a preservação do diálogo proposto por Gadamer, capaz de perceber os saberes prévios que envolvem a dogmática e que estão embutidos na fundamentação e no raciocínio teórico-jurídico, já esquecidos e superados pelo sentido comum teórico, a fim de manter um olhar crítico sobre ela e sobre o Direito no geral.

Apenas com um ensino que também englobe a doutrina jurídica é que se pode fazer uma crítica à própria tradição da dogmática, que tanto vem sendo denunciada ao longo da história. Repetimos: não se trata de uma questão nova.

Gadamer, assim como Platão, valorizou a prática do diálogo ético, antecipador de um diálogo hermenêutico, aquele que produz uma postura crítica, pois é apenas dessa forma que se pode criar algo novo e, por conseguinte, produzir novos horizontes teóricos.

Desse modo, deve haver o reconhecimento da relevância no ensino orientado também na doutrina jurídica, pois, a partir da análise hermenêutica dos posicionamentos acerca das questões que envolvem o Direito, tanto no plano filosófico quanto no plano dogmático e normativista, por parte dos estudantes e dos professores, podem-se produzir novos sentidos e novas respostas às complexidades que envolvem o Direito.

Não se defende um ensino que estude apenas a fonte da doutrina, mas se reconhece a importância que ela possui (ou, pelo menos, deveria possuir) para o Direito. O Direito e a Constituição são, em essência, uma construção que vai além da norma positiva, da história judicial e de meras construções de jurisprudências, mas que a contemporaneidade deve integrar todos esses elementos permanentemente no seu agir hermenêutico de forma equilibrada, bem, quanto a isso não restam dúvidas.

Portanto, uma decisão judicial deve verificar que o texto constitucional passa a se situar no âmbito da interpretação/concretização das normas que devem pautar-se por limites estruturados pelo diálogo hermenêutico entre a norma constitucional e a Constituição, tendo como parâmetro a jurisprudência e a doutrina, observados os objetivos do Estado Democrático de Direito.

Não é difícil ver o quanto o Direito exclama por um ensino crítico, que valorize o sujeito intelectual que é o seu estudante, para que ele, desde a graduação, possa ter conhecimento do que significa o giro-ontológico linguístico ou de que Kelsen não separou o Direito da Moral, por exemplo.

Então, ao nos depararmos com a situação inusitada e de urgência, como no caso da inadequada (para dizer o mínimo) intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro – ver aqui), é possível externar e construir, de forma crítica, um caminho que indique uma possível resolução adequada para o fenômeno social. Enquanto isso não acontecer, continuaremos anunciando a morte do ensino jurídico.

 


[1] Em caso de interesse no aprofundamento da questão, ver: STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 3ª ed. tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

[3] BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Direito. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2004/ces0055_2004.pdf>. Acesso em: 2 de mar. 2018.

[4] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política Vol. I. 7 edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 165

[5] STRECK, Lenio. Breve ranking de decisões que (mais) fragilizaram o Direito em 2016. Consultor Jurídico. 29 de dez. 2016

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    é professor, advogado, pós-doutorando em Direito, doutor em Filosofia e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Também é membro do Grupo de Pesquisa Dasein.

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    é graduanda do curso de Direito da Unisinos, bolsista de iniciação científica da Fapergs e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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