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A importância do contraditório no processo coletivo ambiental

10 de março de 2018, 8h00

Por Álvaro Luiz Valery Mirra

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O processo judicial, nos modelos de Estados democráticos em geral, e no modelo do Estado Democrático Participativo em especial, consagrado no Brasil, deve ser eminentemente participativo[1].

Isso no sentido de que o processo deve tanto viabilizar, em determinados casos, como ocorre com o processo coletivo ambiental, a participação do cidadão — individualmente, em grupo ou representado por entes intermediários — nos destinos da sociedade e do país (participação pelo processo) quanto permitir, ao longo de todo o procedimento, intensa participação dos sujeitos da relação processual; não só do juiz como também das partes (participação no processo)[2].

Do ponto de vista jurídico-processual, a participação no processo civil, que aqui interessa, encontra expressão destacada no contraditório, assegurado pela Constituição Federal e disciplinado por normas infraconstitucionais.

O contraditório, já o dizia Calamandrei, constitui princípio fundamental, força motora e garantia suprema do processo civil moderno. Expressa ele, notadamente, a especial posição das partes na relação processual, frente ao juiz, como sujeitos de direitos, poderes, faculdades, deveres e ônus. Por força do contraditório, as partes não se apresentam diante do juiz na condição de súditos, sobre os quais recaem apenas deveres a cumprir. Diversamente, sob a égide do princípio do contraditório, as partes têm também direitos a serem respeitados, os quais convergem, como mencionado, para a ideia de participação durante todo o desenrolar do procedimento[3].

No Brasil, o contraditório está consagrado como princípio constitucional no artigo 5º, LV, da CF. Trata-se de inovação da maior importância, já que, a partir da sua constitucionalização, o contraditório passou de uma noção eminentemente técnico-jurídica, como a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”[4], para uma noção verdadeiramente política, baseada na concepção de participação como fator de legitimação do exercício da jurisdição[5].

No processo coletivo ambiental, como não poderia ser diferente, o contraditório apresenta a mesma importância, como garantia de participação dos litigantes no curso do procedimento, o que não afasta a importância da atuação do juiz, o qual tem também relevante papel na efetivação do contraditório. Daí falar-se na dupla destinação do contraditório, como direito das partes e dever do juiz[6].

Como direito das partes, o contraditório, no processo coletivo ambiental, pressupõe um conjunto de atividades processuais a serem desenvolvidas pelos litigantes no intuito de influir no resultado final do exercício da jurisdição no caso concreto. Para o desempenho dessas atividades, o sistema de direito processual coletivo confere às partes uma ampla gama de direitos processuais, a serem exercidos desde o início e durante todo o desenrolar do procedimento: direito de formular pedidos e requerimentos, direito de apresentar alegações; direito de produzir as provas pertinentes à comprovação dos fatos alegados; direito de tomar conhecimento das alegações de fato e de direito da parte contrária e das provas pretendidas e produzidas por esta última; direito de ter ciência dos elementos fáticos e jurídicos trazidos aos autos por terceiros, pelo Ministério Público (quando este intervém na condição de fiscal da ordem jurídica) ou em decorrência da atividade ex officio do juiz; direito de discutir todos esses elementos em juízo[7].

Nesses termos, a participação em contraditório no processo coletivo ambiental, como direito das partes, supõe que se permita a estas últimas deduzirem as suas razões de fato e de direito, oferecerem as suas provas, oporem-se às alegações do adversário, controlarem as provas deste, conhecerem e terem a possibilidade de se pronunciar sobre toda alegação, peça, documento ou qualquer outro elemento de convicção carreado aos autos. Dito de outro modo, além de autorizar os litigantes a apresentarem seus argumentos e suas provas e a discutirem os argumentos e as provas da parte contrária, o contraditório no processo coletivo ambiental exige que todo e qualquer elemento suscetível de influenciar a solução do litígio seja submetido à discussão das partes e dos eventuais intervenientes.

Relativamente ao papel do juiz na efetivação do contraditório, diz-se que o magistrado deve tanto fazer observar o contraditório quanto observar, ele mesmo, o contraditório[8].

Essa concepção mais atualizada do contraditório, que toma como ponto de análise a atividade do órgão jurisdicional, é particularmente relevante se considerada a evolução recente do Direito Processual Civil (individual e coletivo), em que se verifica aumento expressivo dos poderes do juiz, seja na direção do processo, seja na instrução da causa, seja, ainda, na adoção de providências para a efetivação concreta das decisões judiciais. Segundo se tem entendido, desse papel mais ativo e “forte” do juiz no processo civil deriva a exigência cada vez maior da observância do contraditório, para que as partes possam, efetivamente, influir nas decisões judiciais[9].

Sob esse prisma, então, há uma relação direta e necessária entre o aumento dos poderes do juiz no processo civil e a necessidade de garantir-se a observância do contraditório, da mesma forma que a efetividade do contraditório entre as partes supõe a ampliação da atividade ex officio do juiz no processo[10].

No processo coletivo ambiental, a situação não é diversa, dado que também nele se verifica intensa atividade ex officio do juiz, devido, notadamente, à indisponibilidade do direito protegido — direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado —, com expressivo aumento dos poderes do magistrado na condução do feito, na instrução probatória e na concretização dos provimentos jurisdicionais[11]. Bem por isso, em tal modalidade de processo coletivo, impõe-se, por igual, o reforço do contraditório.

Isso significa que também no processo coletivo ambiental o juiz deve fazer observar o contraditório e observar, ele mesmo, o contraditório. Fazer observar o contraditório implica, para o juiz, assegurar a realização do contraditório entre as partes litigantes, de modo que cada um dos contendores possa amplamente exercer os seus direitos, os seus poderes e as suas faculdades processuais e reagir às atividades processuais desenvolvidas pelo outro, com pleno respeito à bilateralidade da audiência no curso do procedimento. Já observar o contraditório, como dever do juiz, tem o significado de impor ao órgão julgador a manutenção de permanente diálogo com as partes, a fim de propiciar a participação destas na formação do seu convencimento e na tomada das suas decisões[12].

Registre-se, a propósito, que importante corrente doutrinária alude ao princípio do diálogo como um dos novos princípios do Direito Processual emergentes no século XXI, ao lado dos princípios da lealdade e da celeridade. Esses novos princípios diretores do Direito Processual, comuns a todos os processos que se pretendem équos, traduzem, no final das contas, segundo se tem entendido, o anseio generalizado por uma autêntica democracia processual, inarredavelmente participativa[13].

Dessa maneira, no diálogo estabelecido com as partes, o juiz deve fazer com que os litigantes se exprimam em tempo útil e de forma exaustiva sobre todos os fatos pertinentes à controvérsia, esclareçam e complementem suas alegações, se estas se mostrarem dúbias ou insuficientes, discriminem as provas a serem produzidas e compreendam adequadamente a distribuição do ônus da prova no caso concreto e as considerações jurídicas suscetíveis de influenciar a solução do litígio[14]. Ademais, vislumbrando a possibilidade de conhecimento de ofício de determinadas matérias ou de qualificação jurídica dos fatos da causa diversa daquela dada pelas partes, o juiz deve, igualmente, por força do contraditório, provocar a manifestação dos interessados, antes de decidir[15], a fim de evitar a prolação das denominadas “sentenças-surpresa”[16].

No processo coletivo ambiental, como não poderia ser diferente, o diálogo do juiz com os litigantes reveste-se da mais alta relevância, em face das inúmeras hipóteses de atuação ex officio do magistrado nos litígios que envolvem a aplicação do direito do meio ambiente.

Mencionem-se, a título de ilustração, as questões relacionadas ao controle da legitimidade ativa do demandante, com a investigação do preenchimento dos requisitos de representatividade adequada por alguns dos legitimados ativos (por exemplo, as associações civis); à concessão de medidas de urgência diversas das solicitadas, pela aplicação do princípio da fungibilidade das tutelas de urgência ou do princípio da menor restrição possível[17]; à imposição de medidas de apoio para a efetivação de sentenças e decisões proferidas (por exemplo, multas cominatórias) ou de providências capazes de assegurar o resultado prático equivalente ao do adimplemento de obrigações ou deveres de fazer e não fazer determinadas no contexto das tutelas preventiva, de precaução e reparatória das agressões ao meio ambiente; à requalificação jurídica dos fatos da causa, por força da regra jura novit curia.

Não há dúvida de que, nessas situações todas, o juiz pode/deve atuar de ofício, independentemente da prévia provocação de quem quer que seja, para reconhecer, se o caso, a ilegitimidade de parte ativa, para determinar as providências provisórias ou finais necessárias à efetivação das decisões proferidas e para dar nova qualificação jurídica aos fatos da causa. No entanto, o que o juiz não pode fazer, em princípio, antes de decidir a respeito, é deixar de provocar a manifestação das partes e daqueles que intervêm no processo, como o Ministério Público, quando este atua na condição de fiscal da ordem jurídica[18].

A ressalva que cabe aqui, sem dúvida, é a de determinadas situações — frequentes, vale salientar, nos processos ambientais — caracterizadas pela urgência, em que não se recomenda a prévia manifestação das partes, antes da adoção de providências provisórias, finais ou executivas, sob pena de resultar praticamente ineficaz o provimento jurisdicional a ser emitido. Ainda assim, a necessidade de instauração do contraditório na sequência é medida inafastável (contraditório diferido ou postergado)[19].

Como se pode perceber, o princípio do contraditório, com o significado atual que lhe vem sendo atribuído, assume grande importância no processo coletivo ambiental, como fator de legitimação do exercício da jurisdição na solução de litígios relacionados à defesa do meio ambiente. Em especial, o contraditório impõe que o julgador dialogue permanentemente com os sujeitos processuais diretamente interessados nas decisões a serem proferidas e colha o pronunciamento destes sobre as matérias em exame, mesmo quando passíveis de exame ex officio. Do contrário, sem o respeito ao contraditório, na dimensão indicada, o ativismo judicial no processo coletivo ambiental, reconhecidamente legítimo, transforma-se em autoritarismo judicial, evidentemente ilegítimo[20].


[1] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 517.
[2] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 174 e ss.; p. 516 e ss.
[3] CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia: conferenze tenute alla facoltà di diritto dell’Università Nazionale del Messico: Padova: Cedam, 1954, p. 122.
[4] É a clássica lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida.
[5] COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezioni sul processo civile. 2ª ed. Bologna: Il Mulino, 1995, p. 71; DINAMARCO, Cândido Rangel. O princípio do contraditório e sua dupla destinação. In: DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, v. 1, p. 124-125.
[6] É a lição de DINAMARCO, Cândido Rangel, em termos gerais, para o processo civil como um todo (individual e coletivo) — O princípio do contraditório e sua dupla destinação, cit., p. 124.
[7] DINAMARCO, Cândido Rangel. O princípio do contraditório e sua dupla destinação, cit., p. 126-127; MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 523-524.
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 1, p. 220. No novo CPC, arts. 7º e 9º.
[9] COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele, op. cit., p. 73; WIEDERKEHR, Georges. Le droit de la défense et le principe de la contradiction. In: D’AMBRA, Dominique; BENOÎT-ROHMER, Florence; GREWE, Constance (Coord.). Procédure(s) et effectivité des droits. Bruxelles: Bruylant, 2003, p. 166.
[10] PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. 3ª ed. Napoli: Jovene, 1999, p. 219.
[11] GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito Processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Coord.). Direito Processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 13.
[12] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 528.
[13] GUINCHARD, Serge; DELICOSTOPOULOS, Constantin S.; DELICOSTOPOULOS, Ionnis S.; DOUCHY-OUDOT, Mélina; FERRAND, Frédérique; LAGARDE, Xavier; MAGNIER, Véronique; FABRE, Hélène Ruiz; SINOPOLI, Laurence; SOREL, Jean-Marc. Droit processuel: droit commun et droit compare du procès équitable. 4ª ed. Paris: Dalloz, 2007, p. 1034-1035.
[14] Idem, p. 900 e 1054. No novo CPC, arts. 321 e 357, II, III, IV, e parágrafos 1º e 3º.
[15] DINAMARCO, Cândido Rangel. O princípio do contraditório e sua dupla destinação, cit., p. 135; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda à luz do contraditório. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 38-42.
[16] COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele, op. cit., p. 74. No novo CPC, art. 10.
[17] Sobre o princípio da menor restrição possível, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113-116.
[18] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 531-532.
[19] Idem, p. 531-532, nota 1449. No novo CPC, art. 9º, parágrafo único, I.
[20] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p.532.