Limite Penal

Entenda o que é a atuação contraintuitiva no processo dual

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9 de março de 2018, 8h00

Spacca
O contato com o conhecimento produzido na área das ciências cognitivas quanto aos limites de racionalidade no processo de tomada de decisões, a partir de décadas de experimentos precisos e controlados[1] conduzidos por psicólogos empíricos e cientistas cognitivos, pode ser, à primeira vista, desconfortável e provocar resistência, sobretudo no âmbito jurídico, em que ainda predomina o modelo ideal de racionalidade[2] — ancorado na tradição de que a decisão judicial decorre de um silogismo perfeito.

Talvez com receio de se inclinar à psicologia clínica de reflexos lombrosianos ou embalados mesmo por esse ideal de racionalidade que situa a razão — e somente ela — no centro do processo de tomada de decisão no âmbito jurídico (ou, ainda, agindo com a usual soberba em relação a outras áreas do conhecimento), nota-se que os operadores do Direito, em geral, resistem e cerram portas ao necessário diálogo com as ciências cognitivas.

Sob esse aspecto, ao não se permitirem arejar pelas correntes teóricas e insights da Psicologia Cognitiva, Psicologia Social, Neurociência, Sociologia, Filosofia, e outras áreas do saber, os intricados esquemas jurídicos conceituais, teóricos, dogmáticos e hermenêuticos — de que tanto se orgulha o jurista e a que se agarra tal qual aquele que defende um patrimônio —, ficam em descompasso com o seu tempo. Essa aparente insegurança da abertura para a compreensão dos complexos fenômenos cognitivos gera o mecanismo de defesa consistente em deixar tudo como está, prenhe de excesso de confiança e redução de dimensão, ingênuo, como arriscamos dizer.

A despeito da possível resistência no âmbito jurídico, é impossível conceber, hoje, uma teoria da decisão judicial que não se sirva do vasto arsenal teórico produzido na área das ciências cognitivas, sobretudo pelos pesquisadores das teorias do processo dual[3]. É esse o desafio a que nos lançamos no livro Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva[4], publicado pela Editora EMais (aqui).

Ao explorar e pesquisar a forma através da qual as decisões e julgamentos humanos desviam-se de modo previsível do modelo ideal de racionalidade, pesquisadores desenvolveram inúmeros modelos teóricos agrupados sob o rótulo genérico de teorias do processo dual. As teorias do processo dual edificaram-se em torno da distinção de dois modos de pensamento coexistentes[5]: um automático (intuitivo) e outro deliberado (controlado). A despeito de suas inúmeras divergências epistemológicas, tais modelos teóricos convergem no sentido de reconhecer que o raciocínio consciente, deliberado, controlado e calculado — através do qual nossas decisões seriam tomadas a partir da análise cuidadosa das opções disponíveis — não é o único modo operacional da nossa mente/cérebro. Mas que, pelo contrário, pensamentos frequentemente emergem de modo automático/involuntário (intuitivo), sem que saibamos indicar os caminhos (a cadeia ordenada de pensamentos ou operações cognitivas) percorridos para se chegar a eles, conformando comportamentos, convicções, sentimentos e, até mesmo, decisões e julgamentos.

Aliás, os pesquisadores das teorias do processo dual revelaram que a intuição, por ser automática, rápida e facilmente evocada, frequentemente rouba a cena racional de modo silencioso, sobrepondo-se à deliberação ou orientando-a, mesmo quando nos deparamos com problemas difíceis que demandariam o protagonismo do raciocínio lento, cuidadoso e deliberado. Assim, observou-se que tomadores de decisão usualmente confiam em respostas intuitivas/automáticas ou ajustam o julgamento a partir delas, o que pode levar a decisões subotimizadas — eis que uma decisão ótima, em certas circunstâncias, demanda o engajamento dos processos mentais deliberados.

Embora essas duas famílias de operações mentais/cognitivas tenham recebido diversas classificações na Psicologia Cognitiva, o livro Vieses da Justiça fia-se aos termos Sistema 1 (processos/esquemas mentais automáticos) e Sistema 2 (processos/esquemas mentais deliberados). A escolha pelos termos Sistema 1 e Sistema 2 decorreu do referencial teórico adotado, cujo ponto de partida é a escola de pesquisa desenvolvida no interior da Psicologia denominada de “programa de heurísticas e vieses”. A inauguração da abordagem das heurísticas e vieses remonta ao ensaio Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases, escrito por Amos Tversky e Daniel Kahneman, centrado no estudo das heurísticas simplificadoras (atalhos cognitivos ou regras de ouro/regras empíricas) do Sistema 1.

O uso da linguagem dos sistemas, por essa tradição da Psicologia, não pretende inferir a existência de duas entidades separadas, situadas em locais distintos na mente/cérebro e que interagem entre si ou com outras partes. Consoante fizemos questão de alertar, o “termo sistemas é empregado no sentido de agregar sob o mesmo rótulo um feixe de processos mentais cujos aspectos distintivos residem, principalmente, nas diferenças operacionais de velocidade, controlabilidade e conteúdo”.

Nesse contexto, procuramos, inicialmente, familiarizar o leitor com o modo dual de pensamento, apresentando as principais características operativas de ambos os sistemas que se engajarão na complexa tarefa de decidir, em síntese, pontua-se: o Sistema 1 – automático, intuitivo, rápido, desprovido de esforço, busca coerência, circunscreve-se à detecção de relações simples recorrendo à memória associativa, infere causalidade (mesmo quando inexistente), desdenha do abstrato, impõe narratividade e sentido, operando a partir de uma tendência natural à redução de dimensão, muitas vezes, negligencia ambiguidade e suprime dúvidas, chegando a conclusões precipitadas por intermédio de evidências limitadas — guiando-se apenas pelo que vê — o que foi sintetizado por Kahneman no postulado “what you see is all there is” (WYSIATI), inexiste percepção de controle voluntário; e o Sistema 2 – explícito, consciente demorado, racional, analítico, deliberado, amparado em regras normativas, exigindo alocação de atenção e esforço cognitivo, apresenta aptidão para adotar ajustes de tarefas (task sets) e para “seguir regras, comparar objetos com base em diversos atributos e fazer escolhas deliberadas a partir de opções”[6].

No âmbito das operações cognitivas automáticas do Sistema 1, enfocamos as heurísticas e vieses de julgamento[7]. A abordagem das heurísticas e vieses, inaugurada por Kahneman e Amos Tversky, forjou a percepção de que as pessoas, ao se depararem com uma pergunta complexa (pergunta-alvo), usualmente empregam regras simplificadoras ou atalhos mentais, respondendo a uma pergunta mais fácil (pergunta-heurística) em seu lugar, sem se dar conta da substituição. Sob esse aspecto, as heurísticas surgidas no âmago do Sistema 1 tendem a poupar energia mental e, muitas vezes, encontram respostas adequadas no processo diário de julgamento e tomada de decisão.

No entanto, o emprego de tais heurísticas intuitivas do Sistema 1 torna-se problemático quando se está diante de uma pergunta difícil — cuja complexidade exigiria um engajamento do Sistema 2 —, contexto no qual os atalhos mentais podem levar a erros (vieses) previsíveis e sistemáticos de julgamento.

O psicólogo Robert Boleslaw Zajonc, pioneiro em explorar a importância do afeto na tomada de decisões, chamou atenção para a ilusão de racionalidade ligada às nossas decisões, apontando que: “A maior parte do tempo, as informações coletadas sobre as alternativas servem-nos menos para tomar uma decisão do que para, depois, justificá-la”[8]. Sem dúvidas, muitos daqueles envolvidos no processo de tomada de decisão judicial já presenciaram ou vivenciaram esse fenômeno: decide-se primeiro — amparado em convicções pessoais, intuição, afetos, impressões —, arranjam-se argumentos jurídicos a amparar a decisão depois.

Diante desse cenário, o livro Vieses da Justiça advoga em favor da ideia de que juízes e juízas — de maneira similar a outros tomadores de decisão nas mais diversas áreas — estão suscetíveis aos incessantes inputs do Sistema 1, de tal sorte (ou azar o nosso) que, ao se orientarem por heurísticas e esquemas simplificadores, ficam vulneráveis aos desvios de julgamento delas decorrentes. Sob esse aspecto, conferimos especial destaque às seguintes heurísticas e vieses usualmente presentes nas tomadas de decisões: (i) heurística da disponibilidade (availability heuristic); (ii) heurística da referência ou da ancoragem (anchoring); (iii) heurística do afeto (affect heuristic); (iv) heurística da correlação ilusória (illusory correlations/magical thinking); (v) viés egocêntrico (egocentric bias) e excesso de confiança (overconfidence); (vi) viés confirmatório (confirmation bias); e (vii) viés retrospectivo (hindsight bias).

Longe de ser aleatória, a opção por tratar especificamente dessas ilusões cognitivas deve-se ao posicionamento defendido de que esses erros sistemáticos de pensamento são aqueles que de modo mais incisivo podem fluir para as decisões penais, influenciando, permeando o raciocínio do julgador ou mesmo sendo determinante para um desfecho particular — geralmente condenatório — nos processos criminais.

Exploramos, por exemplo, de que forma a nossa tendência a buscar por elementos de corroboração (viés confirmatório), em detrimento do pensamento exploratório, pode se manifestar durante toda a instrução processual e guiar a interpretação das evidências colhidas, levando o julgador a desconsiderar eventuais provas conflitantes com o seu ponto de vista inicial (ao qual ficou ancorado ou ancorada); a eventual desconsideração das peculiaridades do caso concreto pelo julgador, ao deixar-se guiar pelo pensamento associativo e a facilidade de recuperar da memória determinados elementos probatórios ou casos similares (heurística da disponibilidade); ou, ainda, de que forma um magistrado, sob a influência do viés egocêntrico e do excesso de confiança, pode se sentir autorizado a deferir uma medida extrema, excessiva ou mesmo contrária à lei (por exemplo, determinar a condução coercitiva de investigado sem que haja recusa de comparecimento perante a autoridade policial).

Nesse fluxo de ideias, vale ressaltar que o livro não traça um cenário desolador — determinista e biologicista —, no qual o julgador está inexoravelmente à mercê dos seus processos automáticos intuitivos. Em sentido oposto, parte-se desse contexto de racionalidade limitada e de reconhecimento dos limites da cognição humana no julgamento e na tomada de decisão (sujeitos às falhas e ilusões cognitivas do Sistema 1), a fim de levantar a seguinte questão: é possível pensar uma atuação penal contraintuitiva em cujo contexto prevaleça a tendência do julgador de usar a deliberação — o raciocínio lento/demorado/controlado típico do Sistema 2 — para checar, substituir ou suplantar uma resposta intuitiva inicial amparada nas heurísticas do Sistema 1?

Com esse questionamento estabelecendo o critério e prestando-se a ser o fio condutor do livro Vieses da Justiça, desvela-se o seu propósito: desafiar a ilusão de racionalidade ligada ao modelo de tomada de decisões do cotidiano forense — ainda ancorado (e, aliás, naufragando) na ideia de que o magistrado no processo penal encarna o papel de um agente racional neutro em busca da “verdade real”. Quando, na prática, muitos seguem alheios aos “fatores reais” que incidem em cada caso concreto.

Por esta via, o livro pretende fornecer coordenadas a todos aqueles metidos no processo de tomada de decisão judicial no âmbito penal — e aí incluem-se estagiários e assessores (que muitas vezes encarnam os jus-ghost-writers[9]) — para se pensar estímulos (triggers) capazes de auxiliá-los a tomar decisões de modo mais deliberado (depurados dos esquemas simplificadores do Sistema 1) e/ou a usar a “deliberação como mecanismo de verificação”[10] dos pensamentos/esquemas intuitivos iniciais, atendo-se às peculiaridades do caso concreto, com observância às normas e princípios legais aplicáveis ao caso e respeitando-se as garantias processuais penais, a fim de que, tendo o acusado a posição de inocente, os julgadores-jogadores somente apontem a sua culpabilidade “tendo tudo em conta” (TTC, com um pé na derrotabilidade).

É imprescindível refletir e perceber que, imersos em uma cultura jurídica criminal punitivista, as heurísticas e os vieses de julgamento aparentam estar vinculados a desfechos condenatórios, pervertendo-se o princípio da presunção da inocência, uma vez que o status de inocente sustentado pelo réu, no processo penal, demandaria que juízes estivessem “enviesados” à absolvição e, apenas após a análise minuciosa do processo “tendo tudo em conta” (TTC) e a identificação de provas cabais, convencessem-se do contrário.

A sugestão é que a leitura do texto possa dar chance à compreensão contraintuitiva do processo penal, na qual não se pense no processo — em suas formalidades, garantias e no respeito às regras democráticas do jogo processual penal —, como da ordem do estorvo, mas no seu funcionamento como âncoras não enviesantes da postura do julgador.

De todo o visto, procuramos alertar que o vasto conhecimento na área de julgamento e tomada de decisão produzido em outras áreas do saber (Psicologia Social, Psicologia Cognitiva, Neurociência) não permite mais ao jurista encastelar-se no conhecimento jurídico — que se pretende depurado de aspectos irracionais — por ele mesmo arquitetado, protegido pela verve que o acompanha e que, tantas vezes, presta-se a escamotear a redução da complexidade de que faz uso para perpetuar a sensação de que o domínio dos esquemas conceituais, dogmáticos e hermenêuticos o fará encontrar a “verdade” e “a certeza”.

Aliás, àqueles em busca de verdades e certezas podemos indicar o refúgio nas religiões, na leitura de certos manuais de Direito ou julgados — que perseveram na crença de sua existência —, pois nosso texto destina-se aos que preferem o desconforto da dúvida à mansidão estagnada das certezas ingênuas e confortáveis.


[1] TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do Cisne Negro: O impacto do altamente improvável. Tradução de Marcelo Schild. 10. ed. Rio de Janeiro: BestBusiness, 2016, p. 120-121.
[2] GILOVICH, Thomas; GRIFFIN, Dale; KAHNEMAN, Daniel (eds). Heuristics and Biases: The Psychology of Intuitive Judgment. New York: Cambridge University Press, 2013).
[3] KAHNEMAN, Daniel; FREDERICK, Shane. Representativeness Revisited: At- tribute Substitution in Intuitive Judgment. In: GILOVICH, Thomas; GRIFFIN, Dale; KAHNEMAN, Daniel (eds). Heuristics and Biases: The Psychology of Intuitive Judgment. 14. ed. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 49-81.
[4] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais atuação contraintuitiva. Florianópolis: Emodara – _EMais, 2018, 88p.
[5] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 29.
[6] KAHNEMAN, 2012, p. 49.
[7] PEER, Eyal; GAMLIEL, Eyal. Heuristics and Biases in Judicial Decisions. Court Review, vol. 49, issue 2, <http://aja.ncsc.dni.us/publications/courtrv/cr49-2/CR49-2Peer.pdf>. Acesso em: ago.2017, p.117).
[8] ZAJONC, R. B. Feeling and Thinking: Preferences need no inferences. American Psychologist, vol.35, n. 2, 1980, p. 151-175, p. 155).
[9] Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr. chamaram a atenção para o papel crucial dos estagiários e assessores — os ghost judges ou ghost writers do Judiciário — no jogo do processo penal (ROSA, ALEXANDRE MORAIS DA; KHALED J., Salah H. Neopenalismo e Constrangimentos Democráticos. 1ª. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2013, pp. 81-89).
[10] GUTHRIE, Chris; RACHLINSKI, Jeffrey J.; WISTRICH, Andrew J., Blinking on the Bench: How Judges Decide Cases, vol. 93, n. 2, Cornell Law Faculty Publications. Paper 917, nov. 2007, p. 33.

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