Direito Civil Atual

A irreparabilidade do dano evitável no Direito Civil brasileiro (parte 2)

Autor

  • Daniel Pires Novais Dias

    é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio doutor em Direito com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo na Alemanha (2015).

5 de março de 2018, 11h01

ConJur
1. Introdução
Na coluna anterior, foi apresentada a regra da irreparabilidade do dano evitável (ride) e demonstrado que, no Código Civil, essa regra tem fundamento no artigo 403. Contudo, de muito pouco adianta fundamentar a ride no artigo 403 CC, se não for apresentada uma dogmática capaz de orientar a aplicação dessa regra aos casos concretos. Na presente coluna, são apresentados os contornos gerais de duas questões dogmáticas centrais à incidência da ride: os seus pressupostos e o seu âmbito de aplicação.

2. Pressupostos de aplicação
A aplicação da ride pressupõe a presença conjunta de três elementos: (i) inadimplemento do devedor, (ii) comportamento imputável do credor de não evitação do próprio dano e (iii) dano.

Em relação ao primeiro pressuposto, uma questão que vale dar destaque é a inaplicabilidade da ride a casos em que a lei permite expressa ou implicitamente a resilição unilateral do contrato (artigo 473 CC). Um bom exemplo para ilustrar essa questão é o famoso caso Rockingham City vs. Luten Bridge Co., que nos EUA foi resolvido pela aplicação de regra análoga à ride: a empresa Luten Bridge Co. foi contratada pelo município de Rockingham para construir uma determinada ponte. Algum tempo depois da celebração do contrato, mas antes que as obras começassem, o município notificou a empresa, declarando a sua vontade de que a ponte não fosse mais construída. Apesar disso, a empresa fez a obra e ajuizou ação contra o município para exigir o pagamento do valor acordado. O tribunal entendeu que, depois da referida notificação do município, a empresa autora não podia proceder à construção e exigir o preço do contrato, com o seguinte argumento: “É verdade que o município não tinha o direito de resilir unilateralmente o contrato, e a notificação dada ao demandante constituiu inadimplemento da sua parte; mas depois de a autora ter tomado conhecimento do inadimplemento, era seu dever não fazer nada para aumentar os danos que dele decorrem”. O tribunal concluiu então que a empresa autora teria a sua indenização limitada às perdas e danos decorrentes do inadimplemento à data da notificação, não abrangendo os demais danos decorrentes da construção que ela podia ter evitado[1].

No Brasil, no entanto, um caso como esse não seria solucionado pela aplicação da ride, exatamente por falta do pressuposto do inadimplemento contratual. Isso porque o Código Civil brasileiro autoriza que o dono da obra interrompa a construção a qualquer tempo, “desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra” (artigo 623 CC). No Brasil, uma empresa como a Luten Bridge Co. teria apenas direito a essa indenização, e não ao valor integral pela execução da obra. Por falta de inadimplemento, as regras gerais de perdas e danos (artigos 402 a 405 CC) não teriam aplicação.

O segundo pressuposto é o do comportamento imputável de não evitação do credor. O artigo 403 CC não especifica qual o critério que deve ser utilizado para avaliação do comportamento do credor. Sob influência da dogmática desenvolvida no sistema anglo-americano, a doutrina brasileira tem defendido a adoção do critério da razoabilidade[2]. Esse é o critério previsto, por exemplo, pela Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacionais (CISG), segundo o qual o credor tem de adotar “medidas razoáveis, de acordo com as circunstâncias, para diminuir os prejuízos resultantes do descumprimento” (artigo 77).

Esse critério é, porém, analiticamente pobre. Nele estão concentrados, sob uma bitola única de “razoabilidade”, juízos distintos: o de ilicitude (violação de norma de conduta) e o de culpa (previsibilidade e evitabilidade do dano). Além disso, a própria verificação, se em um determinado caso o credor tinha ou não a incumbência de agir para evitar o dano (juízo de ilicitude), desdobra-se em três critérios: a conduta exigível precisa ser apta, necessária e adequada para evitar o dano[3]. No curto espaço desta coluna, é possível apenas ilustrar a complexidade das questões envolvidas na análise desses critérios. Por exemplo, uma medida de evitação do próprio dano é desnecessária quando o bem jurídico do credor já está suficientemente protegido pelo devedor. Nesse caso, a evitação do dano recai exclusivamente em seu campo de responsabilidade. Essa delimitação tem especial relevância prática quando o devedor assumiu contratualmente em face do credor a responsabilidade exclusiva de proteger os bens jurídicos e interesses do credor, ou quando essa responsabilidade resulta da finalidade do contrato.

Os seguintes casos julgados na Alemanha são bons exemplos de aplicação desse critério da necessidade: um cliente contratou um advogado para ajuizar ação em seu favor, mas o advogado perdeu o prazo, e a pretensão do cliente prescreveu. O cliente processou então o advogado para obter indenização. Em juízo, o advogado alegou que o seu cliente havia concorrido culposamente para o próprio dano por não ter impedido a consumação da prescrição da sua própria pretensão, uma vez que ele era legalmente habilitado para tanto. O BGH (Bundesgerichtshof, correspondente ao nosso Superior Tribunal de Justiça), todavia, não acatou essa alegação, sob o argumento de que o exercício oportuno da pretensão, segundo o propósito do contrato de prestação de serviços advocatícios, recai no exclusivo campo de responsabilidade do advogado[4]. Em outro caso, o BGH decidiu que um hospital que assumiu os cuidados de um paciente psiquicamente doente e com risco de cometer suicídio não poderia se valer da alegação de culpa concorrente do lesado se o paciente se ferisse em uma tentativa de suicídio. Isso porque a finalidade desse contrato de tratamento é exatamente a de retirar do paciente a preocupação com a não materialização do risco de suicídio[5].

Por fim, há também o pressuposto do dano (“prejuízos efetivos e os lucros cessantes”, segundo o artigo 403 CC). Entre outras questões, a configuração desse pressuposto se torna problemática no grupo de casos envolvendo a imposição de multa cominatória (“astreintes”). A doutrina processual afirma que o instituto da mitigação de danos imporia ao credor inadimplido o “dever” de agir para evitar a desnecessária elevação da multa cominatória[6]. Há de se atentar, no entanto, que a multa cominatória não é dano do credor — nem mesmo decorre de inadimplemento contratual. Trata-se, em verdade, de pena para constranger o devedor a cumprir ordem judicial. Essa constatação é suficiente para obstar a aplicação direta da ride a esses casos em que o credor não adotasse medidas para evitar a elevação do valor da multa cominatória[7]. Mas seria então caso de aplicação analógica? A resposta a essa questão não é tão simples, pois no caso de multa cominatória a desídia do devedor é contra ordem judicial, e não contra um dever de cumprimento contratual. Trata-se de conduta mais grave e, portanto, merecedora de maior censura. Esse fator aparentemente demandaria um tratamento mais gravoso do que aquele desenhado para quem comete “apenas” uma inexecução contratual, como é o caso da ride no artigo 403 CC.

3. Âmbito de aplicação
A ride é uma norma geral de delimitação das perdas e danos. Contudo, mesmo tendo sido preenchidos os pressupostos, a sua aplicação pode ser afastada em determinados casos em função da incidência de regramento mais específico. Por exemplo, em caso de mora do credor, a aplicação da ride é restringida pela incidência do regramento mais específico presente no artigo 400 CC.

Um bom exemplo para ilustrar essa questão é um caso real que, no Direito inglês, deu azo à aplicação de regra análoga à ride. O autor havia sido contratado para transportar uns cavalos a uma determinada cidade e entregá-los em local a ser designado pelo réu. Na data combinada, o demandante chegou à cidade, mas o réu demorou seis horas para informar o lugar da entrega. Durante esse período, os cavalos permaneceram no ambiente apertado e pouco ventilado do veículo de transporte, o que elevou a temperatura corpórea dos animais e acabou levando-os à morte pouco tempo depois. O transportador ajuizou ação pedindo indenização, mas o tribunal julgou o pedido improcedente sob o argumento de que havia sido insensatez do autor em deixar os cavalos nas referidas condições, pois ele poderia tê-los tirado do veículo de transporte ou colocado em qualquer lugar da cidade[8]. Contudo, por mais que no Direito inglês esse caso seja um exemplo de mitigação de danos e que o comportamento do transportador possa de fato ser considerado negligente, no Direito brasileiro o transportador não teria a sua indenização reduzida em função desse comportamento. Isso porque o atraso de seis horas do réu configura mora do credor e esse instituto “subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa” (artigo 400 CC). Portanto, como no caso a conduta do transportador foi “apenas” negligente, e não dolosa, ele não poderia ser responsabilizado pela morte dos cavalos.

O âmbito de aplicação da ride pode sofrer restrições também em função de regramentos dos contratos em espécie envolvidos. Um bom exemplo para ilustrar isso é o caso Parker vs. Twentieth Century-Fox Film Corporation, que nos EUA levantou o debate sobre a aplicação do instituto da mitigação de danos. No caso, uma atriz famosa foi contratada por um grande estúdio para atuar no papel principal em uma produção musical que seria filmada na Califórnia. O contrato previa ainda que a atriz teria poder de aprovação em relação ao diretor e ao roteirista do filme. Meses após o contrato ter sido assinado, o estúdio comunicou à atriz que o filme não seria mais produzido e ofereceu a ela o papel de atriz principal em outro filme, um drama do “tipo faroeste” que seria filmado na Austrália. Além disso, nesse novo filme, o diretor e roteirista não teriam de ser aprovados pela atriz. Insatisfeita, ela rejeitou essa proposta e ajuizou uma ação em face do estúdio, por meio da qual objetivava obter o valor acordado para atuar no filme que não seria mais produzido. O estúdio alegou em defesa que a autora não fazia jus a nenhuma retribuição, porque ela teria deliberadamente deixado de mitigar o próprio prejuízo ao ter irrazoavelmente recusado a oferta para atuar no papel principal do filme de faroeste[9].

Contudo, no Direito brasileiro, a ride não seria aplicável a um caso como esse em virtude das regras específicas da extinção do contrato de prestação de serviço. À luz do Direito brasileiro, em face da recusa da atriz em renegociar os termos do contrato, o estúdio não teria outra saída que não a de despedi-la sem justa causa. E como não havia ainda nenhuma retribuição vencida, uma vez que a execução do contrato ainda não havia se iniciado, de acordo com o artigo 603 CC, a atriz poderia exigir o valor correspondente à metade da retribuição prevista no contrato a título de perdas e danos. Esse é um caso de “prefixação” legal do valor das perdas e danos[10]. Ou seja, essa regra corresponde a uma decisão do legislador, fruto da ponderação dos interesses das partes envolvidas: de um lado, o interesse do tomador do serviço em não obter uma prestação que ele não mais quer que seja cumprida e em não pagar o valor integral do contrato, uma vez que não obterá, ao menos não integralmente, a prestação do serviço; de outro lado, o interesse do prestador de serviço de ser indenizado, uma vez que contava que iria prestar o serviço e receber o valor acordado. Ao estabelecer que a indenização é no valor de metade da retribuição não vencida, o legislador fez a acomodação que entendeu mais justa e que contemplaria da melhor maneira os interesses envolvidos. Já se sabia que, mesmo sem prestar o serviço, o prestador de serviço receberia indenização. Mas é exatamente porque ele não presta o serviço que ele recebe apenas metade. Não se deve, portanto, querer afastar a “ponderação” do legislador para reduzir ainda mais o valor da indenização do prestador de serviço, sob o argumento de que ele poderia ter celebrado contrato com terceiro, ou mesmo aceitado proposta diversa do contratante, e assim evitado o próprio dano.

4. Conclusão
A aplicação da ride, fundada no artigo 403 CC, pressupõe a configuração de três pressupostos: o inadimplemento contratual do devedor, conduta imputável de não evitação do credor inadimplido e dano. A incidência da ride pode ser limitada pela aplicação de regras mais específicas, como em casos envolvendo mora do credor ou contrato de prestação de serviço.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


[1] Rockingham City. v. Luten Bridge Co., 35 F.2d 301, 302 (4th Cir. 1929).
[2] Entre outros, ver: Christian Lopes. Mitigação dos prejuízos no direito contratual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 202 ss.
[3] Em termos mais amplos, ver: Dirk Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit des Geschädigten im Privatrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 311.
[4] Caso citado por Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit, p. 378.
[5] Caso citado por Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit, p. 378. Vale esclarecer que, na Alemanha, a situação de não evitação culposa, por parte do lesado, do próprio dano decorrente de evento danoso imputável a terceiro corresponde a caso de culpa concorrente (parágrafo 254 BGB).
[6] Nesse sentido, entre outros: Fredie Didier et al. Curso de Direito Processual Civil, vol. 5: execução, 2017, p. 620 e ss.
[7] De maneira um pouco distinta, essa crítica já se encontra formulada em: Daniel Dias. O duty to mitigate the loss no Direito Civil brasileiro e o encargo de evitar o próprio dano. In: Doutrinas essenciais: obrigações e contratos, vol. III. RT: São Paulo, 2011, p. 726.
[8] Caso citado por Edward Farnsworth, Contracts, 2004, § 12.12, p. 778-779.
[9] Parker v. Twentieth Century-Fox Film Corp., 3 Cal.3d 176 (1970).
[10] Nesse sentido, ver: Maurício Sheinmam, in Comentários ao Código Civil brasileiro, vol. VI, 2009, p. 359.

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    é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio. Doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015), com bolsa concedida pelo Deutscher Akademischer Austausschdienst (DAAD). Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de direito comparado e internacional privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

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