Opinião

Guerra de paradigmas não pode gerar insegurança jurídica

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5 de março de 2018, 17h34

Já se disse que o debate político no Brasil nunca foi tão maniqueísta. Pode-se ir além: os raciocínios que o movem nunca foram tão binários, tão carentes de meios-termos. Essa radicalização bipolar, espirituosamente batizada de Fla x Flu, caracteriza-se pela vulgaridade discursiva e pelo argumento ad hominen, ou seja, aquele que se limita a desqualificar o interlocutor. Há que se comemorar quando divergências são discutidas à luz da honestidade intelectual e da busca da convergência, não do proselitismo e da belicosidade.

Em tal contexto, o debate jurídico deveria dar exemplo. Nada mais saudável — e necessário — no país da "lava jato", em que processos penais aguçam paixões. Existem perseguições pessoais no âmbito da midiática operação? Há viés partidário nos julgamentos? Tem-se invertido o ônus da prova? Praticam-se abusos e violações de direitos constitucionais? Quem aponta abusos é aliado de corruptos? Quem aplaude uma condenação tem vocação para justiceiro?

Para todas as perguntas acima vale uma única resposta: sim, mas não como regra, e os casos afirmativos devem ser objeto de duro repúdio. O que salta aos olhos, e que deveria ser objeto de análise mais intensa por juristas donos de espaço na mídia, é o nítido conflito entre duas escolas de Direito. Das doutrinas que as norteiam, claro está que a anglo-saxônica é da moda, menos preocupada com aspectos formais do processo e em tese mais eficaz no combate ao crime financeiro, de colarinho branco, tão sofisticado tecnologicamente que não deixaria provas pelo caminho (decorreria disso um suposto desprezo por provas materiais em certos processos?). O contraponto é dado pelo paradigma central do Direito romano-germânico, superficialmente chamado de garantista, focado na observância intransigente das garantias individuais.

Não cabe aqui aprofundamento hermenêutico nem tomada de posição nessa guerra de paradigmas. Oportuno ressaltar, apenas, que o conflito teórico não pode gerar insegurança jurídica e que, em momento algum, sob qualquer justificativa, a Constituição Federal pode ser ignorada.

A OAB-SP, ao lado do Conselho Federal da OAB, repudiou com veemência a decisão do Supremo Tribunal Federal autorizando o encarceramento de réus antes da esgotado o último recurso legal. Estaria a Ordem dos Advogados do Brasil inserindo-se no time dos garantistas, alienando-se de uma suposta modernidade processual inerente a um Direito globalizado no combate ao crime? A resposta é de outro matiz: a Ordem não admite violação da Constituição, muito menos de qualquer de suas cláusulas pétreas.

Sobre o tal garantismo, igualmente é importante lembrar que o termo jamais foi invocado, na prática, em nome dos milhares de cidadãos pobres encarcerados sem julgamento, ao contrário do que ocorre hoje em defesa de qualidade de capturados pela "lava jato" (sintoma de uma sociedade em que os donos do poder não são o povo, como bem descreveu Raymundo Faoro). Em contrapartida, ao passo que se deve repudiar o uso apenas para parcela da sociedade dos princípios garantistas do Direito romano-germânico, não se pode aceitar, sob a égide do Direito anglo-saxônico, aberrações como inversão do ônus da prova.

Há outros fatores a gerar insegurança jurídica neste Brasil da "lava jato", mas não só dela. Juízes não podem, sob quaisquer justificativas, pedir vista de processos e em cima deles sentarem-se por um, dois, três anos, quando o tema em apreciação terá perdido o apelo. A prevalência de decisões monocráticas no STF, de outra parte, é também um péssimo exemplo às demais cortes colegiadas, pois muitas vezes diferem do que entenderia o órgão em sua face plena.

Ninguém mais que o próprio Judiciário reúne condições de dar ao cidadão segurança para acioná-lo quando necessário. Não se pode admitir discrepâncias gritantes em sentenças de casos semelhantes, quando não idênticos. Exemplar é o caso de Jéssica Monteiro, presa por porte de maconha — 27 papelotes — mesmo sendo mãe de filho recém-nascido, enquanto Adriana Anselmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, deixou o presídio por ser mãe de dois filhos, de 11 e 15 anos, desde sempre muito bem amparados por babás e outros confortos que o dinheiro traz. Tais fatos mostram uma insegurança, digamos, mais econômica do que jurídica, o que só lhes confere ainda mais gravidade.

Em tempo: a prisão de Jéssica Monteiro foi revertida para domiciliar graças a Habeas Corpus impetrado pela OAB-SP, em que se argumentou contra óbvia violação de direitos humanos essenciais e desrespeito ao Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/16).

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