Opinião

Tratamento jurídico do trauma sócio-psíquico da corrupção no Brasil

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4 de março de 2018, 13h30

A (1) condução coercitiva do ex-presidente Lula, o (2) vazamento da conversa telefônica entre Lula e Dilma e a (3) possibilidade de prisão sem trânsito em julgado são exemplos para avaliar a tentativa jurídica de cura do trauma sócio-psíquico da corrupção no Brasil.

O julgamento de casos de corrupção no Brasil recria, entre nós, situações análogas às ocorridas nos julgamentos de Eichman em Jerusalém e de O.J. Simpson nos Estados Unidos[1]. Nos três contextos (Eichman, O. J. Simpson e Lava-Jato), traumas sociais (antissemitismo, racismo e corrupção) foram levados e elevados à julgamento.

Freud e Jung reconhecem as implicações coletivas no psiquismo. Em Psicologia das Massas[2], Freud demonstra como se estruturam psiquicamente os afetos em uma massa, assim considerada como “uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu”.

Jung[3] sugere uma instância coletiva do corpo psíquico, de base arquetípica, dada a orientar padrões psíquicos diante de eventos afetivos. Partindo-se da premissa de que existem implicações coletivas no psiquismo, cabe indagar se é possível admitir a existência de traumas sociais, tais quais os que acometem o psiquismo individual.[4]

Manifestações de excesso e excessos de uma mesma manifestação, como as que sobressaltam entre nós sobre corrupção, demonstram a proximidade entre aspectos individuais e coletivos em relação ao conceito de trauma. A recorrência, a notoriedade e a supremacia do tema “corrupção” no debate público podem ser considerados sintomas que confirmam esse diagnóstico.

Nossa historicidade, prenhe de corruptibilidade, enraíza esse diagnóstico. Dos portugueses, conta-se que Lisboa foi fundada por Ulisses, que ali descansou depois da longa batalha de Troia. O nome da cidade, Ulissabon – que, do grego, significa “Cidade de Ulisses” – pode representar o DNA embusteiro do espírito brasileiro. “Aquilo que Aquiles não conseguiu durante dez longos anos pela força, Ulisses realizou com a esperteza a partir do estratagema do cavalo de Troia.”

Assim é que nossa identidade é marcada, desde a origem lusitana, por truques, trapaças e arranjos estratégicos. Não sem razão que Pedro Malasartes, Macunaíma, Zé Pelintra e Malandro Carioca sejam figuras simbólicas do nosso folclore.[5]

A administração do Brasil colônia materializava tal folclore, já que era desorganizada e morosa, redundando numa “máquina burocrática emperrada, ineficiente e monstruosa”, terroir perfeito para que a corrupção pudesse se instalar.

Associado à má-administração estavam os baixos salários recebidos pelos funcionários da administração colonial, justificativa para a flexibilização das normas de conduta e fomento para a prática do contrabando. Juízes viam-se às voltas com os altos custos de instalação das jurisdições e deslocamento até onde tinham que servir, assumindo funções em completa penúria financeira.[6]

Também os órgãos responsáveis por julgar conflitos no Brasil não se subordinavam às normas da Coroa, que queria mais evitar o envolvimento dos magistrados portugueses com os jurisdicionados da colônia do que fiscalizar relações espúrias. Em que pese todo o esforço da Coroa de inibir o estreitamento das relações de seus magistrados com os locais, negócios, casamentos e relações de compadrio deram conta de construir laços sólidos deles com a elite local.

Mesmo um magistrado de absoluta confiança da Coroa, como José Vaz Pinto, modelo de moralidade e retidão entre a comunidade colonial, acabou acusado de levar uma grande fortuna em ouro quando voltou para Portugal. [7]

A corrupção e a malandragem em terras brasileiras estão também retratadas na literatura icônica de Machado de Assis. Em Dom Casmurro, o vício da corrupção é associado ao personagem de José Dias, o agregado, que se fazia passar por médico e argumentava em defesa própria: “homeopatia é a verdade, e, para servir à verdade, menti”.

O seguinte trecho de O Alienista é ainda mais contumaz: “vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação, corrompendo os juízes, e embaçando os outros herdeiros.”

Jessé Souza[8] acrescenta a esse crachá cultural de corrupção a experiência da escravidão, articulando argumentos que confirmam ser a corrupção uma estratégia da elite brasileira para manter novas formas de escravidão à classe que Jessé chama de ralé. Não há que se negar que, no fundo, a maioria dos juízes sabe que está ali, naquela função, não apenas por mérito, mas também por conta de uma condição social herdada, ainda que muito longinquamente.

Se do ponto de vista histórico-social não restam dúvidas acerca da presença seminal da corrupção no Brasil, estudos junguianos de Denise Gimenez Ramos[9] buscam explicar psicologicamente esse cenário. A hipótese é de que a corrupção endêmica no Brasil é um mecanismo compensatório do psiquismo coletivo brasileiro, que fixou um sentimento coletivo de inferioridade.

O olhar que norte-americanos lançaram sobre o Brasil nos clássicos desenhos animados da Disney, por exemplo, confirmam esse crachá cultural. Joe Carioca é “personificado como um papagaio (sem fala própria) frágil e desajeitado, preguiçoso e covarde, que compensa seus fracassos com fantasias megalomaníacas.”

A “lava jato” pode ser considerada um caso clínico-jurídico em que a tentativa de exorcismo institucional do trauma da corrupção e um certo narcisismo heroico ligam-se como resistências coletivas inconscientes. De se anotar que a postura messiânica de quem pretende combater a corrupção remonta ao caso Schreber, analisado por Freud como o caso de um juiz paranoico que tinha fantasias de que era enviado por Deus para corrigir o mundo dos maus.

Ao esperar dos julgamentos de corrupção não apenas um mero exercício jurisdicional, mas uma tentativa de correção forçada do vício cultural da corrupção, incorre-se em excessos e reações – tão normais do ponto de vista psicológico, quanto ineficientes no que se refere à ressignificação do trauma.

Tentativas jurisdicionais de “curar” o trauma sócio-psíquico da corrupção que desprezem a literalidade de orientações normativas, como as citadas no início do texto, são mecanismos pulsionais do psiquismo coletivo, que reage de modo inconsciente para defender sua própria saúde.

Corromper o pacto constitucional para combater corruptos é a maior prova de que há um efeito de transferência entre este corpo institucional de curandeiros e a população que clama, inconsciente, pelo fim da corrupção. Trata-se de um pacto inconsciente de amor entre falsos heróis e súditos ingênuos.

Os primeiros acometidos de um narcisismo que, como todos, usa justificações externas para alimentar as faltas de um ego frágil. Os outros, simplesmente ingênuos: exigem que combata-se a corrupção (política) com corrupção (normativa). Onde está o divã verde-amarelo para o gigante que acordou mas que não lembra dos sonhos do seu inconsciente?


[1] FELMAN, Shoshana. Inconsciente Jurídico: traumas e julgamentos do século XX. São Paulo: EdiPro, 2014.

[2] FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas, análise do Eu e outros textos. (1920-1923). São Paulo: Cia das Letras, 2011.

[3] JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2009.

[4] Para Freud, traumas psíquicos são experiências afetivamente dolorosas, que podem ter mais ou menos relação a fatores endógenos ou exógenos, que condicionam comportamentos associados à situações emocionais análogas à que originou o trauma. A tendência de um trauma não analisado e tratado para a psicologia é a repetição incessante e inconscientemente. Consultar FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias – Conferência 23 – Os Caminhos da Formação dos sintomas. Edição Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud v. XVIII – Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[5] Conforme BOECHAT, Walter (org.). A Alma Brasileira: luzes e sombras. Petrópolis: Vozes, 2014.

[6] Conforme ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 13-39.

[7] Conforme ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 13-39.

[8] SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. São Paulo: Leya.

[9] RAMOS, Denise Gimenez. Corruption: symptom of a cultural complex in Brazil? In: SINGER, Thomas; KIMBLES, Samuel L. The cultural complex: contemporary Jungian perspectives on psyche and society. Hove and New York: Brunner-Routledge, 2004. p. 102-123.

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