Diário de Classe

Hermenêutica ou argumentação: é possível argumentar sem compreender?

Autor

  • Matheus Vidal Gomes Monteiro

    é doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela Unisal e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição Constituição e Processo da UFF membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

3 de março de 2018, 8h05

Normalmente, percebemos, em diversas grades dos cursos de Direito país a fora e em diversas obras jurídicas, títulos como “Hermenêutica e Argumentação Jurídica”. Entretanto, não raro temos visões que expõem ambas as perspectivas de modo independente entre si ou até incompatíveis, conduzindo-nos à escolha de uma ou outra[1].

Para além de uma separação excludente de uma ou outra perspectiva, infelizmente em dias de hoje ainda é necessário reafirmar como se dá a relação entre ambas, evitando-se sobreposições voluntaristas, hierarquizações discricionárias ou quaisquer outras propostas contaminadas por um viés teleológico. É preciso situar cada qual em seu lugar, a fim de entendermos melhor cada uma e o trabalho de ambas conjuntamente.

E é nesse sentido que o reconhecimento do giro ontológico-hermenêutico e suas inevitáveis implicações teóricas no mundo do Direito faz com que partamos num caminho sem volta, reconhecendo, principalmente, que a compreensão antecede qualquer argumentação e que não interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar[2]. Esse, poderíamos assim dizer, é o ponto. E, fazendo jus ao título proposto, devemos reconhecer uma dupla estrutura (ou “como”/nível/dimensões/logos/etc.): hermenêutica e apofântica (argumentativa)[3].

Quanto ao nível hermenêutico, reafirmemos[4]: só interpretamos se compreendemos, e só compreendemos se pré-compreendemos. Porquanto, existe uma razão hermenêutica antes do conhecimento (Schnädelbach), quer dizer, “o intérprete não se pergunta porque compreende ao compreender, já compreendeu”[5]. Logo, “sem compreensão, não há interpretação; sem compreensão, não há explicitação”[6]. Isso nos remete ao outro nível, apofântico (ou também chamado de lógico-analítico ou discursivo), que consiste num “momento discursivo-argumentativo” no qual explicitamos, enunciamos, ou, como de costume afirmado no âmbito jurídico, argumentamos. Trata-se, em suma, de uma explicitação em termos lógico-objetivos do resultado da racionalidade do outro nível[7].

No entanto, um ponto deve ser reforçado a partir da diferença ontológica: apesar de diferentes, ambos os níveis não são inseparáveis, acontecendo, sempre, numa unidade, mesmo que frequentemente o nível hermenêutico esteja encoberto pela própria linguagem que diz o apofântico[8]. Assim também em termos temporais, ou seja, “não há uma prioridade temporal do hermenêutico em relação ao apofântico, mas sim uma espécie de privilégio, uma vez que no apofântico se mostra, se predica, ou se comunica algo que já foi compreendido e interpretado no logos hermenêutico. O enunciado, que se mostra apofanticamente, é sempre um modo derivado de interpretação[9].

Dessa maneira, a explicitação desse compreendido é a forma de apresentação minimamente necessária para que, no plano da intersubjetividade, consigamos nos comunicar e, a partir do reconhecimento dos dois níveis, a introdução do mundo prático nos impede de trabalhar, simultaneamente, com verdades conteudísticas, e não conteudísticas (procedimentais)[10]. Não há saída. Por isso, diante desse reconhecimento, não podemos “procedimentalizar a compreensão” e admitirmos que um processo lógico-argumentativo possa “acontecer” sem a pré-compreensão[11]. Daí o perigo de se querer substituir um nível por outro, apostando-se numa falsa disputa.

Em nossa especificidade, podemos falar numa pré-compreensão jurídica. Assim, sem desconsiderar a concorrência do inconsciente, é possível afirmarmos que a pré-compreensão passa a ser “invocada não apenas em função do seu caráter ontológico, mas também como uma exigência prático-normativa”. Constituindo-se, assim, num “juízo anterior de juridicidade do caso a ser decidido, ou seja, nas palavras de CURI, ‘um pré-juízo decisório’”. E como um “pré-juízo decisório”, ela não é apenas um existencial geral (a partir do Dasein), mas “deve abarcar também as especificidades do ‘olhar jurídico’ sobre o problema, o que significa dizer que, sendo um determinante para a norma a ser construída a partir do texto legal, ela demanda certo aprendizado do arcabouço teórico e instrumental de realização do direito, o que lhe imprime características particulares”. Contudo, “esse aprendizado não implica uma pré-compreensão juridicamente formatada que pudesse ensejar o controle normativo e racional pleno do resultado na decisão”[12], e nunca é demais afirmar: esse todo que se antecipa e se manifesta na decisão, como pré-compreensivo, não deve ser confundido com subjetividade ou pré-conceitos do intérprete-julgador[13].

E, retomando-se à análise de ambos os níveis como uma unidade, é preciso admitir-se que “a passagem da pré-compreensão jurídica complexa à compreensão final/decisão não prescinde da justificação argumentativa que interfira continuamente na constituição do resultado, conferindo-lhe alguma validade”. Ou seja, sendo mediado pela racionalidade hermenêutica, “o processo decisório se desenvolve através da internalização de diferentes experiências ônticas (texto normativo, elementos factuais e argumentos produzidos), capazes de promover sucessivas projeções, contínuos tensionamentos, correções e deslocamentos de horizontes, até o ponto em que a verdade interpretativa acontece para a autoridade judicante. Quando isso ocorre, encerra-se o debate, fazendo cessar as voltas no círculo hermenêutico. Manifesta-se, assim, o processo hermenêutico-epistemológico de tomada de decisão em sua complexa unidade como um ato único, que se desenvolve continuamente por um determinado período de tempo, sem subdivisões”[14].

É por isso que na unidade da tarefa de ambos os níveis reconhecemos a applicatio como uma garantia contra arbitrariedades, porém, não a única, pois é a explicitação do compreendido que terá o papel de trazer a lume o “lado epistemológico” da hermenêutica”[15]. Daí a necessária superação da indevida separação entre hermenêutica e argumentação, entre ambos os níveis. Diferentes, mas não separados. Relacionados em certo “privilégio”, não temporal ou cronologicamente definidos. O reconhecimento da especificidade de cada um, especialmente a importância do círculo hermenêutico, faz com que unamos ambos, “conciliando o aspecto ontológico da decisão com as vicissitudes do caso concreto e sua devida justificação normativa”[16], afastando o momento argumentativo-explicitativo de tentações metafísicas, fincando-o no nível hermenêutico com um projeto antecipador de sentido[17].

O reconhecimento de ambos os níveis com “funções” diferenciadas faz com que entendamos que qualquer perspectiva das ditas teorias da argumentação jurídica não possa ser utilizada de forma estética. É necessário o reconhecimento de sua função: plêiade de critérios/regras/etc. para a explicitação formal da applicatio sem ofuscar a diferença ontológica e o círculo hermenêutico[18].

Talvez, o esforço doutrinário e jurisprudencial realizado em não se reconhecer as implicações das especificidades e inter-relação entre ambos os níveis seja um dos principais motivos para se diminuir a amplitude e importância do elemento fundamentação das decisões judiciais e das importantíssimas previsões do artigo 489 do CPC, complementares ao mandamento constitucional do artigo 93, IX da CF. Por óbvio, pré-conceitos e intenções das mais variadas não poderiam ser exauridas e condensadas neste espaço. E infelizmente, como não faltam exemplos, trazemos apenas um noticiado há poucos dias aqui na ConJur (link), cujo título é autoexplicativo: “Autor aponta omissão em sentença e é multado por litigância de má-fé”. Além de não cumprir o dispositivo normativo, pune-se o demandante que deseja seu cumprimento.

Nesse cenário, todos perdemos. E a autonomia do Direito, que frente aos principais predadores (política e moral) no momento de sua “aplicação”, reduz-se drasticamente e nos mantém reféns de uma conhecida postura que parece ser inalterável: decido primeiro, fundamento depois. Isso alimenta os mais variados ditos populares, a pré-compreensão jurídica dos que são tecnicamente capacitados (dito operadores) e o senso comum da população em geral, corroendo de forma rápida e drástica, qualquer centelha de segurança jurídica ou previsibilidade de resposta aos casos concretos a serem apreciados.

Como dito, o argumento explicita o compreendido. É a explicitação das condições sobre as quais se compreendeu. Portanto, a fundamentação é condição de possibilidade da legitimidade da decisão[19]. Só se decide porque já se encontrou o fundamento[20]. Ou seja: “fundamentamos porque decidimos, e somente decidimos fundamentadamente”[21]. Daí, reafirmemos a inseparabilidade dos níveis hermenêutico e apofântico e da decisão e seus fundamentos. Entender os dois níveis, seus funcionamentos e seu trabalho conjunto no âmbito jurídico é mais um dos instrumentos de combate (e prevenção) a discricionariedades e arbitrariedades de decisões judiciais. Talvez, o mais importante e o ponto de início dos demais.


[1] Em 2015, aqui na ConJur, envolvendo também o tema, tivemos proveitoso debate entre Manuel Atienza de um lado e Rafael Tomaz de Oliveira e Lenio Luiz Streck de outro.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014, p. 252; 412.
[3] Em Heidegger, Ser e Tempo. Vozes, 2012, p. 220.
[4] Reafirmamos porque, semanalmente em sua coluna aqui na ConJur ("Senso Incomum"), o professor Lenio Streck costuma relembrar tal ponto.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Saraiva, 2014, p. 485.
[6] Idem.
[7] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio. Livraria do Advogado, 2008, p. 43.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014, p. 141; 484.
[11] Ibidem, p. 483. Em complemento, é importante mencionar que a questão da impossibilidade de “procedimentalizar” a compreensão já era uma preocupação central do professor Lenio Streck desde 1999. Embora algumas vezes tenha o seu nome sonegado nas discussões sobre a filosofia hermenêutica, hermenêutica filosófica e suas respectivas contribuições ao Direito, é sabido que, no Brasil, ele foi pioneiro na abordagem do tema, sobretudo a partir das lições de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Nesse sentido, v. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, passim.
[12] Citações do parágrafo retiradas de MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a verdade, radicalização hermenêutica e fundação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2010, p. 166.
[13] O professor Lenio Streck, em inúmeras obras, vem abordando tal ponto. Vide: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Saraiva, 2014, passim; STRECK, Lenio Luiz. Decido conforme minha consciência. 2013, passim.
[14] Citações do parágrafo retiradas de MARRAFON, Marco Aurélio, op. cit., p. 167.
[15] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014, p. 299.
[16] MARRAFON, Marco Aurélio, op. cit. p. 165.
[17] Idem.
[18] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, 2014, p. 252-253.
[19] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014, passim.
[20] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, 2014, p. 217.
[21] SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. RT, 2015, p. 153. Noção esta que está pautada na ideia de que não interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar, Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014, p. 252; 412.

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