Senso Incomum

Imperdível: professor e juiz explicam a literalidade da Constituição

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1 de março de 2018, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Parte I: contra a literalidade, contra as garantias
Leio, na ConJur, artigo de opinião assinado pelo professor Adilson Abreu Dallari, para quem a “literalidade faz da presunção de inocência uma garantia de impunidade”. Dallari diz que um “uma coisa é a aplicação correta dos direitos e garantias fundamentais, mas outra coisa é o exacerbado ‘garantismo’, em detrimento dos interesses comuns da coletividade”.

O artigo de Dallari requenta argumentos como o de que artigo 5º, LVII da Constituição Federal impediria qualquer tipo de prisão cautelar, o que por si representa erro crasso de dogmática processual penal; outro argumento é de senso comum: diante de um cenário de impunidade, o princípio da presunção de inocência teria sido transformado em uma “presunção de impunidade”.

Ora, sobre o primeiro ponto: a boa dogmática já deixou claro, há muito, que prisão cautelar não é pena antecipada. Com relação ao segundo, eu poderia, aqui, fazer a mesma pergunta que fiz ao professor José Eduardo Faria em recente coluna: “há excesso de garantias, diz professor. O que dirão os 750 mil presos?” Recomendo a leitura para quem quiser saber o que tenho a dizer sobre esse Processo Penal 3.0 reivindicado por juristas como Dallari, Faria, Moro, Gimenes (logo verão porque falo desse juiz), etc. É isso. Será que as mais de sete centenas de milhares que formam a população carcerária do país colocariam o garantismo entre as mesmas aspas irônicas utilizadas por Dallari? Creio que não. Aliás, colocar aspas no garantismo aproxima o texto de Dallari a qualquer manifesto do tipo “contra a bandidolatria”. Não quero crer que a intenção do ilustre Professor tenha sido essa.

Muito já foi dito sobre isso tudo. Por mim e por tantos outros. Por isso, hoje, quero demonstrar por que a tese de Dallari é inconsistente. E, pior, é um sintoma de como setores do Direito flertam com o autoritarismo e secundizam direitos fundamentais. Se é assim que os professores ensinam Direito pelo Brasil afora, transformando-o em uma frágil teoria política do poder, não pode nos surpreender o pensamento reacionário que vem sendo forjado. A ConJur é um exemplo desse fenômeno no espaço dos comentários. Jovens e velhos com traços comuns: o reacionarismo e o discurso raivoso contra quem defende garantias. E até mesmo a criminalização da advocacia.

Vejamos as fragilidades do artigo de Dallari. O professor diz que o papel do intérprete, cujo trabalho seria “instrumental”, “deve estar voltado para a busca da solução mais adequada e mais justa dos problemas suscitados” (grifos meus).

Assim, Dallari, além de (i) incorrer no velho erro da cisão entre interpretação e aplicação, dá a entender que (ii) não é apenas aceitável, mas desejável, que o Direito seja visto a partir de um olhar pragmático, teleológico. Também (iii) acredita na discricionariedade: se a decisão judicial deve buscar a solução mais adequada, a solução mais justa, isso quer dizer que a posição pessoal do julgador vale mais do que o Direito. Ou seja, para ele, o intérprete escolhe. E, assim, não dependemos do Direito. Dependemos do “intérprete que faz uma adequada instrumentalização”.

Para começar, eu não acredito “na escolha” da solução mais adequada. E “adequada” para quem? Acredito em uma resposta baseada em critérios a partir dos quais a decisão jurídica respeite o direito fundamental do cidadão a uma resposta adequada à Constituição.[1]

Sigo. Interpretação “instrumental”? Dallari, claramente, admite que o intérprete atribua sentido ao texto, arbitrária e livremente. Aliás, essa postura não é privilégio de professores como ele. Isso se espalha dia a dia, incentivando a correção do Direto por argumentos morais. Para dizer o mínimo. Despiciendo ter que dizer que norma não significa texto (Müller); mas tampouco dele pode ser descolada quando se interpreta (Streck), a não ser se estamos diante de inconstitucionalidade (ver as seis hipóteses aqui).

Ainda assim, para fins de argumentação, partamos do pressuposto de que o professor está certo e que, sim, a interpretação é “instrumental”, e, através desse “instrumento”, o intérprete escolhe uma das possíveis respostas. Pois bem. Se a atribuição de sentido é livre, também fica a cargo do intérprete dizer o “que é isto — a escolha mais adequada”. Mas, o que é isto “a solução mais justa”? Há um justômetro? Bem, para o professor paulista, fica a cargo do intérprete, pois não? Esqueçamos, pois, a autoridade da tradição, do texto, e o standard de racionalidade do Direito. É “mais justo” que o réu vá para a cadeia. Mas, e se eu disser o contrário?

Dallari parece esquecer que, quando a atribuição de sentido é livre e não há resposta certa, o contrário pode ser dito com base no mesmo fundamento. É a institucionalização de um humptydumptysmo jurídico: dou às palavras o sentido que quero. Resultado disso? O caos. Um estado de natureza epistêmico.

O que é mais justo: prender ou soltar? A resposta é moral ou jurídica, professor? Se o padrão epistêmico que constrói a argumentação de Dallari estiver correto, tanto faz. Porque, sem critérios, qualquer coisa pode ser dita sobre qualquer coisa. A racionalidade por trás do argumento do articulista permite que o julgador decida como bem entender, algo como “decido conforme minha consciência”. Na sua tese, buscar o “justo” é “ousar” na interpretação. Mas, para qual o lado? É uma questão lógica, e é por isso que sua tese já nasce derrotada… embora devemos reconhecer que a maioria da comunidade jurídica pensa como o professor Adilson Dallari. Talvez seja por isso que menos de 1% dos recursos sejam acolhidos no Superior Tribunal de Justiça. Ou que ainda se inverta o ônus da prova. Bom, aqui o leitor complementa.

Parte II: a favor da literalidade e contra as garantias
Leio, também na ConJur, uma crítica, direcionada a mim, por parte do juiz federal José Jácomo Gimenes. Texto elegante. Para ele, se a Constituição diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado”, disso não se segue que a pena antecipada fere a Constituição. Isso porque, para ele, a Constituição não fala “ninguém será preso até o trânsito em julgado”. Despiciendo, de pronto, apontar os erros processuais-penais na assertiva. Há uma diferença entre prisão decorrente de pena e prisão cautelar.

Um argumento similar foi utilizado pelo ministro Roberto Barroso, quando do julgamento do HC 126.292. Disse, à época, Barroso que “[…] a Constituição brasileira não condiciona a prisão — mas sim a culpabilidade — ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade.”

Desnecessário comentar o textualismo ad hoc. Os argumentos, a partir de qualquer perspectiva, soam-me algo como “veja bem, você ainda não é considerado culpado, mas vai passar a cumprir a pena desde já ainda assim. Lo siento.” Presunção de inocência para quê, não é mesmo?

Mais: a partir desse raciocínio, parece que qualquer prisão é legítima, independentemente de motivação cautelar. Basta uma decisão escrita e fundamentada… em qualquer razão. Toda essa fé na “vanguarda iluminista” parece-me sobrepor o Judiciário ao legislador.

Essa crença absoluta no poder dos juízes é outro ponto compartilhado por Gimenes e Barroso, como como se vê, respectivamente, no texto de Gimenes e no voto de Roberto Barroso na ADC 43 (que visava à constitucionalidade do artigo 283 do CPP).

Senão, vejamos. Em face do artigo 283 do Código de Processo Penal,[2] que fala, este sim, em “prisão”, o juiz Gimenes argumenta que “a redação do mencionado artigo 283 decorreu da interpretação do Supremo em 2009” e, por isso, “se o Supremo voltou a antiga tradição [sic], reconhecendo a possibilidade de prisão após segundo julgamento, a redação do artigo 283, dependente da interpretação decaída, deve ter o mesmo destino, por contrariar a Constituição explicitada pelo Supremo”. Foi o que entendeu Barroso, ao, pelas mesmas razões, dizer que o dispositivo deve ser interpretado conforme a Constituição (que, para Gimenes e Barroso, autoriza a prisão em segunda instância). O que Gimenes esqueceu? Simples: esqueceu que o STF não poderia voltar à sua velha posição. E sabem por que? Porque o legislador já legislara sobre isso. Bingo. E ainda há uma separação de Poderes no que resta da República.

Ou seja: para Gimenes, o Supremo decidiu assim, e pronto. Pois bem. Só que o STF errou. Aqui falta o “fator Julia Roberts” (aqui). Por trás da tese de Gimenes está o velho realismo jurídico: o direito é o que o judiciário diz que é. Esse vírus do realismo retrô parece o Jason da série Sexta-feira 13. Ele volta. E volta.

Gimenes faz um belo jogo de palavras, isto é, para permitir que a Constituição seja o que o intérprete quiser que ela seja, ignora um ponto muito simples: se não há a culpabilidade (o que, segundo o textualismo-por-conveniência, só ocorre após o trânsito em julgado), como pode haver prisão?

Parte III: quando a literalidade e seus inimigos convergem
Voltando a Dallari, este entende que o texto constitucional é claro no sentido de obstar a prisão em segunda instância (ao menos nisso ele acerta…); mas pede que não optemos pela literalidade da Constituição.

Em linha oposta, o juiz Gimenes entende que o texto constitucional é claro no sentido de não obstar a prisão em segunda instância; assim, pede que optemos pela literalidade da Constituição. Entenderam? Lembrei das Viagens de Gulliver — escrito por Jonathan Swift em 1726 — e a guerra em que morreram 30 mil soldados, porque em disputa estava a interpretação da Constituição do reino, cujo artigo claramente dizia que todos-deveriam-quebrar-os-ovos-pelo-lado-certo. Bingo. Qual será o lado certo nessa disputa dos ovos constitucionais?

O ponto em comum entre Dallari, Barroso e Gimenes? Todos dão “à literalidade” o sentido que querem para chegar em um objetivo já previamente estabelecido. E o objetivo? A eficientização do processo penal. Processo penal 3.0, turbo. A Constituição é colocada em segundo plano, como um mero meio de se atingir aquilo que todos querem, “o fim da impunidade”. Isso tem de ser dito. Textualismo ad hoc, iliteralidade de marketing.

Prisão sem culpa e sem motivação cautelar: eis o objetivo do DPP 3.0. A Constituição contra as garantias, e as garantias contra a Constituição. De minha parte — com minha ortodoxia constitucional — nunca preguei “literalismo” ou “antiliteralismo”. Essa não é uma discussão hermenêutica. Quem me lê, sabe disso. O que lamento é que, hoje em dia, cada vez mais a literalidade e a não literalidade se transformaram em argumentos ideológicos e estratégicos. Um dia o texto é tudo; no outro, o texto é nada. Como o personagem Ângelo, da peça de Shakespeare, Medida por Medida (um dia ele usa a letra da lei para condenar Cláudio à morte; no outro, ignora essa mesma lei porque quer fazer sexo com a irmã de Cláudio).

Veja-se, pois, que tanto o professor Dallari e o juiz Gimenes (e um ministro do STF) chegam à mesma conclusão (a favor da prisão antecipada) com dois argumentos antitéticos: de um lado, diz-se que a literalidade é ruim no caso da presunção, porque propicia impunidade; se outra banda, diz-se que a literalidade aponta para a prisão. Seria bom se os intérpretes combinassem melhor entre si “o que é isto – a literalidade”.

De todo modo, digo que, na democracia, não é feio aplicar aquilo que a lei diz. Não nos envergonhemos de aplicar a lei.[3] Sinonímias epistêmicas são desejáveis na democracia. Mas isso não quer dizer subsunção ou “escravidão à lei” ou coisas desse gênero, que povoaram o imaginário dos juristas do século XIX e início do século XX (até o advento das teorias voluntaristas). Também seria bom que os professores de todo o Brasil passassem a ensinar mais Direito e menos TPD (teoria política do poder). E não confundissem conceitos dogmáticos. É possível prisão antes da formação da culpa, desde que presentes os requisitos da cautelar. Quando discutimos presunção da inocência, não é disso que estamos falando.

Como já falei aqui, não é rigor comparar leis com ovos, mas, sim, com caixa de ovos. Na democracia — e vou adaptar um exemplo de Bobbio — um mesmo tipo de caixa pode ser enchido com flores, explosivos ou com ovos. Se a caixa for de ovos, devemos enchê-la com… ovos e não com flores ou explosivos. E nem com qualquer outra coisa. Podemos até discutir o tipo de ovos. Mas são… ovos. Saber o que são ovos já é um bom início de conversa hermenêutica.


1 Destaco o verbete “Resposta Adequada à Constituição”, de meu Dicionário de Hermenêutica (ver aqui).

2 Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

3 Um belo texto criticando o “estado da arte do modo de aplicar o direito hoje” é de autoria de Thiago Pádua, intitulado “Novo” Velho Estado (jurídico) Novo: Réplica ao Professor Luís Roberto Barroso (ou sobre os juristas que roubavam cadáveres). aqui

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