Opinião

Os projetos do novo Código Comercial e o grave cenário brasileiro

Autor

  • Pedro Henrique Garcia Demori

    é advogado no Sobrosa & Accioly Advogados pós-graduando em Direito Processual Civil e História do Brasil pela Universidade Candido Mendes e bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (PR).

30 de maio de 2018, 15h35

Apresentado sob a forma de dois projetos de lei distintos, a edição do novo Código Comercial já desponta em direção retrógrada. O que é exposto como oriente de modernização jurídica, na verdade, é um conjunto nebuloso capaz de criar impedimentos e agravar a já burocrática rotina dos empreendedores brasileiros.

Vamos a alguns exemplos. Dentre os 670 artigos do PLC 1.572/2011 e 1.195 do PLS 487/2013, o legislador ocupou-se de incluir a exigência de prévia relação dos membros de todo o quadro societário estrangeiro, com nome, nacionalidade, profissão e domicílio, para que a sociedade estrangeira se instale no país (artigo 220, PL 487/2013) ou que se torne sócia de sociedade brasileira (artigo 143, PL 1.572). Como se não bastasse, todos os documentos deverão ser autenticados e legalizados no consulado brasileiro da respectiva sede e acompanhados de tradução em vernáculo. Ou seja, o legislador, anos-luz da realidade das práticas empresariais internacionais, busca tomar ainda mais tempo do empreendedor para registrar uma sociedade.

E os absurdos não param por aí. No artigo 317 do Projeto de Lei da Câmara, atribui-se ao Ministério Público a possibilidade de pleitear a anulação do negócio jurídico por descumprimento da função social. Sendo um conceito jurídico totalmente indeterminado, não pacificado na doutrina e na jurisprudência, é certo que o instituto da “função social da empresa” trará mais insegurança jurídica às relações contratuais entre empresários. Se já compete ao Ministério Público agir na defesa de interesses difusos e coletivos, qual o propósito de se adotar um termo tão dúbio, sujeito a interpretações discricionárias? Fica o questionamento.

Mas não se pode reprová-los em absoluto. O PL 487, por exemplo, finalmente dispõe sobre falência transnacional e cooperação jurídica entre juízos nacionais e estrangeiros no país. O projeto do Senado reduz as amarras burocráticas que existem atualmente, dispensando a necessidade de tradução juramentada (artigo 1.061, parágrafo 1°) e intermediação de órgão diplomático nas comunicações processuais. Permite-se que o próprio juiz nacional proficiente na língua do juízo estrangeiro possa se comunicar livremente, bastando tradução feita por ele mesmo nos autos.

Ocorre que, longe de se basear na Lei Modelo da Uncitral sobre insolvência transnacional[1] (incorporada pelas principais economias[2]), o PL adotou um regime discriminatório do crédito estrangeiro. Ignorou-se o princípio da vedação ao tratamento desigual aos credores estrangeiros (adotado no artigo 13 da Lei Modelo da Uncitral), posicionando o credor sediado no exterior após os credores quirografários — no quadro geral de credores —, classificando-os injustificadamente como credores subordinados[3].

Mais adiante, outro ponto dos projetos é que houve a supressão das sociedades em comanditas. Não há mais previsão dessas figuras societárias, já em desuso na prática comercial do país.

Ainda, o PL 487 incluiu a figura da sociedade unipessoal limitada (artigo 53, II; artigo 308; artigo 327; artigo 452, parágrafo 2°). Aparentemente, não há requisitos mínimos de capital social para constituir esse tipo societário, mas, como se trata substancialmente de empresa individual de responsabilidade limitada (Lei 12.441/2011), não ficou claro se houve revogação dos requisitos mínimos para sua constituição.

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica também foi incluído com o objetivo de estabelecer parâmetros e limites para sua aplicação. Agora, são necessários que se façam presentes a confusão patrimonial, o desvio de finalidade, o abuso da forma societária ou de fraude perpetrada por meio de autonomia patrimonial da sociedade. Logo na sequência, cuidou-se de positivar entendimento jurisprudencial consolidado no sentido de que a simples insuficiência de bens no patrimônio da sociedade para satisfação de crédito do credor não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica.

Feitas essas considerações pontuais, portanto, em uma fase tão conturbada no país, e de aparente recuperação do crescimento econômico, seria inconveniente e danoso instituir um código que trará incertezas e hostilidades às relações comerciais e desestimulará o investimento de empresários nacionais e estrangeiros.

No caso do Brasil, para se ter uma ideia, quando comparado a outras economias, o país figura em 176° (dentre 190 países)[4] quando se trata da facilidade em abrir empresas, e em 125° no quesito facilidade para fazer negócios, segundo relatório do Banco Mundial[5].

A adoção de um novo Código Comercial autônomo e moderno, com normas objetivas e eficientes, sem dúvida traria maior previsibilidade e segurança para os investidores. É evidente a necessidade de mudança, mas é impossível lograr resultados eficientes com um Legislativo tão atracado a ideias ultrapassadas e destoantes da realidade econômica do país.


[1] Como faz o recentíssimo PL 10.220/2018 (Capítulo VI-A; Art. 167-A e ss.).
[2] Lista completa: situación actual – Ley Modelo de la CNUDMI sobre la Insolvencia Transfronteriza. Disponível em <http://www.uncitral.org/uncitral/es/uncitral_texts/insolvency/1997Model_status.html>.
[3] Um caso relevante de aplicação da norma base para falência transnacional vale ser mencionado. Nos Estados Unidos, aplica-se o Chapter 15 (incluído no Código de Falência – Bankruptcy Code) aos casos de falência de empresas transnacionais e de empresas estrangeiras com ativos ou operações no país. Naquela jurisdição, o pedido de reconhecimento feito pelo representante estrangeiro, com base no Chapter 15, deve ser protocolado perante o respectivo Tribunal de Falências. Assim, a referida corte designará o processo estrangeiro como principal ou subsidiário, suspendendo automaticamente (em caso de processo principal) os bens do devedor estrangeiro que estiverem localizados em território americano. Limita-se a possibilidade de atuação do Tribunal de Falências aos ativos da entidade estrangeira ou de pessoas que estiverem na jurisdição, de forma a não interferir em assuntos do país estrangeiro. Não obstante, pode o tribunal autorizar a nomeação de um administrador estrangeiro para agir em nome da massa falida no exterior. Assim que o tribunal dos EUA recebe o pedido de reconhecimento do representante estrangeiro, as cortes devem determinar qual será considerado como o processo principal, facilitando a persecução de ativos e a inclusão de todos os credores na falência.
[4] Da lista de 190 países, o Brasil só fica em vantagem quando comparado a Haiti, Camboja, Suriname, Zimbábue, Sudão do Sul, Somália, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Congo, Chade, República Centro-Africana, Camboja, Bolívia e Venezuela.
[5] Doing Business 2018. Banco Mundial. Disponível em: <http://portugues.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/brazil#starting-a-business>.

Autores

  • é advogado no Sobrosa & Accioly Advogados, pós-graduando em Direito Processual Civil e História do Brasil pela Universidade Cândido Mendes e bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (PR).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!