Opinião

A doutrina sexista também é ideologia de gênero?

Autor

  • Eliana Pires Rocha

    é procuradora da República doutoranda em Direitos Humanos na Universidad Carlos III em Madri e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

30 de maio de 2018, 6h27

É com perplexidade e irresignação que vemos o noticiado avanço de projeto de lei no Congresso Nacional que quer proibir o debate sobre gênero nas escolas. Sabe-se que o projeto neoconservador[1] tem amplo apoio de bancadas e parlamentares alinhados a doutrinas neopentecostais e que estão unificados em torno da recusa a uma suposta “doutrinação” baseada no que denominam “ideologia de gênero” e a defesa da “família”.

É provável que o fator determinante para o modo de filosofar politicamente na modernidade tenha sido justamente a secularização do pensamento. Num giro antropocêntrico, o movimento renascentista abandonou uma visão divina, naturalista e cíclica do mundo e depositou no sujeito, fundamentalmente na razão humana, a responsabilidade pelo seu futuro.

Em resposta ao que seria a Ilustração que sobreveio àquele movimento, Kant[2] afirmou que se tratava da saída do homem da menoridade. O homem precisa se valer de uma estimação racional para pensar por si mesmo. No caso, é a educação que viabiliza esse esforço criador. Para Kant, “toda educação é uma arte, porque as disposições naturais dos homens não se desenvolvem por si mesmas”[3]. Aliás, Rousseau já havia tratado do mesmo tema um pouco antes. Na obra Emilio ou Da Educação, o filósofo idealiza a formação do homem, que, livre e igual aos seus pares no estado da natureza, se degenera em meio à sociedade. É a educação que deve promover a reconciliação entre cultura e natureza.

Como herdeira dessas filosofias, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) reconheceu que todos têm direito à educação. Declarou ainda que todas as pessoas são iguais e merecedoras de igual proteção, sem distinção de sexo, o que foi incorporado à Constituição brasileira (1988)[4].

Ou seja, as filosofias de Kant e de Rousseau mostram que a educação foi um elemento-chave para as transformações buscadas pela modernidade ocidental. Mas, paradoxalmente, Rousseau, o “igualitarista”, não incluiu a mulher entre os beneficiários dessa pedagogia. É no último capítulo de Emílio ou Da Educação, ao introduzir a figura de Sofia, que Rousseau desvela toda a sua misoginia. Vale a pena reproduzir alguns fragmentos: Emilio é “forte”, Sofia, “passiva e fraca”; “é necessário que um [Emílio] queira e possa, basta que o outro [Sofia] resista pouco”. Segue-se disso que “a mulher é feita especialmente para agradar o homem”. Feita para “agradar” e ser “subjugada”, a mulher “deve tornar-se agradável ao homem ao invés de provocá-lo”[5]. Seguro da superioridade de Emílio, Rousseau defenderá uma educação libertadora para os homens — que são livres e iguais — e outra subserviente para as mulheres — que são ontologicamente dependentes e subordinadas.

Kant é mais sutil. Sob influência da filosofia rousseauniana[6], dirá, em relação ao “belo sexo” (a mulher), que ele “possui inteligência como o masculino; mas é uma inteligência bela, enquanto a nossa deve ser uma inteligência profunda”, isto é, “sublime”. A “meditação profunda” e o “exame prologado” são exercícios “árduos” que, por isso, não convêm à mulher, na qual “os estímulos espontâneos não têm que mostrar mais que uma natureza bela” e “debilitam o encanto graças ao qual a mulher exerce seu forte poder sobre o sexo oposto”[7]. Por certo, os dois discursos aniquilavam qualquer pretensão de empoderamento individual da mulher.

Essas referências não constituem um presentismo mal articulado. Repassar a história desde a Antiguidade revela que o conjunto cultural considerado filosófico foi basicamente produzido pelos homens e que uma ideologia sexista[8], detectada entre inúmeros filósofos, além de Rousseau e Kant, sustenta até hoje, ainda que em variados graus, uma organização social discriminatória em relação às mulheres. Por isso, Amorós redefiniu a razão iluminismo como uma razão patriarcal[9], já que, sob a universalidade contida nos lemas da Ilustração (liberdade, igualdade e fraternidade), se mantem uma estrutura social baseada em relações desiguais de gênero. Em suma, a Declaração de Direitos Humanos é universal, mas não aplicável a todas.

O vocábulo gênero no sentido acima empregado diz respeito a uma construção cultural do feminino e do masculino por meio de processos de socialização que formam os indivíduos desde a infância. A ideia é mostrar que a desigualdade e a opressão impostos historicamente à mulher têm uma causa social, e não biológica, natural. Ou seja, não existe passividade, emotividade, amabilidade, subserviência, entre outros atributos subjetivos, inerentes e próprios da mulher, que justificariam a sua exclusão da esfera pública (cultural) e um consequente protagonismo nos limites do mundo privado (natural). Além disso, a igualdade não é inimiga das diferenças que existem entre homens e mulheres, mas dos privilégios espúrios.

É importante ter claro que o feminismo, em suas muitas linhas, é um fenômeno social tematizado conceitualmente desde a Ilustração nos escritos de François Poullain de la Barre, Mary Wollstonecraft, Diderot, Condorcet, Von Hippel, entre outros[10]. A partir daí foram criados vários esquemas conceituais para analisar a realidade que provocaram importantes mudanças históricas na relação sexo e gênero. No século XX, já existia uma rica epistemologia capaz de identificar as concepções e as práticas de atribuição de conhecimento, aquisição e justificação vigentes nas ciências, na arte e na filosofia que discriminam sistematicamente as mulheres e outros coletivos que não se ajustam à subjetividade dominante[11].

Logo, desqualificar as reivindicações feministas sob a tese de “ideologia” (de gênero), neste caso ideologia como distorção da realidade, encobre um longo e rigoroso processo cognitivo e a autoridade epistemológica que o sustenta. Também denota uma renovada misoginia e uma vontade de poder denunciada em milhares de obras filosóficas, científicas e em dados empíricos que atestam a desigualdade entre mulheres e homens e a dominação masculina[12].

Números recentes produzidos por Unicef[13], Ipea[14], Unesco[15] e Mapa da Violência 2015[16] relativos à desigualdade de gênero e de raça atestam isso. Eles mostram, por exemplo, que as mulheres trabalham 7,5 horas semanais a mais que os homens; que o trabalho gratuito (tarefas domésticas e cuidados) ocorre sem divisão paritária; que as mulheres recebem salários mais baixos, especialmente as mulheres negras; que a família prioriza a educação dos meninos; que as meninas têm menos possibilidades de acesso à escola; que há mais analfabetismo e desemprego entre mulheres; enfim, todos aspectos que geram um maior desnivelamento e empobrecimento da população feminina. Números de 2015 referentes à violência, no que se inclui o feminicídio, indicam que 50,3% das mortes violentas de mulheres no Brasil foram cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros.

Mesmo com a Lei Maria da Penha, persistem as altas taxas de abuso e violação sexual, maus-tratos e assassinatos, largamente praticados na privacidade da “família” contra meninas e mulheres. Não é sem razão que para muitas feministas a “família” é uma das instâncias essenciais da dominação masculina, porque nela esse poder, por ser invisível à esfera pública, atua intensamente e de múltiplas maneiras.

Por outro lado, não tem sentido empregar um conceito universalizado de família como fazem os neoconservadores. A própria Constituição reconhece diferentes configurações familiares, inclusive aquelas formadas exclusivamente pela mulher, ou pelo homem, e seus descendentes (artigo 226, parágrafo 4º), o que, a julgar pelos dados acima, agudiza a desigual realidade por ela enfrentada.

A conclusão a que se chega é que mesmo sociedades democráticas ocultam mecanismos que criam e recriam desigualdades e discriminações em razão de sexo — potencializadas por motivos de classe e raça —, e que se agravam pela infrarrepresentação político-partidária de mulheres.

Particularmente a escola, depois da família, sempre foi um importante aparato reprodutivo desses (des)valores. Ciente disso, a partir de diretrizes fixadas em conferências e encontros nacionais de mulheres ocorridos desde 2004, e na linha do artigo 1º da Lei Maria da Penha[17], o governo federal estabeleceu como meta dos Planos Plurianuais da União, inclusive para o período de 2016-2019, fortalecer a democracia com igualdade de gênero. Isso foi transposto para o Plano Nacional de Educação, com a finalidade de implantar novos valores éticos entre alunos e alunas capazes de extirpar as desigualdades e a violência misógina.

Doutrinação!, esbravejam os neoconservadores contra as políticas educativas estatais. Mas não há lugar para fundamentalismos[18] ou ingenuidades!

Existe um curriculum oculto que reforça condutas hegemonicamente dominantes[19]. Isso ocorre até mesmo por meio da transmissão involuntária e sub-reptícia de estereótipos do professorado nas suas práticas discursivas, que desde cedo inclinam os meninos a intervir ativamente no mundo e as meninas a priorizar o amor e os cuidados da família[20]. Bello e Galdo[21] descrevem assim esses estereótipos:

“Os estereótipos masculinos estão ligados a atividades profissionais, ao âmbito do público, do poder, sendo designados com as seguintes características: atividade, agressividade, autoridade, valentia, risco, competitividade, dotes de mando, atitudes para as ciências e amor ao risco. Os estereótipos femininos, entretanto, estão relacionados a atividades de cuidado, ao desenvolvimento da privacidade, a falta de controle sobre o poder que são destacados através das seguintes peculiaridades: passividade, ternura, submissão, obediência, docilidade, medo, timidez, falta de iniciativa, tendência a sonhar, dúvida, instabilidade emocional (representada como histerismo), falta de controle, dependência, aptidão para letras e debilidade”.

E não poderia ser diferente. Afinal, as relações sociais de poder também penetram nas instituições educativas e se reproduzem ali. Isso significa que nem projetos curriculares nem conteúdos nem materiais didáticos nem modelos de organização da escola nem as condutas do professorado e do alunado devem ser analisados de forma neutra[22], isto é, à margem de uma doutrina sexista que impregna há séculos, explicita ou subliminarmente, o mundo da vida.

Lembrando o que diz a Constituição Federal, a educação, como direito de todos e dever do Estado e da família, junto com a sociedade, visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Esse direito pressupõe pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas e liberdades de ensino e de aprendizagem. É evidente que a Constituição fala de algo que excede a capacidade de leitura, de escrita, de formulação de cálculos e técnico-profissional. O direito à educação tem a ver com a aquisição de conhecimentos e valores morais que correspondem, em boa medida, ao modelo que se quer de sociedade e sob o qual se formarão os seus integrantes.

Por isso, a teoria crítica feminista concluiu que não basta o pleno acesso das meninas à escola. Altos índices de acesso escolar e a capacidade econômica das famílias não explicam, por exemplo, porque os ingressos laborais das mulheres são menores ou porque elas são submetidas à dominação masculina[23]. Tendo isso claro, Fraser propôs, como igualação substancial de direitos, uma distribuição de recursos e serviços básicos às mulheres associada a uma implementação de políticas de reconhecimento[24], sendo a escola um importantíssimo veículo para isso.

Resgatando Kant a tempo e naquilo que é devido, acreditava ele que somente a reunião da arte de governo e da arte de educação poderia conduzir as crianças e o povo à liberdade. É a educação pública — mais propensa, segundo ele, a desenvolver as habilidades e o caráter sem as falhas da educação doméstica[25] — que favorece o desenvolvimento das capacidades moral e cultural de quem participará da ordem estatal republicana, atuando para a emancipação política de toda a sociedade.

Mas distinguir o que é moralmente correto do que é espúrio requer que se desenvolva, nos alunos e alunas, a capacidade de pôr em xeque a idoneidade dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens, desativando a doutrinação sexista que desiguala, empobrece, exclui, explora, subjuga, violenta e mata.


[1] GRANGE, Juliette, Les néoconservateurs, Pocket, Paris, 2017, p. 11.
[2] KANT, E., Respuesta a la pregunta: ¿Qué es la Ilustración?, En defensa de la Ilustración, Alba, Barcelona, 1999, 63-71, p. 63.
[3] KANT, E., Pedagogia, www.philosophia.cl, Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, https://pt.scribd.com/document/377767537/Immanuel-Kant-Pedagogia, acesso em 10/5/2018, p.3.
[4] CARÚS GUEDES, Jefferson, Igualdade e desigualdade: introdução conceitual, normativa e histórica dos princípios, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2014, p. 105.
[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques, Emilio ou Da educação, 2. Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 424.
[6][6] CASTRO DE PROBERT, Dulce Maria Granja, Estudio Preliminar, KANT, E., Observaciones sobre lo sentimiento de lo bello y lo sublime, FCE/UAN/UNAM, México, 2004, p. L.
[7] KANT, E., Observaciones sobre lo sentimiento de lo bello y lo sublime, FCE/UAN/UNAM, México, 2004, p. 30-31.
[8] AMORÓS, Célia, Hacia una crítica de la razón patriarcal, Madrid, Anthropos, 2. ed., 1991, p. 27.
[9] Idem, p. 72.
[10] COBO, Rosa, Repensando la democracia: mujeres y ciudadanía, COBO, Rosa (ed.), Educar en la ciudadanía. Perspectivas feministas, Madrid, Catarata, 2008, p. 19-52, p. 28.
[11] NICOLÁS LAZO, Gemma, Debates en epistemología feminista: del empiricismo y el standpoint a las críticas postmodernas sobre el sujeto y el punto de vista, NICOLÁS LAZO, Gemma; BODELÓN, Encarna (Comps.), Género y dominación. Críticas feministas del derecho y del poder, Anthropos, Madrid, 2009, p. 25-62, p. 26.
[12] BOURDIEU, Pierre, La dominación masculina, Barcelona, Anagrama, 2000, p. 19.
[13] https://www.unicef.org/spanish/gender/3984_factsandfigures.html
[14] http://www.ipea.gov.br/retrato/
[15] http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002325/232565s.pdf
[16] http://mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
[17] O Brasil ratificou dois importantes tratados: a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em 1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1995.
[18] SEGATO, Rita Laura, La guerra contra las mujeres, Traficantes de Sueños, Madrid, 2016, p. 16.
[19] TORRES SANTOMÉ, Jurjo, El currículum oculto, Morata, Madrid, 1998, p. 13.
[20] COBO, Rosa, Repensando la democracia: mujeres y ciudadanía, COBO, Rosa (ed.), Educar en la ciudadanía. Perspectivas feministas, Madrid, Catarata, 2008, p. 19-52, p. 35.
[21] SANCHEZ BELLO, Ana; IGLESIAS GALDO, Ana, Currículum oculto en el aula: estereotipos en acción, COBO, Rosa (ed.), Educar en la ciudadanía. Perspectivas feministas, Madrid, Catarata, 2008, p. 123-149, p. 132.
[22] TORRES SANTOMÉ, Jurjo, El curriculum oculto, Morata, Madrid, 1998, p. 14.
[23] GUERREIRO CAVIEDES, Elizabeth et allí, Acceso a la educación y socialización de género en un contexto de reformas educativas, PROVOSTE FERNÁNDEZ, Patricia (Ed.), Equidad de Género y Reformas Educativas. Argentina, Chile, Colombia, Perú, Hexagrama Consultoras-FLACSO-IESCO, Santiago de Chile, 2006, p. 9-50, p. 09.
[24] FRASER, Nancy: Iustitia Interrupta. Reflexiones críticas desde la posición «postsocialista», Bogotá, Siglo del Hombre Editores-Universidad de los Andes, 1997, p. 231-235.
[25] KANT, E., Pedagogia, www.philosophia.cl, Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, https://pt.scribd.com/document/377767537/Immanuel-Kant-Pedagogia, p. 3.

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