Opinião

A vulnerabilidade institucional do consumidor e a difícil tarefa de combatê-la

Autor

  • Arthur Rollo

    é doutor e mestre em Direito; especialista em Defesa do Consumidor; e professor universitário de cursos de graduação e de pós-graduação de Direito; foi Secretário Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

30 de maio de 2018, 7h10

O consumidor é vulnerável por presunção constitucional absoluta, conforme o artigo 5º, LV da Constituição Federal. Essa vulnerabilidade, segundo a doutrina, classifica-se em técnica, econômica e jurídica. É técnica porque o fornecedor detém as informações dos produtos e dos serviços que coloca no mercado e também estabelece as condições de sua comercialização. É econômica porque o fornecedor quase sempre detém poderio econômico muito superior àquele de seus consumidores. É jurídica porque os fornecedores dispõem de departamentos jurídicos altamente especializados e segmentados para seus ramos de atividade, enquanto que o consumidor procura advogados “generalistas” que, não raro, não aprofundaram o estudo do Direito do Consumidor.

Mesmo nesse cenário de vulnerabilidade extrema e evidente, há quem defenda a desnecessidade da proteção do consumidor. Hoje se fala em autorregulamentação para todos os setores, como se o nível de consciência social das empresas estivesse excelente, e em mínima ou nenhuma intervenção do Estado, remontando aos tempos do liberalismo econômico e do laisser faire e laisser passer. Há também aqueles que dizem que o consumidor está empoderado pela internet e pelas redes sociais e que, por isso, não mais necessita da proteção do Estado.

Sábio foi o constituinte de 1988 ao inserir o Direito do Consumidor dentre os direitos e garantias fundamentais e ao protegê-lo por cláusula pétrea. Não fosse isso, certamente algum luminar, defensor do “mercado moderno”, sugeriria tirar o Direito do Consumidor da Constituição Federal. Não é exagero ante a recente transformação, inconstitucional, registre-se, da Secretaria Nacional do Consumidor em Secretaria Nacional das Relações de Consumo (Decreto 9.360 de 2018), defendida inclusive publicamente pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor em reportagem de O Globo.

A nosso ver, a vulnerabilidade do consumidor, ao menos no Brasil, está mais exacerbada do que nunca. Primeiro, diante do cenário político e do cenário econômico. Infelizmente, tem muita empresa ainda que pensa que a solução para seus problemas econômicos está na retirada dos direitos dos consumidores. Isso como se seus proprietários e executivos não fossem igualmente consumidores de um sem-número de outros produtos e serviços. É mais do que óbvio que o retrocesso nos direitos dos consumidores em um setor repercutirá em diversos outros setores do mercado. Nesse sentido, retroceder nesses direitos pode melhorar imediatamente o desempenho econômico da empresa, mas, de outro lado, representará uma série de consequências para os empresários e executivos nas suas vidas pessoais, sobretudo quando forem idosos e já tiverem sido descartados pelas empresas que defendem, inclusive contrariando pilares constitucionais.

Proteger os consumidores dos excessos do mercado é, sobretudo, defender a sociedade. O bom capitalismo coexiste com a defesa do consumidor, porque os bons empresários e as boas empresas colocam os consumidores no centro de seus negócios e usam a excelência de atendimento como estratégia para atrair mais consumidores e gerar mais lucro.

Se existe intervencionismo exagerado do Estado, certamente não é na defesa do consumidor. Hoje os impostos confiscatórios e a falta de devolução para a população em bens e serviços é o principal problema. O empresário gasta com impostos, com segurança, com plano de saúde para seus funcionários, e tudo isso ocorre num cenário de incertezas econômicas e políticas.

Como se diz popularmente, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Como o Estado não consegue reduzir sua ineficiência administrativa e os gastos públicos, não consegue cortar impostos e acaba compensando o mercado com a redução de direitos que impactam suas atividades. Isso começou com os direitos trabalhistas, com a reforma que reduziu direitos há muito assegurados, e agora o foco recai sobre os consumidores, igualmente vulneráveis.

Segundo, diante das relações, muitas vezes espúrias, entre empresários, empresas e o governo. Tais relações espúrias, no Brasil, são conhecidas desde o Império, mas, mais recentemente, vieram à tona com a operação "lava jato" e com diversas outras operações desencadeadas pela Polícia Federal, que mostraram que más empresas e maus empresários buscaram facilidades no governo em troca de benefícios diversos, por exemplo, em contratos com o poder público, na edição de medidas provisórias, decretos e regulamentos que favorecessem suas atividades.

Terceiro, resultante da soma dos dois primeiros fatores, existe hoje um sem-número de propostas legislativas em trâmite que podem prejudicar muito a vida dos consumidores brasileiros, tornando o mandamento constitucional da proteção do vulnerável da relação de consumo praticamente letra morta.

Já foi aprovado na Câmara dos Deputados o texto base da mudança do sistema do cadastro positivo do atual opt in para o futuro opt out. Na prática, todos os cerca de 200 milhões de consumidores brasileiros, mesmo sem concordar com isso, serão inseridos nos bancos de dados dos bureaus de crédito. A partir daí, todas as suas informações de pagamento serão a eles remetidas para o permanente cálculo do score, que será o fator determinante no cálculo do risco para empréstimo e quaisquer outras relações de crédito com consumidores.

Quem pedir para sair do cadastro será presumido mal pagador e não obterá empréstimos. Terá inclusive dificuldades para abrir ou manter contas em bancos e para ter cartões de crédito. Informações valiosíssimas para o mercado serão gratuitamente colocadas à disposição das empresas, contra a vontade de seus titulares e visando lucro. Tudo isso acontecerá sem que o Brasil tenha aprovado uma lei de proteção de dados.

Está em trâmite a regulamentação dos distratos imobiliários, ou seja, serão definidas as regras para as construtoras nos casos da desistência ou inadimplemento dos consumidores que adquiriram imóveis na planta ou lotes. Embora a questão já esteja consolidada na jurisprudência do STJ, o setor imobiliário busca na Câmara dos Deputados regras que lhe sejam mais favoráveis.

A nova regulamentação dos planos de saúde também está sendo estudada na Câmara dos Deputados. Como o projeto proposto tencionava afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o que na prática já ocorre com a rescisão unilateral e com os reajustes unilaterais dos contratos coletivos, hoje correspondentes a 80% dos contratos firmados, sua tramitação acabou atrasando na Câmara.

Enquanto a lei não muda, a ANS permite a comercialização dos planos acessíveis, que são aqueles que o consumidor paga pouco, mas que em compensação não consegue usar, e também permite que sejam comercializados planos de saúde com maiores franquias e maior coparticipação. Esses regramentos paliativos não vêm impedindo que consumidores deixem de contratar planos de saúde e passem a demandar o SUS. Cada vez mais consumidores deixam de pagar planos de saúde, porque não têm condições econômicas para isso, e recorrem à saúde pública.

Os projetos de lei de proteção de dados tramitam há anos e parecem que agora, por força da preocupação com o novo modelo do cadastro positivo, terão uma tramitação mais célere. As empresas internacionais, no entanto, já pedem um período de adaptação às novas regras de dois anos, como se já não tivessem se adaptado às normas americanas e europeias sobre o tema.

Está pendente de apreciação na Câmara dos Deputados a revogação das cobranças autônomas dos despachos das bagagens pelas empresas aéreas, cuja suspensão já foi aprovada no Senado. Como a colocação do tema em votação pode prejudicar as empresas aéreas, que já vêm cobrando por isso em virtude da autorização da Anac, tudo indica que o tema não será votado na atual legislatura, pela falta de vontade política.

Além dessas exemplificativamente mencionadas, outras tantas propostas prejudiciais aos consumidores tramitam no Congresso Nacional.

Sem dúvida alguma a mais grave de todas as vertentes é a vulnerabilidade institucional do consumidor, porque, a despeito da existência de órgãos públicos e de associações voltadas à sua defesa, os consumidores não têm as mesmas armas do mercado no seu relacionamento com os poderes constituídos.

Pouco acesso os consumidores têm ao Executivo, além da atuação institucional dos órgãos públicos, muitas vezes limitada pela ausência de garantias constitucionais semelhantes àquelas asseguradas ao Judiciário e ao Ministério Público. Os órgãos públicos de proteção dos consumidores lidam com o poderio econômico das maiores empresas do Brasil, que têm relações habituais com todos os poderes. Não raro aquele que conflita com as empresas é destituído do cargo, por ordem superior desencadeada por pedido do mercado. Os cargos máximos da defesa do consumidor, quase todos, são passíveis de exoneração ad nutum. Ainda que o pretexto para a dispensa de seu ocupante seja outro, muitas vezes o pedido vem do mercado.

Menos ainda os consumidores têm acesso ao Legislativo. Muito embora muitos empunhem a bandeira do consumidor durante a campanha eleitoral, poucos são aqueles que defendem os interesses dos mais fracos. O mercado promove palestras e eventos de convencimento dos parlamentares, contrata pareceres, enfim, usa de todas as possibilidades que o poder econômico assegura. De outra parte, quando as entidades do consumidor fazem seus seminários, dependem da contribuição do mercado, que, em contrapartida, inclui dentre os participantes seus representantes mais qualificados.

Com o Judiciário também as empresas se relacionam através dos melhores e dos mais capacitados advogados. Todos os julgamentos dos recursos repetitivos, que decidem as questões consumeristas mais relevantes no plano nacional, contam com o acompanhamento dos representantes dos setores envolvidos. Não raro, mais de um representante do mercado acompanha de perto tais ações, entregando memoriais e fazendo sustentações orais nos julgamentos.

As entidades de defesa do consumidor, que além de poucas têm pequenas estruturas e poucos recursos econômicos, não conseguem fazer frente a tamanha demanda de assuntos e de compromissos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O Sistema Nacional do Consumidor, muito unido e bastante articulado, já sofreu e sempre sofre muitas baixas em seus quadros, de seus mais qualificados representantes, que são contratados pelo mercado. São diversos os exemplos de profissionais qualificados que passaram pela Senacon e pelos Procons que foram contratados por bancos, seguradoras, montadoras e pelas maiores empresas do mercado.

O consumidor é vulnerável no plano institucional e esse aspecto é o mais difícil de ser modificado. Depende da estruturação com independência financeira, na formação de seus quadros e sobretudo na sua atuação institucional dos órgãos públicos de defesa do consumidor, que permitam contrariar interesses econômicos sem que isso custe a cabeça de seus dirigentes, como invariavelmente acontece com aqueles que atuam de forma técnica e independente. Depende da formação de uma bancada de defesa do consumidor no Legislativo, com representantes que defendam a causa especialmente após a eleição e alertem o sistema quanto a quaisquer tentativas de retrocesso nos direitos dos consumidores. Depende da proliferação de associações civis fortes na defesa do consumidor, que disponham de recursos financeiros e quadros técnicos permanentes, que não dependam exclusivamente de sua devoção à causa para recusar as propostas diuturnas do mercado.

Como se percebe, o caminho a percorrer, além de longo, demandará bastante tempo. Enquanto isso, a nós consumeristas resta a proteção da Constituição Federal, que só pode ser ameaçada pelo poder constituinte originário, em virtude da proteção da cláusula pétrea. Que parem de difundir a fake news de que o consumidor brasileiro não mais precisa de proteção.

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    é advogado; doutor e mestre em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo; especialista em Direito Administrativo (Público); professor de Direito Eleitoral de Cursos de Graduação e de Pós-Graduação; e coordenador e coautor do livro “Eleições — o que mudou" (Editora Foco).

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