Tribuna da Defensoria

A criminalização do carimbo em papel-moeda e o debate Hungria-Noronha

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29 de maio de 2018, 8h05

Um vídeo divulgado na internet de manifestantes carimbando cédulas com a imagem do ex-presidente Lula reacendeu a polêmica sobre o caráter criminoso da conduta de inutilizar papel-moeda. Embora a discussão tenha se limitado ao enquadramento no crime de dano, é controversa a tipificação pelo artigo 346 do CP, espécie do crime de uso arbitrário das próprias razões. O alcance do dispositivo foi alvo de intensa controvérsia entre os dois maiores penalistas brasileiros do século XX, Nélson Hungria e Magalhães Noronha, de modo que a tomada de posição nesse clássico embate é crucial, seja para resolver conflito aparente de normas penais — entre quem sustenta a tipificação pelo crime de dano —, seja para concluir de forma peremptória pela atipicidade da conduta.

A disputa inicial sobre a tipificação do dano prende-se à existência de lesão real ou presumida ao bem jurídico patrimônio. Os partidários da criminalização acentuam o prejuízo suportado pela União ante o dever do Banco Central de substituir cédula inadequada após o reingresso em agência bancária (Carta-Circular 3.235, BC, artigo 11). A defesa contradita. A tese transformaria o dano em crime de perigo. Afinal, o reingresso no sistema financeiro é apenas uma das possibilidades de alocar a moeda. Pode ainda o dinheiro timbrado permanecer eternamente em circulação entre os demais agentes do mercado, famílias e empresas, servindo como instrumento de troca, embora com perda do curso legal obrigatório (artigo 10 da Lei 8.697/93), ou mesmo ser rasgado pelo possuidor. Enfim: enquanto basta à acusação o prejuízo presumido, a defesa exigiria o resultado naturalístico.

A rigor, acusação e defesa adotam, nesta peleja, conceitos diferentes de patrimônio, o que é escamoteado pela alusão ao bem jurídico homônimo. Com o fim do padrão-ouro, a emissão de papel-moeda está lastreada em ativos de liquidez internacional; no caso brasileiro, por previsão expressa, em moeda ou derivativo conversível em dólar americano (artigo 3º, parágrafo 2º, da Lei 9.069/95). Desse modo, toda a emissão do papel-moeda pressupõe um ativo correspondente, tanto que, nos balanços do Banco Central, as moedas emitidas aparecem no passivo como meio circulante[1]. Como há necessidade de contrabalançar a conta de numerários, por imperativo legal e de contabilidade, a perda do poder liberatório da moeda não poderia ser compensada com base em cálculo econômico, como o aumento do dólar ou diminuição expectada do déficit inflacionário. A moeda nacional deve ser substituída por outra, corrente e de igual valor, respeitando a paridade do momento de emissão da cédula original. O carimbo em moeda corrente gera, portanto, um passivo contingente, meramente escritural.

Sob o enfoque civil de patrimônio, como universalidade de direitos e obrigações, o papel-moeda carimbado, por si só, não representa débito contra a União. A dívida do ente central dependeria, como visto, do reingresso dos valores no sistema financeiro. No entanto, a conduta dos manifestantes viola o direito da União de dispor livremente sobre o papel-moeda, ainda que em circulação, inclusive de transformar posteriormente moedas em adubo no caso de inutilização natural[2]. Isso se dá porque o possuidor do dinheiro só tem direito, na era nominalista, ao valor ideal de troca. Assim, enquanto a acusação foca o conceito contábil — econômico puro — do patrimônio, a defesa adere ao conceito civil, ainda que parcial, de patrimônio.

Diante dessa disputa insolúvel, ancorada em pressupostos distintos, é relevante assentar a concepção de patrimônio adotada pelo Código Penal. No Brasil, a doutrina clássica defende a preservação do mesmo conceito de patrimônio previsto no Direito Civil. Conforme realça Hungria, apoiando-se em Binding: “O direito penal nada tem de constitutivo, é apenas sancionatório de normas de direito privado. Não existe um patrimônio de direito privado diverso de um patrimônio de direito civil (…) O direito penal é, a tal respeito, um simples mutuário do direito privado”[3]. Embora preserve o caráter sistêmico do Direito, a concepção civil impossibilita a compatibilização do crime de dano com o princípio da bagatela, pois violações distintas sobre o prisma econômico implicariam crime de igual modo, incrementando sobremaneira o punitivismo[4].

O conceito econômico, por sua vez, embora solucione os crimes bagatelares, limita a análise do delito patrimonial ao empobrecimento, excluindo o crime de dano quando o bem atingido for sentimental ou de caráter efetivo[5]. No caso da inutilização da moeda, a configuração do dano dependeria de perícia para certificar se a precificação da obra de arte gerada com o retrato do ex-presidente seria superior ao custo de emissão da nova moeda. Há, portanto, inconsistências em cada uma das teorias extremadas do patrimônio penal.

Para superar as arestas das teorias extremadas, ganha força a teoria mista do patrimônio. Consagra-se a noção jurídico-econômica, mitigando o viés jurídico, ao considerar a função estática, econômica e subjetiva do patrimônio, em que predomina o valor de uso, nos crimes que preveem condutas unilaterais, como o de dano, e a dinâmica — a preponderar o valor de troca —, quando se tratar de crime envolto a relações negociais, de que o estelionato é o exemplo mais candente[6].

Diante desse contexto, é indiscutível a violação pelos manifestantes ao direito da União de dispor do papel-moeda físico. O propósito do ente central, como unidade emissora, é que a vida útil do dinheiro siga seu fluxo natural. Porém, o direito de dispor guarda relação imediata com o valor de troca. O conceito de valor de troca é, assim, irrelevante para o caso de crimes unilaterais ao patrimônio, como o dano, em que prepondera, como visto, o valor de uso.

No caso do dinheiro, a aferição do valor de uso depende da relevância legislativa atribuída à coisa pela União, dada a natureza abstrata do proprietário. Nesse cenário, deve ser salientando o histórico desleixo do ente central com a moeda física. As trocas de unidade monetária sempre facultaram ao possuidor a devolução do dinheiro antigo[7]. Caso importasse à União o dinheiro físico, mesmo a perda do poder liberatório implicaria o dever de devolução. Afinal, se há o poder de emitir moeda, há também o de retirar de circulação, inclusive para transformar o papel velho em bom adubo. O dever de devolução, porém, nunca foi imposto, o que se repete na evolução da moeda nacional, da troca do real imperial à vigência do real novecentista, e as sucessivas trocas de unidade monetária que sobrevieram.

A origem dos rabiscos também nunca preocupou a União. De fato, inexiste qualquer exigência para o depositante revelar o motivo de portar tantos papéis carimbados, o que poderia denotar atitude deliberada de profanar a moeda, tampouco notícia de ação indenizatória promovida pelo ente central para reparar esse estado de coisas. Assim, considerado o dinheiro em sua feição física — a única função atentada pelo carimbo de nota com a insígnia de Lula —, não há crime de dano no caso dos manifestantes petistas.

Sobraria verificar se a conduta dos manifestantes não se amolda ao artigo 346 do Código Penal, imprescindível para concluir pela atipicidade. O fato de tratar-se de crime contra a administração, e não patrimonial, retira a necessidade de comprovar o prejuízo. Basta que a coisa esteja em poder de terceiro por meio de ordem judicial ou convenção — em que se enquadra indiscutivelmente o dinheiro —, e realizado um dos verbos do tipo, entre os quais se inclui danificar. Malgrado isso, a referência a que o objeto aviltado seja coisa própria, em poder do terceiro, poderia resolver o enigma em favor da liberdade. Como o dinheiro é propriedade da União, só o ente poderia cometer o delito de destruição de cédula, tornando atípica a conduta dos carimbadores logo de início.

Incrivelmente, Nélson Hungria, o principal comentador do código, considera crime comum o previsto no artigo 346 do CP. Segundo Hungria, que via no dispositivo uma espécie de crime de dano e furto deslocados, o artigo 346 do CP não pode ser visto como uma espécie de exercício arbitrário das próprias razões. A previsão em artigo diverso do gênero (artigo 345 do CP) representaria uma rematada superfluidade[8]. Segundo o autor, a previsão de tipo autônomo ocorre, “precisamente, porque inexiste, no caso, qualquer pretensão legítima (verdadeira ou suposta), é que o crime foi previsto distintamente do exercício arbitrário das próprias razões”[9]. Como Hungria considerava o crime previsto no artigo 346 do CP como espécie de dano, a conclusão foi admitir sua prática por qualquer um (crime comum): por qualquer terceiro, inclusive o possuidor, seja ou não o credor[10]. No caso do carimbo em papel-moeda, a conclusão, segundo a doutrina de Hungria, seria incriminar o agente pelo crime previsto no artigo 346 do CP, e não no artigo 163 do CP. O papel-moeda, bem da união, profanado, estava em poder de terceiro, tratando-se de fato preponderante para concluir pela especialidade daquele.

Em seguida, Magalhães Noronha contrapõe diversos argumentos de peso para defender a tese de que o artigo 346 do CP configura espécie do crime do exercício arbitrário das próprias razões, crime próprio, portanto. Segundo Noronha, a anomia do tipo não poderia justificar o deslocamento do delito de dano para o rol de crimes que protegem a administração[11]. Em provocação a Hungria, indagou: “Omitiu-se igualmente o título nos crimes capitulados nos arts. 247, 295, 308, 310 e 343?”[12].

O argumento de técnica legislativa também foi contraditado. Para Hungria, o tipo penal do artigo 346 do CP deveria constar como parágrafo do tipo previsto no artigo 345 do CP, para que fosse considerado espécie de exercício arbitrário das próprias razões. Magalhães Noronha retrucou que o tipo penal do artigo 294, de produzir petrechos para falsificação de documentos públicos, só se difere do artigo 295 porque neste consta a elementar de funcionário público como causa de aumento de pena daquele, muito embora em tipos autônomos. O argumento decisivo, segundo o próprio Magalhães, tem a ver com a incoerência de admitir-se o estelionato para o devedor que aliena a garantia pignoratícia de que tem a posse sem o consentimento do credor (artigo 171, parágrafo 2º, III, do CP) e a punição pelo crime do artigo 346 do CP, caso subtraia o mesmo bem após a penhora[13].

Fincada essa premissa, conceber o crime do artigo 346 do CP, na linha de Noronha, como próprio, tornaria atípica a conduta dos manifestantes. Só a União — proprietária da moeda física em circulação — poderia cometer o delito de profanar sua própria moeda.

Os fortes argumentos de Magalhães Noronha impressionaram a doutrina nacional, que o seguiram em expressiva maioria[14], com a exceção parcial de Cezar Roberto Bitencourt. O autor moderno, isolado, até confirma a tese de que o artigo 346 do CP configura espécie do crime de exercício arbitrário das próprias razões, inclusive com acréscimo substancial de argumentos. Contudo, argumenta que o crime é especial só em relação ao sujeito passivo do delito, nada impedindo o cometimento de terceiros, afora apenas o proprietário[15].

Diante desse embate, quer-nos parecer que a posição de Magalhães Noronha deva ser inteiramente prestigiada. Considerar o crime comum, com a especialidade do sujeito passivo, como pretende Bittencourt, implicaria aceitar a tese de que o tipo do artigo 346 regurgite como espécie de dano. Com efeito, se terceiro, sem qualquer relação com a convenção originária da posse do bem, furta ou danifica a coisa objeto da garantia, deveria responder, segundo o autor, pelo crime previsto no artigo 346 do CP. Isso traria ao crime inegável traço patrimonial, o que é falseado inicialmente por Bittencourt, amparado nas lições de Noronha. Assim, a conclusão quanto a ser o tipo do artigo 346 do CP crime comum ou próprio pressupõe tê-lo como de dano ou espécie do crime de exercício arbitrário das próprias razões (tertium non datur).

De relevante para o tema, o acolhimento da tese de Noronha sufraga a tese de que a conduta de carimbar em cédula de dinheiro é atípica, mesmo em relação ao tipo penal constante no artigo 346 do CP.


[1] H. B. FRANCO, Gustavo. A moeda e a lei: uma história monetária brasileira: 1933 a 2013. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2016, p. 47.
[2] Cf. a notícia sobre o aproveitamento do dinheiro no Pará, com a parceria do Banco Central: <http://g1.globo.com/pa/para/e-do-para/noticia/2015/03/no-para-pesquisadores-transformam-dinheiro-velho-em-adubo-organico.html>, acesso em 11/5/2018.
[3] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol VII, arts. 155 a 196. Rio de Janeiro: Forense: 1955, p, 6-7.
[4] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Direito Penal e propriedade privada: a racionalidade do sistema penal na tutela do patrimônio. São Paulo: Atlas, 2014, p. 53.
[5] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Op. cit., p. 57.
[6] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Op. cit p. 72.
[7] Cf., por exemplo, a conversão da moeda de cruzeiro para cruzeiro-real, em que se facultou a troca, sob pena de perda do poder liberatório, conforme o artigo 10. Cf.: https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/43582/Res_2010_v2_L.pdf>, acesso em 9/5/2018.
[8] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. IX, arts. 250 a 361. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 494.
[9] HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 494.
[10] HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 494.
[11] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, 4º volume: dos crimes contra a saúde pública a disposições finais. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 403.
[12] Ibid.
[13] Ibid.
[14] Cf., por todos, PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 694.
[15] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, parte especial, vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 321.

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