Contas à Vista

O "mecanismo orçamentário" nem os caminhoneiros conseguem parar

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29 de maio de 2018, 8h10

Spacca
O país parou. Uma greve de caminhoneiros conseguiu deixar o governo e o povo de joelhos[1]. Mais um pouco e viveremos cenas dignas de The Walking Dead[2].

Mas nem tudo parou. E não foram os serviços essenciais nem a entrega de cerveja que continuaram funcionando a todo vapor. O que ninguém conseguiu nem consegue parar é o “mecanismo orçamentário”. Um mecanismo que deu origem a um dos primeiros e maiores escândalos de nossa República das últimas décadas, o já esquecido “escândalo dos anões do Orçamento”[3], no início da década de 1990. Depois veio o “mensalão”, em seguida o “petrolão”, “lava jato”, e outros devem estar a caminho. Políticos perderam seus mandatos no primeiro, outros tantos foram para a cadeia nos demais. Em todos eles, o “mecanismo orçamentário” sempre esteve presente: nada o assusta, ninguém é capaz de detê-lo.

Mas o que é e como funciona o “mecanismo orçamentário”?

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, cuja federação tem mais de 5 mil municípios, 27 estados[4] e a União, a quantidade de dinheiro administrada pelo setor público é impressionante. Só o orçamento da administração pública federal deste exercício de 2018 supera os R$ 3,5 trilhões[5]. Não é a toa que, ante a desigualdade, a pobreza e a precariedade dos serviços públicos que ainda estão fortemente presentes, esses recursos são muito cobiçados, e o ataque aos cofres públicos transformou-se em uma verdadeira guerra.

O cineasta José Padilha, ao definir “o mecanismo”, que dá o título à série que dirigiu, expõe com clareza como funciona aquele que é o sistema estruturado para se apropriar dessa “mina de ouro” que são os recursos públicos. E escancara as estratégias capazes de envergonhar os personagens de House of Cards[6], fazendo deles verdadeiros aprendizes das técnicas de como funciona a política na sua pior versão.

Segundo ele, há uma estrutura na administração pública, em todas as esferas (federal, estadual e municipal), por meio da qual empresas financiam campanhas políticas. Uma vez eleitos, os políticos se apropriam de cargos no governo e, por consequência, de “nacos” do orçamento público. Com isso, conseguem contratar as empresas que os financiaram por valores superfaturados, e os recursos adicionais obtidos voltam em forma de financiamento de campanhas para as próximas eleições, além de “encher os bolsos” dos políticos e das empresas. E o ciclo continua, ano após ano. Sem ideologia, operando nos governos de todos os matizes ideológicos[7].

A revista IstoÉ recentemente mostrou que o “mecanismo” está em pleno funcionamento. Na reportagem “O PP foi às compras”, relata que o Partido Progressista, o mais envolvido na operação "lava jato", montou uma operação para cooptar parlamentares e aumentar sua base política. Usou para isso os recursos do Fundo Nacional de Saúde e do Fundo Partidário, por meio de facilidades criadas pelo Ministro da Saúde, ligado ao partido, e do presidente da Comissão de Orçamento, também integrante do PP. Controlando a liberação de recursos de emendas parlamentares destinadas à área da saúde, conseguiam distribuir recursos orçamentários de modo a atrair para o partido os políticos de outras agremiações, segundo a reportagem[8].

Essencialmente, o “mecanismo” se operacionaliza por instrumentos orçamentários, e é no Direito Financeiro que encontramos as explicações de como funciona. É verdadeira e precisamente um “mecanismo orçamentário”. Veremos alguns desses instrumentos, que continuam operando normalmente, apesar das prisões e de todos os escândalos que se sucedem e que deixam a sociedade revoltada, capaz de parar o país por um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus, como ocorreu em 2013[9], ou por uma greve de caminhoneiros.

Primeiramente, é importante destacar que o sistema federativo brasileiro é uma modalidade de “federalismo cooperativo”, com grande interdependência entre os entes federados, de modo que a maior parte das mais importantes políticas públicas, como saúde, educação e segurança, entre outras, funciona por meio do compartilhamento de recursos e atribuições dos vários entes federados.

E há forte concentração de recursos no governo central, fazendo da União a principal responsável por estabelecer diretrizes e controlar a distribuição desse dinheiro para a execução das políticas públicas.

É por essa razão que muitos serviços e obras públicas dependem de transferências de recursos federais para que se concretizem. É o que ocorre em praticamente todas as áreas, inclusive na saúde. Em razão disso, estados e municípios ficam na dependência das chamadas “transferências voluntárias” para atender as necessidades públicas regionais e locais[10].

Os políticos precisam, portanto, conseguir esses recursos junto ao Ministério da Saúde, responsável por gerenciar as dotações orçamentárias que os contemplam. Uma tarefa que pode ficar mais simples e ter seu caminho facilitado se o ministro é do seu partido, ou se o político se dispõe a mudar de agremiação para conseguir a cobiçada verba.

Algo que se torna corriqueiro quando a administração pública está “loteada”, tendo sido os cargos, como os de ministros, distribuídos segundo interesses políticos. Uma consequência do “presidencialismo de coalizão” que vigora no Brasil, exigindo que o governo em exercício se componha com as diversas forças políticas para que possa ter governabilidade. Uma “composição” que, diversamente do que seria de se esperar, não parece ocorrer por razões ideológicas e/ou administrativas, mas, sobretudo, por motivações financeiras. Um “presidencialismo de coalizão” que precisa do “mecanismo” para que funcione. E, funcionando, extrema-se em um verdadeiro “presidencialismo de cooptação”[11].

Em geral, esses recursos são pleiteados por meio de emendas ao orçamento, em que os parlamentares, durante o período de apreciação e deliberação sobre o projeto de lei orçamentária, apresentam seus projetos para inclusão de dotações destinadas a suas bases eleitorais. Falamos sobre o assunto na coluna Emendas ao orçamento geram desequilíbrio de poderes, a primeira que publiquei nesta seção "Contas à Vista", em 3 de julho de 2012[12].

Conseguindo a inclusão na lei orçamentária, inicia-se outra “batalha” de uma “guerra” cheia de obstáculos, evidenciando que não é fácil fazer o recurso chegar aonde se deseja — seja ele o povo que vai ser beneficiado, ou os corruptos e corruptores que dele querem se apropriar. E assim o “mecanismo orçamentário” vai funcionando…

É curioso notar que esta última fase, da luta pelos recursos já contemplados na lei orçamentária, deveria ter cessado. A liberação das dotações orçamentárias fica sujeita aos “contingenciamentos”, instrumento que historicamente tem sido usado indevidamente para desviar, em vez de controlar, o fluxo de recursos durante a execução do orçamento[13]. Mas isso não poderia mais ocorrer após a aprovação da “Emenda do Orçamento Impositivo” (Emenda Constitucional 86/2015), que, além de assegurar um percentual mínimo para as emendas parlamentares individuais, tornou-as de execução orçamentária e financeira obrigatórias. Mas, pelo que se tem visto das notícias e reportagens, como a já citada, não impediu que continuassem as “barganhas” envolvendo referidos instrumentos orçamentários[14]. E assim mais um instrumento do “mecanismo orçamentário” continua operando a todo vapor…

Em alguns meses, elegeremos novos parlamentares, governadores e o presidente. Comandam a execução do orçamento público e são os maiores responsáveis por manter o “mecanismo orçamentário” em funcionamento. Ou dar um fim a ele. Já escrevi quatro anos atrás: Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre[15]. Está chegando mais uma oportunidade de tentar dar um jeito em tudo isso, e não pode ser desperdiçada.

Falta de planejamento, má gestão de recursos, desvios causados por corrupção e outros “malfeitos” tantas vezes mencionados nestas colunas fazem do orçamento público uma lei sob constante ataque, cada vez mais difícil de ser cumprida e levada a sério, e isso precisa acabar.

Enquanto isso, o povo brasileiro vive uma realidade digna de ficção. As mudanças são cada vez mais urgentes e necessárias, para que tudo acabe bem. E num futuro próximo se transforme em mais uma série de TV para nos distrair.


[1] Entenda como questões tributárias colaboraram para essa situação lendo o artigo de Andressa Torquato Fernandes publicado na ConJur neste domingo (27/5): Alta do preço dos combustíveis é uma tragédia (tributária) anunciada.
[2] Série de TV norte-americana exibida no Brasil em temporadas pelo Canal Fox.
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%B5es_do_Or%C3%A7amento.
[4] 5.561 municípios, 26 estados e o Distrito Federal (Fonte: IBGE).
[5] R$ 3.575.230.380.469 — Lei 13.587/2018.
[6] Série de TV norte-americana exibida no Brasil pelo serviço de streaming Netflix.
[7] José Padilha: o mecanismo agradece. In Folha de S.Paulo, seção Opinião – Tendências/Debates, em 1º/4/2018 (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/04/jose-padilha-o-mecanismo-agradece.shtml); Entrevista a Pedro Bial em Conversa com Bial, 9/4/2018 (https://www.youtube.com/watch?v=Atlo7AeZEL0).
[8] IstoÉ, edição 2.525, 16/5/2018, versão impressa, pp. 26-29.
[9] Escrevi sobre esse assunto na coluna No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias, publicada em 2/7/2013, e que consta do recém-lançado livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, edição Blucher-ConJur, 2018, pp. 135-138, cuja versão eletrônica gratuita pode ser baixada no site da editora Blucher. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur.
[10] Sobre o assunto, veja vide a coluna Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, publicada em 28/2/2012, e que consta do livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, pp. 17-20, mencionado na nota de rodapé 9. Nesse tema, não deixem de consultar também o livro As transferências voluntárias no modelo constitucional brasileiro, integrante da Série Direito Financeiro, cuja versão eletrônica está disponível gratuitamente no site da Editora Blucher, e a versão impressa à venda na Livraria ConJur.
[11] PESSÔA, Samuel. Presidencialismo de Coalizão ou de Cooptação? In Conjuntura Econômica, São Paulo, vol. 69, n.º 1, jan. 2015.
[12] E que consta do recém-lançado livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, edição Blucher-ConJur, 2018, pp. 189-192, mencionado na nota de rodapé 9.
[13] Sobre o assunto, veja-se a coluna Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos, publicada em 11/3/2014, que integra o já citado livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, edição Blucher-ConJur, 2018, pp. 197-200, conforme nota de rodapé 9.
[14] Vejam sobre esse assunto as colunas Orçamento impositivo é avanço para a administração, publicada em 7/5/2013, e Aprovação do orçamento impositivo é insuficiente para dar credibilidade à lei orçamentária, publicada em 10/3/2015. Ambas integram o livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, edição Blucher-ConJur, 2018, pp. 201-210, referido na nota de rodapé 9. O assunto é abordado com muita propriedade no livro A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo, integrante da Série Direito Financeiro, cuja versão eletrônica está disponível gratuitamente no site da Editora Blucher, e a versão impressa à venda na Livraria ConJur.
[15] Publicada em 26/8/2014, integra o livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, mencionado na nota de rodapé 9, às pp. 193-196. Não deixe de ler também a coluna Uso político dos instrumentos de Direito Financeiro deve ser combatido, publicada em 25/7/2017, e nas páginas 221-224 do livro citado.

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