Embargos Culturais

Cândido Neves, o caçador de escravos, e a legitimidade dos resistentes

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

27 de maio de 2018, 8h00

Spacca
O problema da escravidão é um dos mais intricados na obra de Machado de Assis, além, evidentemente, de ser o mais vergonhoso de nossa história. Pode-se atribuir à ironia machadiana uma crítica à mais sórdida fórmula de exploração que o Brasil conheceu — que muito nos envergonha e nos choca sempre — e que deixou reflexos até hoje assustadores. Condições desumanas de trabalho e exploração superlativa da força humana são desdobramentos modernizados dessa condição odiosa.

O assunto — escravidão — é um dos temas do conto "Pai contra Mãe", publicado em Relíquias da Casa Velha, já na edição de 1906. Trata-se da estória de um caçador de escravos: Cândido Neves, o Candinho da intimidade da família. Cândido Neves, ao que pode parecer, era branco-branco, no inusitado nome. Candinho era um homem andado. Passou por muitas empresas, trabalhou no comércio, aprendeu tipografia. Mas Candinho nunca se fixou em ofício nenhum. Ganhava a vida (muito mal) na malfazeja tarefa de capturar escravos foragidos. Era a ocupação que encontrou depois que quase tudo havia tentado.

Para tudo ficar mais branco ainda, Candinho casou-se com Clara, moça casadoura, mas muito operosa, e que costurava para fora. Por falta de melhor opção, Clara acabou acomodando-se com Candinho. Vida dura. Dividiam o cômodo alugado com a tia de Clara. Clara engravidou. A espera da criança coincidiu com um declínio da atividade de Cândido. As condições de vida haviam piorado. Rareavam escravos foragidos. A abolição se aproximava. Clara auxiliava o marido como podia.

A tia que vivia com o casal sugeriu que a criança que nasceria fosse levada à roda dos enjeitados, como então se chamava um triste lugar que sugere os orfanatos que surgiriam mais tarde. Cândido resistia. Os credores ameaçavam de todos os lados, e de todos os modos. O senhorio, dono do cômodo alugado, deu a Cândido um prazo fatal para pagamento do débito: cinco dias.

Cândido não se rendeu aos fatos e ainda tentava alternativas antes de deixar o filho entre crianças abandonadas. Lembrou-se de uma velha notícia de jornal relativa a escravos foragidos, que dava conta de uma mulata; oferecia-se uma quantia que resolveria os problemas de Cândido. Em vão, Cândido buscou informações.

Sem mais opções e sem recursos, desiludido e com o filho recém-nascido no colo, Cândido rumava para a roda dos enjeitados. Foi quando teve a impressão de ter visto a tal escrava foragida. Deixou o filho aos cuidados de um farmacêutico, a quem pediu que cuidasse da criança, por um instante.

Cândido alcançou a escrava — Arminda —, a quem capturou, na linguagem de Machado de Assis, após ter “tirado o pedaço de corda da algibeira”, e de quem “pegou dos braços”. E então, com a escrava capturada, enquanto o filho estaria ainda com o farmacêutico, Cândido apressou-se a ter com o dono da presa, na busca da recompensa. A cena é chocante:

“Foi arrastando a escrava pela Rua do Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor” (MACHADO DE ASSIS, Contos, Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 190).

Constatou-se que a escrava estava grávida. O realismo da narrativa impressiona, deprime. Machado de Assis descreve o aborto vivido pela pobre escrava, o que ocorria enquanto Cândido recebia a recompensa. Cândido ainda conseguiu apanhar o filho. Pagou as dívidas. Retornou a vida com alguma esperança. Alguma maldade o marcava; justificou para si o aborto, “nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”.

No contexto desta narrativa atemorizante, de quem testemunhou ou conheceu testemunhas de tal tempo (Machado de Assis nasceu em 1839 e morreu em 1908), descreve-se os horrores da escravidão. Não se sabe (nem se saberá) se Machado de Assis o fez como espectador desinteressado (do que duvido) ou como ativista sutil.

Odioso tempo. O bruxo do Cosme Velho descrevia com muita naturalidade a situação de sua época. A captura de escravos fugidos parece ter sido ofício rentável, que alimentava uma então sofisticada e autoenganadora ideia de se “pôr ordem à desordem”. A narrativa machadiana permite que se vejam peculiaridades e tristezas de uma época difícil. Instituições e rotinas que escapam à narrativa oficial são captadas, com toda a intensidade.

Hoje, os atores talvez não sejam os mesmos. Os personagens, porém, persistem, ainda que com outros figurinos. O caçador de escravos transformou-se em todo aquele que não compreende a legitimidade de qualquer movimento de luta contra situações de exploração, de humilhação e de aviltamento. A fuga do escravo era uma forma de resistência. Como são formas de resistência os vários movimentos de contestação que há, ainda que perturbem arranjos cotidianos de nossas vidinhas organizadas, centrípetas e ensimesmadas.


Referência
Machado de Assis, Joaquim Maria. Contos, São Paulo e Rio de Janeiro: Record, 2008.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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