Opinião

Os impactos da nova LINDB nas relações do poder público com o terceiro setor

Autor

  • Daniel Bulha de Carvalho

    é advogado especialista em Direito Público pela PUC Minas graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas e pós-graduando em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista.

27 de maio de 2018, 6h42

Antes mesmo de sancionada, as mudanças promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pelo Projeto de Lei 349/2015, ora Lei 13.655/2018, foram motivadoras de intensos debates acadêmicos com reações antagônicas, haja vista a inovação legislativa que promoveria nas relações privadas com o poder público e nas atividades de controle.

Em que pese algumas inovações mais polêmicas tenham sido vetadas pela Presidência da República, os dispositivos ora vigentes ainda possuem o condão de promover importante estabilidade e segurança nas relações jurídicas com o poder público. A matéria tem rendido, inclusive, excelentes artigos publicados na ConJur quanto à extensão de seus efeitos nas mais diferentes áreas do Direito. Aqui, oportunamente, trataremos dos impactos positivos nas relações do poder público com o terceiro setor.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, mais intensamente, a partir do final da última década do século passado, intensas mudanças ocorreram em nosso ordenamento jurídico com o objetivo de implantar estruturalmente no Brasil o modelo da denominada “administração gerencial” em substituição ao padrão tradicional até então estabelecido na administração pública, com vistas a primar a eficiência em detrimento da burocracia calcada na legalidade estrita.

E na esteira de tais mudanças, imprescindíveis foram as inovações normativas nas relações do Estado com o terceiro setor, que de um ambiente institucional restrito aos convênios passou a um cenário atual em que convivem nada menos do que seis modelos de ajustes de parceria, disciplinados por leis específicas.

Neste diapasão, a Lei Federal 13.019/14, denominado Marco Regulatório do Terceiro Setor, trouxe inovações importantes às parcerias com o poder público, afastando grandes lacunas jurídicas que outrora impediam a eficiência e qualidade que tais serviços concedidos deveriam promover nos moldes como foram delineados no Plano Diretor da Reforma do Estado[1].

Todavia, o que se tem observado mais recentemente, na prática, é a resistência dos órgãos internos e externos em adotar práticas de controle mais eficazes e eficientes, com foco nas metas e resultados, remanescendo ainda o controle tradicional de primazia ao rigor formal e mais burocrático, com atuação ostensiva nas caraterísticas das despesas e contratações das atividades-meio das entidades, ao nosso ver, prejudicando as finalidades precípuas desse tipo de ajuste.

Tal intervenção tem se mostrado prejudicial, principalmente na maciça exigência de obrigações acessórias no decorrer da execução contratual, voltadas exclusivamente ao controle pari passu dos custos e despesas promovidas pelas entidades, e, paradoxalmente, a menor ênfase de exigências e rigor no controle a posteriori das metas e resultados, como dito, finalidade basilar da parceria.

Outro aspecto que tem contribuído para os problemas decorrentes dos contratos com o terceiro setor diz respeito à insegurança jurídica das avenças em razão das constantes mudanças de entendimentos prolatadas pelos entes contratantes e pelos órgãos de controle externo em matérias de conteúdo ainda não positivado pela legislação ou baseadas em valores jurídicos abstratos.

Deveras importante o controle estatal permanente na utilização e aplicação de seus recursos, igualmente importante é a concretização da finalidade proposta aos serviços, a estabilidade e o equilíbrio na relação das parcerias público-privadas, especialmente com o terceiro setor, cujas entidades são parceiras do Estado na execução dos serviços essenciais de saúde e educação, principalmente.

Desse modo, as mudanças recentes promovidas na LINDB finalmente ampliam as possibilidades de uma maior equidade e segurança nessas relações, das quais destacamos os seguintes regramentos: novas diretrizes para decisões administrativas (artigo 20); o direito à transição adequada quando da criação de novas situações jurídicas passivas para os particulares (artigo 23); um regime jurídico geral para negociação entre autoridades públicas e particulares (artigo 26); a proibição de invalidação de atos por mudança de orientação (artigo 24); e a compensação, dentro dos processos, de benefícios ou prejuízos injustos gerados para os envolvidos (artigo 27).

Para exemplificar, matéria de inconstante interpretação entre os órgãos contratantes e cortes de contas tem sido o custeio das despesas indiretas inerentes aos contratos de gestão, que, em razão do silêncio da lei regente — Lei 9.637/98 — e a permissividade constante no artigo 46, III, da Lei 13.019/14, tem causado divergências quanto à legalidade de tais despesas no decorrer da execução contratual, ocasionando retenções financeiras, o que compromete todo o modelo gerencial proposto para execução daquelas atividades contratadas.

É comum que a interpretação sobre normas administrativas mude com o tempo ou que haja divergência entre órgãos. Porém, a entidade parceira não pode ficar refém dessas divergências. Assim, obtempera o novel artigo 23 da LINDB que — tal qual ocorre nas decisões do Supremo Tribunal Federal na declaração de inconstitucionalidade de uma norma —, na ocorrência de mudança na interpretação ou orientação de norma de conteúdo indeterminado, o órgão deverá prever um regime de transição proporcional, equânime e eficiente.

Ou seja, sem adentrar aqui a legalidade ou não do devido custeio de tais despesas indiretas nos contratos de gestão, matéria a ser tratada em outra oportunidade, fato é que, na ocorrência de nova interpretação sobre a matéria, com repercussões e impactos diretos na execução contratual, deverá o órgão contratante (poder-dever), necessariamente, propor um regime de transição para seu cumprimento, sob pena de infração ao dispositivo supramencionado.

De igual sorte, outros dispositivos já vigentes e aqui destacados afetam diretamente a execução dos atuais ajustes firmados com entidades do terceiro setor, como, por exemplo, a obrigatoriedade das decisões proferidas pelos tribunais de contas de indicarem de modo expresso as respectivas consequências administrativas de sua decisão e as formas de sua regularização, sem que os ônus e perdas sejam anormais ou excessivos (artigo 21), assim como a nova postura do julgador ao interpretar as normas relativas à gestão pública, devendo ser obrigatoriamente consideradas as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo (artigo 22).

Veja que, apesar das críticas promovidas durante a tramitação e agora com a vigência das mudanças na LINDB, que veem nessas medidas uma forma de dificultar o controle estatal, ao nosso entendimento elas permitirão uma maior segurança jurídicas nas relações jurídicas de direito público e propiciarão ao gestor público a segurança necessária para a tomada de decisões, por vezes procrastinadas ou relegadas ao ostracismo pelo receio de que ao futuro se mostrassem inadequadas, sob o ponto de vista dos órgãos de controle ou do Poder Judiciário, ainda passíveis de sanções.

Em suma, parece-nos claro que os artigos ora incluídos na Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro permitirão, ao mesmo passo, a necessária positivação das melhores práticas do Direito Público contemporâneo e um poderoso instrumento de sedimentação da segurança e certeza jurídicas, especialmente nas relações do terceiro setor com o poder público, cuja finalidade precípua está amparada na eficiência e qualidade da prestação dos serviços essenciais à população.

Finalizamos com a oportuna citação ilustrativa dos professores Floriano Azevedo Marques Neto e Egon Bockmann Moreira, que, no artigo intitulado “Uma Lei para o Estado de Direito Contemporâneo[2]”, tratou o projeto de lei que precedeu as aludidas modificações na LINDB como “um passaporte para o Estado de Direito”.


[1] Estudo elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado e aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em setembro de 1995, aprovado pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
[2] In “Segurança Jurídica e Qualidade das decisões públicas: desafios de uma sociedade democrática, Senado Federal, Brasília, 2015, p. 12.


Referências bibliográficas
BRASIL, Segurança Jurídica e Qualidade das Decisões Públicas: Desafios de uma Sociedade Democrática. Brasília: Senado Federal, 2015.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública, 8ª ed, São Paulo: Atlas, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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    é advogado, especialista em Direito Público pela PUC Minas, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas e pós-graduando em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista.

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