Opinião

O papel da Corte Permanente de Arbitragem da Haia na resolução de controvérsias

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26 de maio de 2018, 7h07

Devido ao fluxo de investimentos diretos feitos no Brasil, o governo brasileiro inovou e elaborou um novo instrumento denominado de Acordo de Cooperação de Facilitação de Investimento (ACFI), com a finalidade de criar seu sistema próprio para gerir o fluxo de capital estrangeiro.

Os primeiros acordos foram assinados há pouco mais de três anos, e seus desdobramentos e efeitos ainda são alvo de comentários devido à importância desses investimentos, não apenas para a economia nacional, mas também para a internacional. Os primogênitos foram os ACFIs assinados pelo Brasil com Moçambique[1] e Angola[2], que trazem as seguintes peculiaridades, em comparação aos conhecidos Acordos Bilaterais de Investimentos (BITs).

A primeira diz respeito à presença de dispositivos similares àqueles tradicionalmente existentes nos BITs, tais como a cláusula da nação mais favorecida, o tratamento nacional e as regras sobre expropriação e indenização devida. A segunda foi a inserção de previsões novas, não encontradas nos BITs, como a previsão de um Comitê Conjunto e de Pontos Focais, como os mecanismos existentes para a solução de conflitos no âmbito da constituição da União Europeia. A terceira diferença é atinente à omissão de algumas regras geralmente encontradas nos BITs, como o tratamento justo e equitativo e a solução de controvérsias investidor-Estado[3].

A previsão expressa da cláusula da nação mais favorecida implica a proibição de que o Estado receptor de investimentos ofereça ao investidor estrangeiro um tratamento menos benéfico do que aquele proporcionado aos seus investidores nacionais.

Essa cláusula é amplamente conhecida por aqueles que atuam na esfera dos acordos de investimentos internacionais, pois é decorrente do princípio da não discriminação entre nações. Essa garantia visa o compromisso do Estado em não tratar o investidor estrangeiro de modo discriminatório, seja com relação aos investidores nacionais do Estado que está recebendo os investimentos, seja com relação a investidores estrangeiros provenientes de um terceiro Estado.

Ademais, os modelos de ACFIs contam com outro mecanismo de proteção, a saber, um Comitê Conjunto incumbido de monitorar as disposições dos acordos, o compromisso de não tratar os investidores estrangeiros de modo discriminatório, e uma adequada indenização em caso de expropriação direta. Destarte, verifica-se que existe um corpo controlador que visa assegurar que as garantias previstas por esse novo modelo de acordo de investimento sejam eficazes.

Por exemplo, o ACFI firmado entre o Brasil e z República de Maláui[4], assinado em 13 de setembro de 2016, em seu artigo 8°, inciso 2, alínea “c”, o qual versa acerca da mitigação de riscos e prevenção de controvérsias, prevê que “nenhuma Parte, em conformidade com seu ordenamento jurídico, expropriará ou nacionalizará diretamente um investimento coberto por este acordo, salvo que seja mediante pagamento de efetiva indenização, de acordo com os parágrafos 4 a 6”.

Além da previsão quanto ao pagamento de indenização, o acordo em comento ainda prevê que, “se o valor justo de mercado for definido em uma moeda que não é internacionalmente conversível, a compensação a ser paga não deve ser inferior ao valor de mercado na data da expropriação, acrescido de juros e, se aplicável, correção monetária, acumulada desde a data da expropriação até a data do pagamento, de acordo com a legislação da parte anfitriã”. Desse modo, verifica-se a tentativa de blindar os investidores estrangeiros, das mais abrangentes formas possíveis, para a efetividade da consecução do objeto dos ACFIs.

Contudo, os modelos de ACFIs não fazem menção ao princípio do tratamento justo e equitativo nem a uma adequada indenização em caso de expropriação indireta. No que tange o referido princípio, os ACFIs são omissos à sua aplicabilidade, o que pode ter consequências negativas, sobretudo se considerarmos que não há unanimidade no sentido de que o tratamento justo e equitativo seja uma regra de direito costumeiro internacional. Assim, para ter aplicação, a cláusula deve constar expressamente no acordo. A importância dessa previsão no texto dos ACFIs decorre principalmente de sua capacidade de balancear os distintos interesses envolvidos, sejam dos investidores estrangeiros ou dos Estados receptores de investimento[5].

Ademais, cumpre informar que a inovação presente nos modelos de ACFI é nítida, tendo esse modelo influenciado, inclusive, na elaboração do Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos (PCFI) entre os países do Mercosul[6]. Um documento inédito, que foi assinado em 7 de abril de 2017, com o intuito de oxigenar o bloco sul-americano depois de anos de marasmo[7].

No que se refere à resolução de controvérsias, antes de levar eventual litígio à arbitragem, é necessário exaurir todas as medidas disponíveis de prevenção de disputas. Em caso de insucesso, as partes devem proferir declaração conjunta escolhendo o procedimento arbitral. Assim, respeita-se o texto constitucional, o que corrobora a autonomia legislativa e a política nacional prestigiadas nos prefácios dos ACFIs.

Nesta toada, analisando os preâmbulos dos acordos firmados com Chile e com Moçambique, verifica-se a preocupação do Brasil com a política nacional de resolução de conflitos. Nota-se:

“O ACFI com o Chile visa a facilitar e promover o investimento mútuo, mediante o estabelecimento de um marco de tratamento para os investidores e seus investimentos, e de governança institucional para a cooperação, assim como de mecanismos de prevenção e solução de controvérsias”.

“O ACFI assinado com Moçambique representa um novo modelo de acordo, que busca incentivar o investimento recíproco através de mecanismo de diálogo intergovernamental, apoiando empresas em processo de internacionalização. Por meio do ACFI, haverá maior divulgação de oportunidades de negócios, intercâmbio de informações sobre marcos regulatórios e mecanismo adequado de prevenção e, eventualmente, solução de controvérsias. O novo modelo propicia um quadro sólido para os investimentos de parte a parte”.

Portanto, é possível extrair desses prefácios um equilíbrio vital entre os direitos dos investidores estrangeiros e os interesses dos países receptores, passando a efetivamente considerar o verdadeiro objetivo dos países quando ingressam nesse tipo de relação, isto é, o desenvolvimento econômico.

A atuação dos Comitês Conjuntos e Pontos Focais incita a parceria estratégica entre as partes e cria estruturas de diálogo técnico e iniciativas governamentais, também expressos no preâmbulo dos ACFIs. O mecanismo de solução de disputas adotado por esses acordos se adéqua aos objetivos buscados, expressos em seus preâmbulos. Assim, o método de resolução de disputas dos acordos corrobora com o objetivo de cooperação e facilitação de investimentos.

No que se refere à arbitragem, especificamente, em uma minuciosa análise aos ACFIs firmados pelo Brasil, a redação deixa muito a desejar. As cláusulas são muito simples do ponto de vista técnico, e algumas nem sequer mencionam a possibilidade de os Estados submeterem o litígio a um tribunal arbitral.

Contudo, caso não se alcance nenhum resultado favorável para as partes do ACFI, há alusão à arbitragem apenas entre os Estados, como uma alternativa para a resolução de conflitos. Porém, o acesso à arbitragem só pode ser pleiteado depois que um procedimento de consulta e negociação pelo Comitê Conjunto reste frustrado.

Tão somente depois de findo o procedimento iniciado frente ao Comitê Conjunto é que as partes gozam de autonomia para ingressar em um procedimento arbitral entre Estados. No entanto, segundo os ACFIs assinados com Angola, Maláui e Moçambique, tal mecanismo deve ser desenvolvido pelo Comitê Conjunto, não fazendo nenhum tipo de alusão à arbitragem. De forma distinta, os ACFIs assinados com Chile, Colômbia e México[8] contêm um mecanismo básico de arbitragem, que inclui regras para a nomeação do tribunal arbitral.

As cláusulas dos ACFIs que permitem a instauração de procedimentos arbitrais são muito simples e genéricas, e não nomeiam nenhuma instituição arbitral, com a finalidade de administrar os procedimentos. Isso não é recorrente apenas nos ACFIs, mas também em outros acordos firmados com o governo brasileiro, dos mais diversos tipos, como o Acordo de Sede firmando com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha[9], o Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica firmado com o México[10], o Acordo de Sede firmado com o Tribunal Penal Internacional[11] e o Acordo de Sede firmado com a Organização dos Estados Americanos[12], entre outros.

Em momento oportuno, os Estados irão se deparar com problemáticas para solucionar quais serão as regras adequadas para a condução do procedimento arbitral, uma vez que não há previsão nesse sentido nas cláusulas de resolução de disputas inseridas nos ACFIs em comento.

Nesse sentido, vale a pena trazer à tona o Acordo de Sede firmado entre o governo brasileiro e a Corte Permanente de Arbitragem da Haia (CPA), assinado em agosto de 2017, como meio de preencher algumas lacunas existentes em ditas cláusulas. O Acordo de Sede tem como objetivo tornar os serviços da CPA mais acessíveis pelo mundo, não se limitando à sua sede no Palácio da Paz, na Haia.

Por meio do Acordo de Sede, o país de sede e a CPA estabelecem um quadro jurídico através do qual os procedimentos da CPA (incluindo arbitragem, conciliação, mediação e comissões de inquérito) podem ser conduzidos no território do país de sede em uma base ad hoc, usufruindo de condições parecidas àquelas garantidas pelo Acordo de Sede assinado entre a CPA e os Países Baixos[13].

Nesta senda, frisa-se o papel fundamental que a CPA tem desempenhado na resolução de disputas internacionais há mais de cem anos, sendo a sua principal atividade a administração de arbitragens decorrentes de acordos bilaterais e multilaterais de investimentos.

A expertise dessa instituição é notória mundialmente, uma vez que já administrou casos de extrema relevância dessa matéria, como Philip Morris v. Austrália[14], decorrente do BIT firmando entre Hong King e Austrália, Railway Land Arbitration[15], entre a Malásia e Singapura, e outros que podem ser consultados em sua base de dados[16].

Nesses meandros, em 1992, a CPA redigiu o corpo de Regras Opcionais para Arbitragem, envolvendo especificamente dois Estados. Tais regras foram elaboradas para uso na arbitragem de disputas decorrentes de tratados ou outros acordos entre dois ou mais Estados. Um aspecto muito interessante é que os Estados possuem total autonomia para delinear as previsões de referidas regras a seu gozo, para uso em conexão com tratados bilaterais e multilaterais de investimento.

As regras se baseiam nas Regras de Arbitragem da Uncitral, propiciando a condução de procedimentos arbitrais justos e efetivos para solução pacífica de disputas entre Estados atinentes à interpretação, aplicação e execução de tratados e outros acordos[17]. Um dos motivos que levou a CPA a redigir as Regras Opcionais foi o desígnio de fornecer procedimentos justos e eficazes para a resolução pacífica de litígios entre Estados, embora tenham sido originalmente concebidas para arbitragem comercial[18].

É certamente uma qualidade que chama atenção a possibilidade de as partes adequarem as regras conforme a necessidade verificada no caso concreto, tendo como base uma instituição especializada em administrar conflitos semelhantes aos que possivelmente se desentranharão dos referidos acordos em análise.

Após as breves considerações feitas pelo presente artigo, é compreensível afirmar que a tendência de resistência à adjudicação dos litígios por parte do Estado será menor, em comparação aos litígios oriundos dos BITs, especificamente relembrando a década de 1990[19].

Assim sendo, espera-se que eventuais controvérsias não sejam convertidas em um contencioso entre Estados, visando evitar que a parte privada investidora fique à mercê dos interesses e aos tempos diferenciados dos Estados.

Além disso, o fato de existir um Acordo de Sede firmado entre o Brasil e a CPA é um indicativo de que a arbitragem decorrente de investimentos estrangeiros encontra amparo em uma instituição com expertise internacional, que poderá contribuir para a resolução de controvérsias dentro do território brasileiro, através de seus serviços, inclusive possibilitando a adequação das regras conforme demanda e interesse das partes.

Desse modo, diante do exposto, pode-se concluir que o Brasil definitivamente deu um passo a frente no que tange a regulamentação dos investimentos estrangeiros, e se espera que esse novo modelo desenvolvido nacionalmente tenha grande eficácia, não apenas no que tange à resolução de conflitos, mas também na consecução das políticas nacionais de desenvolvimento.


[1] Assinado em 30/3/2015. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/8511-acordo-brasil-mocambique-de-cooperacao-e-facilitacao-de-investimentos-acfi-maputo-30-de-marco-de-2015.
[2] Assinado em 1/4/2015. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/8520-acordo-brasil-angola-de-cooperacao-e-facilitacao-de-investimentos-acfi-luanda-1-de-abril-de-2015#acord-invest.
[3] FERNANDES, Érika Capella, FIORATI, Jete Jane. Os ACFIs e os BITs assinados pelo Brasil – Uma análise comparada. RIL Brasília, a 52, n° 208, out/dez 2015. p. 247-276.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/517706/001055994.pdf?sequence=1. Acesso em 24/4/2017.
[4] Assinado em 13/9/2019. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F2EF620954A0864C6D1BFEA18C8EDE6C.proposicoesWebExterno1?codteor=1503541&filename=Avulso+-PDC+438/2016.
[5] VASCIANNIE, Stephen. The fair and equitable treatment standard in investment law and practice. British Yearbook of International Law, v. 70, n. 1, 2000. p. 99-164.
[6] Os países integrantes do bloco econômico são: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela.
[7] https://www.comexdobrasil.com/mercosul-assina-em-buenos-aires-protocolo-de-cooperacao-e-facilitacao-de-investimentos/.
[8] Os ACFIs Brasil-Chile (artigo 25), Brasil-Colômbia (artigo 23.1) e Brasil-México (artigo 19.1) estabelecem que “qualquer das Partes” pode submeter à arbitragem internacional um conflito que não tenha sido resolvido pelo Comitê Conjunto.
[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and360-91.pdf.
[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5953.htm.
[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8604.htm.
[12] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1111.htm.
[13] https://pca-cpa.org/wp-content/uploads/sites/175/2017/08/Comunicado-de-imprensa-de-30-de-agosto-de-2017.pdf.
[14] https://www.pcacases.com/web/view/5.
[15] https://www.pcacases.com/web/view/56.
[16] https://www.pcacases.com/web/allcases/.
[17] https://pca-cpa.org/wp-content/uploads/sites/175/2016/01/Optional-Rules-for-Arbitrating-Disputes-between-Two-Parties-of-Which-Only-One-is-a-State-1993.pdf.
[18] http://unctad.org/en/docs/edmmisc232add26_en.pdf.
[19] Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ao longo da década de 1990, houve uma proliferação do número de BITs firmados mundialmente, que somam hoje mais de 2.500. Segundo informações do Itamaraty, o aumento de acordos verificados nesse período estimulou diversas análises críticas sobre as limitações dos BITs, incluindo: restrições à liberdade regulatória e à capacidade dos Estados de adotarem políticas públicas voltadas para o desenvolvimento e infraestrutura, bem como solução de controvérsias; tratamento mais favorável do investidor estrangeiro em relação ao investidor nacional; elevado custo econômico e político dos procedimentos arbitrais; imposição aos Estados de onerosas indenizações; e falta de transparência das decisões arbitrais.

Autores

  • Brave

    é advogada, ex-assistant legal counsel da PCA (Permanent Court of Arbitration) em Haia (Holanda) e associada do departamento de Arbitragem e Mediação da Braz Gama Monteiro.

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