Interesse Público

O avanço do diálogo competitivo no substitutivo apresentado ao PL 6.814/17

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

24 de maio de 2018, 8h05

Entre as críticas mais comuns dirigidas à Lei 8.666/93, o apego ao rito e a incapacidade de propiciar contratos que correspondam às demandas públicas assumem importante destaque.

De fato, a Lei 8.666/93 revela o entendimento segundo o qual a concretização do interesse público resultaria da observância litúrgica do procedimento. Gestada em ambiente de desconfiança, a lei visa à salvaguarda do interesse público, cercando-se de cuidados entre os quais se destacam a pluralidade de membros das comissões de licitação, a minimizar o risco de captura pelo privado, a eleição do menor preço como tipo diretriz dos certames, e a coibição de posturas dos agentes públicos que pudessem sinalizar qualquer sorte de favorecimento de licitante. A norma contida no artigo 43, parágrafo 3º[1], a título de exemplo, foi lida durante anos de forma menos permissiva. Apenas mais recentemente, em especial diante de uma série de inovações legais marcadas pelo espírito gerencial, como as leis 10.520/02, 11.079/04 e 9.784/99, esta última a enaltecer o formalismo moderado, passou-se a adotar leitura entusiasta em prol do alargamento do saneamento de falhas.

A desconfiança não se restringia, claro, ao comportamento dos agentes públicos. Partindo da premissa de que o interesse privado rivaliza com o interesse público, o legislador ocupou-se de acautelar este último (ou ao menos imaginou que estivesse a fazê-lo). As manifestações nesse sentido são as mais variadas, mas destaco a premissa segundo a qual a definição da demanda a ser alcançada, via contratação pública, com toda a sorte de informações a cercá-la, deveria partir da administração pública. Ao licitante cumpriria observar as exigências editalícias quanto aos documentos e à proposta a ser ofertada.

Em verdade, além de objetivar a preservação do interesse público, a “construção” do ato convocatório na intimidade da administração pública, imune a interferências privadas, também se afinava com o perfil unilateral de ação administrativa.

Os tempos são outros. A mudança não decorre do aumento da confiança na retidão dos ambientes licitatórios. Os jornais não nos permitem ignorar as irregularidades praticadas por agentes públicos e privados.

Mas se reconhece que a Lei 8.666/93 não coibiu, como se poderia almejar, os desvios comportamentais. Lado outro, procedimentos disciplinados em leis apartadas como o pregão, ainda que colorido pela maior proatividade do pregoeiro, agente que encarna sozinho considerável poder, mostraram-se mais consentâneos com o interesse público, ainda que não totalmente infensos a irregularidades.

O avançar do tempo e a consolidação do viés democrático impuseram a maior permeabilidade da administração pública. O cenário das contratações públicas naturalmente seria afetado. Maior nivelamento entre contratante e contratado se manifestaria, por exemplo, com o advento de parcerias público privadas, de que cuida a Lei 11.079/04.

Mas é o procedimento de manifestação de interesse (PMI) o ápice da aproximação. O PMI, ainda que a Lei 8.987/95 não use a expressão, foi previsto em seu artigo 21, quando estabeleceu a possibilidade de estudos e projetos para uma eventual futura licitação serem desenvolvidos por terceiros, que seriam remunerados caso o certame vingasse e houvesse de fato a celebração de um contrato. De lá para cá outras leis a ele fizeram referência, com destaque para a Lei 11.079/04 (PPPs)[2].

O PMI, disciplinado atualmente na esfera federal pelo Decreto Federal 8.428/2015, trouxe para o bojo das concessões ou permissões de serviços públicos, das parcerias público-privada, dos arrendamentos de bens públicos ou das concessões de direito real de uso a possibilidade de a administração pública, reconhecendo sua limitação em dar o adequado contorno à contratação pretendida, realizar chamamento público para o desenvolvimento de projetos, levantamentos, investigações ou estudos, por pessoa física ou jurídica de direito privado, com a finalidade de subsidiar a estruturação desses empreendimentos. Configura-se procedimento anterior à abertura do procedimento licitatório para contratação do objeto final, o qual poderá concretizar a solução apresentada por parceiro privado.

Sabe-se que nova lei de licitação deverá emergir das discussões em pauta no Congresso Nacional. O PL 6.814/17, cujo relatório acaba de ser apresentado pelo deputado João Arruda, enquanto estas linhas são escritas, encarna as perspectivas de uma nova lei, com a apresentação de substitutivo à redação original.

E, como é de se esperar, a “nova” lei avançaria na ideia de diálogo, participação e consensualidade.

De fato, ainda que a proposta preserve uma série de prerrogativas da administração pública, aqui e acolá infere-se a pretensão de aproximação. O exemplo mais emblemático talvez seja o diálogo competitivo.

A redação original do PL 6.814/17 o incluiu como modalidade licitatória, nos termos de seu artigo 25, VI. Cumpria ao artigo 29 a disciplina da nova modelagem de licitação.

No substitutivo recém-apresentado, o diálogo competitivo passa a ser abordado no artigo 31. Importantes modificações foram implementadas no substitutivo, como se verá.

Antes de abordá-las, interessa relembrar que a inspiração para a nova modalidade é estrangeira. Costuma-se recordar a Diretiva 2014/24/EU, de 26 de fevereiro de 2014[3], que veio a substituir a Diretiva 2004/18/CE, de 31 de março de 2004[4], ambas da União Europeia[5]. Mas os Estados Unidos também utilizam procedimentos em que a negociação é a força motriz. O Federal Acquisition Regulations (FAR) condecora a negociação como fonte de seleção de propostas, através da qual as agências norte-americanas buscarão o best value continuum[6]. O caráter dialógico, nesta experiência, integra o cotidiano administrativo. Em ambos os casos, o menor preço não é o alvo, mas, sim, a proposta de melhor valor, o que ultrapassa a mera questão numérica[7].

Da experiência europeia à pretensão do PL acerca do diálogo competitivo, o elemento comum é a consciência de que a entidade pública nem sempre está apta a conduzir o licitante e futuro contratado, dado que lhe escapa, no momento da exposição da demanda, a capacidade de dizer como satisfazer o interesse perseguido.

De fato, nem sempre é possível para a entidade da administração pública identificar de antemão a melhor alternativa, a melhor solução. Em certa medida, o PMI, conforme introduzido, aproxima-se do diálogo competitivo. Em ambos os casos, reconhecem-se a insuficiência estatal e a maior expertise privada.

No diálogo competitivo, a aposta é a busca da melhor solução como resultado de discussões ao longo do procedimento licitatório, em especial para fins de definição das estruturas técnicas, financeiras e/ou jurídicas que ampararão o atendimento à demanda pública.

Assim, em um espaço que deve prezar pela confidencialidade das informações e pela colaboração público-privada em busca dos contornos adequados para a contratação pretendida, os participantes e a administração pública dialogarão.

Sob essas premissas, o inicial obscurantismo da administração acerca das bases sobre as quais será executado o objeto contratual findar-se-á, conferindo maior efetividade à contratação e consequente atendimento ao interesse público.

Deve se ter em mente que o diálogo competitivo, como pensando na Europa, não se presta a qualquer sorte de situação. Seu endereço são contratos complexos[8], casos em que a administração não reúne de antemão elementos para bem definir a solução.

Por isso, e também porque a discricionariedade se amplia, bem como os riscos de favorecimento, o diálogo competitivo não é remédio para qualquer doença.

O PL 6.814/2017 indicava o cabimento do diálogo competitivo, o que é crucial considerando as sensibilidades da modalidade. Mas a redação do artigo 29 deixava margem para o uso impróprio da modalidade.

O bom senso não recomenda a utilização de modalidade em que o risco de corrupção é mais alto quando outra pode ser empregada, inclusive porque a administração não está submersa em dúvidas de caráter técnico ou financeiro. O diálogo competitivo volta-se para situações especiais. Na Europa, como dito, alia-se o diálogo concorrencial à ideia de contratos complexos. De mais a mais, aspectos culturais não podem ser ignorados. Sem nenhum tipo de complexo de vira-lata, fato é que nosso histórico no mínimo exige cautela diante de procedimentos em que a discricionariedade se amplia.

As hipóteses de utilização do diálogo, de que cuida o artigo 31 do substitutivo, em alguma medida estão mais bem delineadas, quando comparadas ao artigo 29 do PL. Mas a redação está longe de satisfatória.

Na nova redação, poderá a administração utilizar-se do diálogo competitivo quando o objeto envolver, com base no inciso I: inovação tecnológica ou técnica (alínea “a”); necessidade da administração não possa ser satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado (alínea “b”) ou as especificações técnicas não possam ser definidas com precisão suficiente pela administração (alínea “c”). O substitutivo, neste caso, alterou as alíneas “b” e “c” da redação original, que previam, respectivamente, a utilização do diálogo quando o objeto permitisse a possibilidade de execução com diferentes metodologias ou a possibilidade de execução com tecnologias de domínio restrito no mercado.

A inexatidão de expressões trazidas pela redação original, como “diferentes metodologias”, causava preocupação pela amplidão interpretativa, apta, em tese, a abarcar inclusive serviços para manutenção predial.

Arriscava-se, assim, sem a redação substitutiva, que o diálogo competitivo fosse utilizado em situações triviais, nas quais outras modalidades, como o pregão, seriam recomendáveis. A atual proposta soa melhor, ainda que não elimine totalmente a possibilidade de risco indevido.

O ente licitante ainda poderá decidir pelo seu uso, com base na “necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam vir a satisfazer suas necessidades” (inciso II), balizando sua decisão pela primordialidade de contar com os proponentes para definição da solução técnica mais adequada (alínea “a”), dos requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida (alínea “b”) ou da estrutura jurídica ou financeira dos contratos (alínea “c”).

Por fim, o inciso III traz a possibilidade de utilização quando “os modos de disputa aberto e fechado não permitem apreciação adequada das variações entre propostas”.

Interessante observar a inclusão do inciso IV no artigo 31 do substitutivo, prevendo a utilização do diálogo para contratações em que a administração tenha estimado valor superior a R$ 100 milhões. Mas, pelo que se depreende, não se trata de condição cumulativa. Trata-se de um inciso que, assim como seus antecedentes, sinaliza o cabimento da modalidade.

Se assim for, há o risco de a modalidade ser usada, ausente a necessidade da construção dialógica da solução, mas apenas considerando o valor estimado da contratação, o que não parece fazer sentido. Objetos comuns podem levar, a depender sobretudo do quantitativo, a contratos vultosos. E sem qualquer razão para a utilização do diálogo competitivo. Evidentemente que uma interpretação sistemática poderia evitar a distorção, mas é curioso notar que o inciso IV surge sem nenhum adereço explicativo.

O parágrafo 1º do artigo 31 do substitutivo (artigo 29 do PL original) explicita como se dará o procedimento formal do diálogo competitivo, como os termos do edital, o regulamento de informações disponibilizadas para os proponentes e para a administração, a duração do diálogo, os termos da apresentação de propostas pelos licitantes e, por fim, as previsões para condução e fiscalização do procedimento.

Dúvidas que atormentaram os estudiosos na Europa não estão solucionadas pelo PL 6.814/2017, nem em sua redação original nem em sua redação substituta. Excede os objetivos deste artigo tratar dessas controvérsias, mas, se a lei brasileira deixar tais lacunas, os editais terão que tratá-las. Destaco a possibilidade ou não de cherry picking, assim chamada a possibilidade de sintetizar as propostas oferecidas, misturando-as, e cogência ou não do afastamento de candidato, cuja solução foi rejeitada na fase de diálogo.

Enfim, a discussão prosseguirá. Há como melhorar a redação e evitar surpresas desagradáveis. Que o tiro não saia pela culatra.

*Este artigo foi escrito com a colaboração do advogado Gabriel Fajardo


[1] Nos termos do artigo 43, parágrafo 3º: “É facultada à Comissão ou autoridade superior, em qualquer fase da licitação, a promoção de diligência destinada a esclarecer ou a complementar a instrução do processo, vedada a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originariamente da proposta”.
[2] SILVA, Cristiana Maria Fortini Pinto e BUENO, Mariana. De adversários a parceiros: o Procedimento de Manifestação de Interesse como instrumento de cooperação no tradicionalmente inóspito cenário das licitações públicas. 1ed.BH: conpedi, 2015, v. 1, p. 145-175.
[3] Parlamento Europeu e Conselho. Diretiva 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:32004L0018>.
[4] Parlamento Europeu e Conselho. Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014. Disponível em: <http://eurlex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=PT>.
[5] Nos termos do item 11, “c” da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32004L0018&from=PT>.
[6] O FAR define as fontes e técnicas de solução processual no item 15.1 do regulamento. O best vallue continuum é buscado pelas agências, de forma a se alcançar a maior vantajosidade para a administração, a partir de uma base dialógica e negocial a envolver os agentes privados.
[7] No caso europeu, o que se busca é a chamada most economically advantageous tender, nos termos do item 89 da diretiva de 2014.
[8] Mesmo na Europa, o conceito de contratos complexos gerou discussões. Nesse sentido, Pedro Teles afirma que a diretiva europeia não trouxe o conceito de contratos complexos. O autor sugere que a compreensão do termo só pode ser realizada com a leitura conjunta dos artigos I/II (c) e considerando o artigo 31 da diretiva de 2004. Assim, um contrato seria considerado complexo quando as autoridades adjudicantes não conseguem objetivamente definir as especificações técnicas capazes de satisfazer suas necessidades ou objetivos ou quando incapaz de especificar objetivamente a constituição legal ou financeira de um projeto. In: TELES, Pedro. Competitive Dialogue in Portugal and Spain. Tese de Doutorado em Filosofia pela Universidade de Nottingham. 2010.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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