Opinião

10 anos depois, Lei Seca tem papel essencial na redução de mortes no trânsito

Autor

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

23 de maio de 2018, 15h15

Segundo o Relatório Global de Segurança Viária da Organização Mundial da Saúde (2015), o qual avaliou a legislação da segurança do trânsito de aproximadamente 180 países, o Brasil ocupa o 5º lugar entre os recordistas em mortes no trânsito — 23,4 mortes por 100 mil habitantes —, depois da Índia, China, Estados Unidos e Rússia.

Dados oficiais da Polícia Rodoviária Federal de 2016 revelam as principais causas dos acidentes com morte ocorridos exclusivamente nas rodovias federais: falta de atenção do condutor (30,8%), velocidade acima do permitido (21,9%), bebida e volante (15,6%), desobediência à sinalização (10%), ultrapassagens forçadas (9,3%) e sono (6,7%).

Já no balanço de 2017, a PRF aponta ter feito 2.182.842 testes de alcoolemia, e o número de motoristas flagrados dirigindo sob a influência de álcool chegou a 19.085 — um aumento de 6,9% em relação a 2016 —; 5.994 motoristas foram presos, uma vez que apresentaram índice de álcool no sangue além do permitido, restando configurado o crime de trânsito. Os destaques negativos no número de indivíduos autuados foram os estados do Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e Bahia (www.prf.gov.br).

Estatísticas assim tornaram urgente a adoção do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), nos termos da recente Lei Federal 13.614/18, cujo objetivo geral será, no final de dez anos, reduzir, no mínimo, à metade o índice nacional de mortos por grupo de veículos e o índice nacional de mortos por grupo de habitantes, relativamente aos índices apurados no ano de entrada em vigor dessa lei.

É este cenário periclitante que nos impõe analisar a eficácia e a efetividade da Lei Federal 11.705/08 — a denominada Lei Seca — no ano em que completa dez anos. Será que a lei “pegou”?

Entendo que o balanço é bastante positivo, com espaços para aprimoramentos no enforcement da lei, em um momento no qual se passa a integrar o enfrentamento das mortes no trânsito e suas causas — e por extensão a própria Lei Seca —, no contexto maior do Pnatrans, a partir (i) da visão transversal da Lei Federal 13.614/18, envolvendo as áreas da saúde, trânsito, transporte e Justiça, e (ii) da sinergia público-privada, com maior participação da sociedade civil em geral, na consecução das metas estabelecidas no plano. Ou seja, embora considerada severa na caracterização das infrações e no elenco das sanções, a Lei Seca passa a ter diretrizes renovadas para sua interpretação, em um contexto jurídico-normativo mais sistemático, programático, preventivo e consequencialista. A lei não somente “pegou”, como veio para ficar.

No cenário internacional, a legislação brasileira foi destaque especial no Relatório de 2015 da OMS, pois dos 180 países avaliados somente 34 têm lei semelhante com o nível de exigência próximo ou igual à tolerância zero fixada pela Lei Federal 11.705/08, que inclusive vem sendo constantemente aperfeiçoada, tornando sua aplicação melhor e ainda mais aguda para aqueles que insistem em trafegar nas vias e estradas brasileiras sob influência etílica ou de substâncias alucinógenas (leis federais 12.760/12, 13.281/16 e 13.546/17).

No âmbito nacional, mesmo com o grau de detalhamento da Resolução Contran 432, de 23/01/2013, entendo que persistem alguns pontos de atenção no que tange à correta aplicação da lei.

É o caso do artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, que tornou infração administrativa gravíssima “recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa (…)”. É que, embora não exista mais a possibilidade de punição administrativa por presunção de embriaguez — que inclusive causou decretação de nulidade de inúmeras autuações pela Justiça —, o parágrafo 2º do artigo 277 do CTB estatui que a infração do artigo 165-A poderá ainda ser caracterizada pelo agente de trânsito “mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”. Ou seja, o condutor que for punido administrativamente por ter cometido essas duas infrações poderá em tese alegar em sua defesa um bis in idem, pois a rigor poderá haver uma dupla punição que terá origem em um mesmo fato, embora as condutas sejam fracionadas e valoradas separadamente pela lei. O diferencial a afastar o bis in idem, a meu ver, haverá de ser uma adequada formalização da acusação e uma clara motivação da punição.

Sem prejuízo disso, a Lei Seca vem exercendo um papel determinante na prevenção e na redução das mortes e lesões no trânsito brasileiro, sobretudo agora em que parece emergir uma comoção social determinante de um esforço coletivo voltado à prevenção e à redução do número geral das vítimas do trânsito no país, mormente quando temos indícios que nos levam a crer que a terceira grande causa desses acidentes no país é a condução de veículo sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (drink-driving e drug-driving).

Finalmente, como propostas de reforço da eficácia e da efetividade da lei, destaco (i) a necessidade de gerarmos dados e estimativas mais confiáveis acerca dos temas e conteúdo imanentes à lei e à sua correta aplicação, (ii) prosseguir e acentuar campanhas de conscientização dos motoristas sobre a razão de ser da Lei Seca e as suas próprias responsabilidades como condutores na prevenção de acidentes, (iii) capacitação e atualização contínua dos agentes de trânsito, nas atividades específicas da Resolução Contran 432/13, e (iv) investigações sobre a condução veicular sob influência de psicotrópicos, os quais vêm se tornando cada vez mais comuns nos grandes centros, porém continuam sendo pouco conhecidos, principalmente pelos agentes de trânsito.

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