Opinião

É preciso aprofundar os fundamentos sobre presunção de inocênciaa

Autor

  • Roberto Joacir Grassi

    é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo ex-procurador da Justiça (SP) e ex-professor de Direito Processual Penal (USP e outras faculdades)

21 de maio de 2018, 10h18

Estatui a Constituição Federal (art.5, LVII): “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

A leitura que se faz do vocábulo "culpado", na CF não pode levar, inequivocamente, à impossibilidade de prisão antes de integração do total trânsito em julgado. Trânsito em julgado, essencialmente, é uma das formas de expressão do fenômeno denominado preclusão.

Todo processo, em termos de efetivação de uma pretensão – ao que no caso particular nos interessa – punitiva, se desenvolve progressivamente, por atos sucessivos e encadeados, segundo um procedimento, um “fazer” de atos judiciários destinados ao atingimento de decisão, qualquer seja seu conteúdo (absolutório, condenatório, extintivo da punibilidade).

Em seu avançar vão-se colocando questões e respectivas decisões que, figurativamente, como que se cristalizam, tornam-se imutáveis. Aliás, a razoabilidade exigida no processo contemporâneo seria ferida de morte se a cada passo do futuro todo o passado fosse passível de propostas objetivando revisão do já exaustivamente visto e decidido.

Dir-se-á: e se um erro clamoroso foi perpetrado contra o acusado, isso fica sem remédio? A resposta será obviamente negativa: se um erro em matéria essencial, insanável, foi cometido, isso será facilmente reparado mediante um simples pedido de habeas-corpus ou propositura de ação de revisão criminal. Mas sublinhe-se: tal erro por essa última forma remediável há de ser substancial, comprovadamente prejudicial ao réu, irreparável. Isso sob pena de a atividade judiciária converter-se em campo de chicana, em liça de ardis, em espetáculo que lembra aqueles de luta-livre televisiva em que se representa lisura e agressividade inexistentes, apenas para gáudio do espectador, no caso presente para iludir o cidadão comum. O Judiciário não pode jogar “para o público”.

Como, com seriedade, impugnar-se o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal ao endossar recolhimento prisional após decisão condenatória que já foi objeto de dupla análise – substancialmente imutável – do Poder Judiciário? Entendimento diverso já se mostrou desmoralizante e até incentivador da criminalidade.

Afora o descalabro de um feito que, devendo exaurir todas as possibilidades recursais, previsivelmente conduzirá à prescrição inafastável dada a multiplicidade de impugnações interponíveis. Mesmo no plano lógico-sistemático é forçoso reconhecer que, após o julgamento em segunda instância, a própria estrutura constitucional desenganadamente não mais autoriza se venha a discutir – salvo, como já lembrado, em  revisão criminal, e esta na mesma segunda instância que determinou a prisão após seu acórdão –  o suporte fático da condenação: o fato, considerado criminoso, aconteceu? O réu foi seu autor? Absurdo (salvo competência originária), constitucionalmente impossível, como se tem visto, pretender que alguém discuta, em Brasília, se o fato aconteceu e se ele, impugnante, foi seu autor.

Os tribunais superiores decidem matéria de interpretação e validade do texto integrante da tipicidade (há crime em tese? há dúvida jurisprudencial?), eventual ocorrência de nulidade processual (matéria que nada tem a ver com inocência) e hipotética violação de norma constitucional.

Via de consequência, para nos voltarmos a uma problemática contemporânea, ao mantra “não há provas”, alguém que foi jurisdicionalmente declarado autor de peculato ou de lavagem de dinheiro somente será declarado inocente, se Brasília afirmar que peculato e lavagem de dinheiro não são crimes, porém, condutas legítimas, integrantes da grande esfera de liberdade individual.

O que se coloca em discussão é se o país quer um simulacro de Justiça atingível mediante segura e inafastável procrastinação para incidência de prescrição extintiva da punibilidade.

Mas convém alertar que nada declarado prescrito contém absolvição, declaração de inocência, reintegração do status dignitatis que uma vez trincado resvala à esfera poética daquele “vase brisé” de Prudhomme: “Toujours intact aux yeux du monde/ il sent croître et pleurer tout bas / sa blessure fine et profonde: il est brisé, n'y touchez pas”. Afasta-se “a cadeia”, nada se explicita em prol da honorabilidade do acusado.

Culpado, no léxico, de uma forma geral, corresponde a sujeito ativo de conduta – e até de um mero pensamento – censurável. No Direito Penal o consagrado vocábulo culpabilidade conduz àquele que age com dolo ou culpa. Na tradição de nosso Direito Processual Penal culpado era o réu que via seu processo com instrução colhida. Bem por isso o acusado, desde que pronunciado, tinha seu nome lançado no rol dos culpados. E saliente-se: a decisão de pronúncia não podia conter nenhum indício de que o juízo monocrático considerasse o acusado como digno de condenação. Se o fizesse tal sentença seria nula.

Então, numa tradição processual centenária, tínhamos alguém formalmente culpado, assim declarado por força de lei e, no entanto, por conclusão sistemática indiscutível do direito positivo, do pensamento jurídico e da jurisprudência, presumido inocente até que o Júri desse pela procedência da acusação.

Presunção de inocência é algo de todos os tempos, desde a colheita dos ensinamentos do Século das Luzes e bem por isso a carga probatória que conduza à condenação é ônus de quem a sustente. Não houvesse a presunção de inocência (outra projeção do mesmo princípio democrático) e a mera formulação do requisitório estatal, da propositura da ação, levaria à procedência da pretensão punitiva, a menos que o acusado provasse sua inocência.

A rigor, inclusive, a regra constitucional inicialmente transcrita apenas exige que a prova da procedência da acusação recaia sobre os ombros do acusador. Ao réu faculta-se a prova que requeira, porém, presumido inocente, eventual inércia sua não conduzirá a um decisório que lhe seja prejudicial. Para tal conclusão basta inverter, hipoteticamente, a regra constitucional: se ele fosse presumido culpado ficariam invertidos os ônus da prova: competir-lhe-ia provar sua inocência. Nada mais.

Inocência presume-se, com amplitude compatível, em todas as fases e instâncias procedimentais porque, não fora assim, o in dubio pro reo somente poderia, quando muito, incidir até o primeiro decisório condenatório. A não-culpabilidade diz, à evidência, com a preservação da dignidade do acusado até integração global do trânsito em julgado. É um princípio superior, não uma inflexível regra procedimental impeditiva de legítima autodefesa estatal.

Interessante observar-se que boa parte dos juristas que criticam a atual jurisprudência do Supremo admite: posicionamento diverso leva à mais clamorosa impunidade dos poderosos. Então – acrescentam eles – mude-se a Constituição. Quem assim se manifesta esquece, ou finge esquecer, duas coisas fundamentais:

1) ao tentar-se mudar a redação constitucional sempre haverá alguém a sustentar que se estará vulnerando “cláusula pétrea” da Constituição;
2) não bastasse essa probabilidade, tal mudança dependeria da vontade de Poderes da República cujos integrantes, em número absurdamente elevado, por estarem na condição de investigados/réus, ou na perspectiva de logo mais o serem, jamais legislariam contra seu interesse de auto resguardo. Não há criminoso que almeje mudar leis para facilitar sua punição.

Lamentavelmente é preciso reconhecer que a Justiça Criminal está na dependência do espírito cívico, do descortino dos integrantes de nossa Suprema Corte. Daí a razão pela qual, afastando-se teses na verdade meramente defensivas (se já não se pode discutir se o fato aconteceu e se o réu é, ou não, seu autor) há de reconhecer-se um escalonamento de integração progressiva objetivando o trânsito em julgado total.

Outro enfoque conduziria e tem conduzido ao absurdo (reductio ad absurdum) de uma impunidade elitista que, mantida, fatalmente desembocaria na declaração falimentar da Justiça Criminal. O Direito é vivo, como viva é a Sociedade. E há de ser aplicado com adequação aos fins de aperfeiçoamento coletivo.

Bem verdade que, diferentemente dos EUA, por exemplo, temos uma Constituição varejista, minuciosa, preciosista. Lembra certos ricaços que, à beira da morte, pretendem impor sua visão do mundo mediante testamentos cogentes em descabidas restrições e regras de conduta. Com isso perdeu-se no emaranhado. Porém ao Judiciário, que não é mero equipamento de informática insensível e cego, cumpre vislumbrar qual o caminho a ser trilhado para resguardo do melhor Direito.

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