Opinião

Combate à lavagem de dinheiro é única maneira de enfrentar o crime organizado

Autor

  • Marcelo Santana Farias

    é Juiz de Direito Titular da 1ª Vara de Lago da Pedra no Maranhão. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador e especialista em Direito do Estado pelo Curso Juspodivm e Instituto de Educação Superior Unyahna. Foi Juiz Titular da 74ª Zona Eleitoral/Ma.

21 de maio de 2018, 8h29

A lavagem de dinheiro, considerada a conduta do criminoso de ocultar ou dissimular o produto do crime, é bastante antiga. Talvez tão antiga quantos os crimes antecedentes.

Na Idade Média, a proibição da usura pela Santa Igreja, considerando o ato não apenas um crime, mas também um pecado mortal, avivou o engenho dos profissionais do comércio, que criaram novos mecanismos de crédito e inventaram uma variedade de práticas para ocultar valores[1].

Tais métodos são os antecedentes das modernas técnicas de ocultação, deslocamento e lavagem de dinheiro. O objetivo era simples: ocultar completamente ou disfarçar sua origem, fazendo-as parecer algo que não eram.

A expressão "lavagem de dinheiro" foi cunhada nos Estados Unidos, na década de 1920, em referência à aquisição de lavanderias por mafiosos para ocultar o produto de seus crimes.[2]

Em dezembro de 1988, foi celebrada em Viena, capital da Áustria, a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas. Tal convenção originou-se do reconhecimento dos efeitos deletérios da droga sobre à saúde e o bem-estar das pessoas. Reconheceu-se também os vínculos entre o tráfico e outras atividades criminosas organizadas e as economias lícitas[3].

O mundo vivia uma época em que os Carteis de Medellín e de Cáli, na Colômbia, tinham um poder vigoroso, que desafiava incisivamente os poderes constituídos. Assim, reconhecida a ineficácia do Direito Penal em coibir a atividade primária de tráfico de drogas, passou-se a criminalizar a lavagem de capitais, como importante instrumento de controle dos recursos advindos das atividades ilícitas.

O Brasil ratificou a referida Convenção em junho de 1991 (Decreto 154/91), quando se comprometeu a criminalizar a lavagem de dinheiro oriundo do tráfico ilícito de entorpecentes.

Em 1998, entrou em vigor a Lei 9.613/98, a qual tipificou a lavagem de dinheiro no Brasil, inserindo outros crimes como antecedentes à lavagem, além do tráfico de entorpecentes. Essa Lei estabeleceu ainda regras e obrigações administrativas para aqueles que exercem atividades em setores sensíveis e criou a unidade de inteligência financeira nacional, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Ademais, foram assinados outros tratados e convenções internacionais com recomendações para o combate e prevenção à lavagem de dinheiro, como a Convenção de Palermo (2000), Mérida (2003), dentre outras.

Por outro lado, em 2011, o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI)  – organismo internacional criado pelo G7 com o fim de promover uma resposta internacional para combater à lavagem de dinheiro – apontou inúmeras críticas ao sistema brasileiro, entre elas:

1) poucas condenações finais por lavagem de capitais;
2) problemas sistêmicos do sistema judicial que dificultam seriamente a capacidade de se obter condenações finais e penas;
3) falta de responsabilização civil ou administrativa às pessoas jurídicas;
4) baixo número de confisco em relação  ao tamanho da economia e o risco de lavagem de dinheiro;
5) deficiência no sistema de gerenciamentos de ativos, o que deprecia os bens apreendidos;
6) não inserção de advogados, tabeliães, outras profissões jurídicas independentes, contadores, assessores e consultores de empresa, corretores de imóveis, como obrigados a comunicar operações suspeitas;
7) ausência de proibição expressa das instituições financeiras em estabelecerem relações com bancos de fachada;
8) estatísticas insuficientes sobre investigações, denúncias e condenações por lavagem de capitais, bem como sobre o número de casos e valores dos bens confiscados.

Daí surgiu a Lei 12.683/2012, alterando a Lei 9.613/98, a qual suprimiu o rol taxativo de crimes antecedentes, fortaleceu o controle administrativo sobre setores sensíveis à reciclagem de capitais e ampliou as medidas cautelares patrimoniais incidentes sobre a lavagem de dinheiro, como bem sumaria Renato Brasileiro[4].

De outra banda, a Operação Lava à Jato e seus prolongamentos tornaram mais expressiva a persecução do crime de lavagem de dinheiro no Brasil. Entretanto, percebe-se que, apesar desta operação já ter iniciado há quatro anos, a Justiça Estadual aparentemente se mantém defasada nesse progresso.

Poucas são as notícias em que se registra condenações na Justiça Estadual por esse tipo de crime.

Por um lado, uma comparação como essa se explica em parte pela deficiência do sistema estadual de persecução penal. Entretanto, por outro lado, essa estatística ganha um colorido mais perverso, já que a Justiça Estadual é a única que tem uma capilaridade, qualidade tão importante num país continental como o Brasil.

A Justiça Estadual é a única presente nos mais diversos rincões do país, atingindo um número muito maior de pessoas potencialmente cometedores desse tipo criminal. E qual seria a atual importância do combate à lavagem de dinheiro?

Esse combate é o mais eficaz, senão o único a oferecer um real enfrentamento do crime organizado. É o capital que financia as grandes corporações delitivas, suporta suas relações internacionais e permite a consolidação das redes de corrupção. Assim, a apreensão desse capital é com certeza a estratégia mais inteligente para reduzir as atividades dos grupos criminosos.[5]

É aplicação do brocardo “move the money, move the world”.

Os grupos criminosos transformaram-se de antigas quadrilhas e bandos em verdadeiras ordens estruturadas, hierarquizadas e globalizadas, imunes aos atos repressivos tradicionais. A impessoalidade das organizações criminosas tornou irrelevante a prisão de seus membros, seja pela continuidade do comando a partir das prisões, seja pela fungibilidade de seus membros, os quais são facilmente substituídos.[6][6]

É muito comum a prisão de membros de determinado grupo criar tão somente “um vácuo no mercado” em favor de outras facções, como ocorreu com a queda do Cartel de Medellín, depois da morte de Pablo Escobar, em 1993.

Assim, sob o aspecto de política criminal de combate ao crime organizado, mais do que arma de fogo ou a pólvora, mais do que a infantaria, a cavalaria ou a artilharia, nessa peleja, ganha vital importância as unidades de inteligência financeira capazes de identificar o dinheiro ilegal, oriundo de atividades criminosas.

No Brasil, tem-se leis contemporâneas à de Lavagem de Dinheiro, as quais tiveram uma profusão e aplicação muito mais intensa, como a Lei que organiza o Juizado Especial ou mesmo a Lei de Improbidade Administrativa. Por outro lado, a Lei de Lavagem de dinheiro passou quase duas décadas sem aplicação entre nós.

Nesse sentido, ao se tentar interpretar a pouca eficácia e aplicação da Lei de Lavagem de Dinheiro no Brasil, é imprescindível lembrar-se das lições de Alessandro Barrata e Stuart B. Scwartz.

O primeiro, filósofo, sociólogo e jurista italiano, defende que as normas de Direito Penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdades existentes, enquanto o Direito Penal também exerce uma função ativa de produção e reprodução dessas desigualdades. Leciona Baratta[7]:

Em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, ela age de modo a impedir sua ascensão social.

Em segundo lugar, e esta é uma das funções simbólicos da pena, a punição de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalização. Desse modo, a aplicação seletiva do direito penal tem como resultado colateral a cobertura ideológica desta mesma seletividade.

Em outro excerto[8], ao tratar do labeling approach (ou teoria do etiquetamento), Baratta disserta:

Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que por isso, o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como “delinquente”.

Neste sentido, o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. Sob este ponto de vista tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de acusação pública e dos juízes.

Desta forma, afirma Merton, a análise da criminalidade do colarinho branco, mostra a classe de homens de negócio, população amplamente desviante, entretanto escassamente perseguida.

Talvez aqui resida a apatia na persecução da Lavagem de Dinheiro.

Por outro lado, cabe também trazer aqui as lições de Stuart B. Schwartz, americano que se sagrou há décadas como um dos maiores estudiosos da história colonial brasileira. Em sua obra “Burocracia e sociedade no Brasil Colonial: O Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751”, datada da década de 1970, ele minudencia a história do Poder Judiciário no Brasil e explica em parte as razões da perpetuidade dessa seleção do sistema penal.

Noticia Schwartz que os juízes ofereciam um reserva de burocratas bem treinados e supostamente leais ao trono, portanto hábeis solucionadores de problemas e membros de novos órgãos administrativos[9].

A mistura de funções judiciais e administrativas eram tão grandes, que a primeira Relação e seus magistrados reais receberam como atribuição mais importante, no fim do século XVII e começo do século XVII, a função de fixar o preço do açúcar[10]. Lembre-se que esse produto exercia papel central na vida agrícola da então capitania e seu preço era assunto de interesse geral.

Aliás, essa função de fixar o preço do açúcar era durante a maior parte do Século XVII da Câmara, através de uma comissão presidida por um magistrado real.

Outro exemplo histórico dessa volubilidade entre os Poderes constituídos, é o caso do Barão de Desterro, João José de Almeida Couto, baiano de Maragogipe. Em 1844, ele foi Secretário da Presidência, em 1845 foi nomeado Juiz de Direito, depois Auditor Geral da Marinha[11].

Em 1864, foi nomeado Desembargador da Relação da Bahia, exercendo nessa Relação, o cargo de Procurador da Coroa, Soberania e Fazenda Nacional. Foi nomeado como Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, em 1881, Tribunal que antecedeu o atual Supremo Tribunal Federal.

O Barão do Desterro ainda ocupou o cargo de 1º Vice-Presidente da província da Bahia, tomou assento na Câmara dos Deputados, e foi agraciado por D. Pedro II, com os títulos de Conselho, Barão do Desterro e recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.

Voltando às lições de Stuart B. Schwartz, este registra ainda como os letrados formam uma classe social estreitamente ligada ao poder real [12]. E vai além.

Ele mostra como a Coroa fomentou a profissionalização dos burocratas magistráticos e a formulação de objetivos, normas e motivações profissionais, tudo no afã de transformar esses homens em servidores plenamente submissos aos interesses reais[13].

Eis a preocupação do gerenciamento burocrático, pouco afeito com a realidade social. De forma pavloviana apenas os estímulos do avanço burocrático deveriam provocar resposta magistrática.

Talvez a real persecução da Lavagem de Dinheiro seja o avesso de todo o processo histórico que moldou nossas instituições.

Que os crimes de lavagem de dinheiro efetivamente sejam investigados, processados e julgados. Oxalá isso mude o Brasil!


[1] Gómez, Juan Miguel del Cid, Blanqueo internacional de capitales: como deterctarlo y prevenirlo.  Barcelona: Deusto, 2007, p. 20 e seguintes.
[2] Moro, Sérgio Fernando, Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, e-book, Cap. 1, Considerações gerais sobro crime de lavagem de dinheiro, p. 2/22 e Badaró, Gustavo Henrique e Bottini, Pierpaolo Cruz, Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98, com as alterações da Lei 12.683/2012, p. 29.
[3] De Lima, Renato Brasileiro, Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 284 e seguintes.
[4] Idem, p. 287.
[5] Badaró, Gustavo Henrique e Bottini, Pierpaolo Cruz, Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98, com as alterações da Lei 12.683/2012, 3ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 27.
[6] Idem, p. 30.
[7] Baratta, Alessandro, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal, tradução de Juarez Cirino dos Santos, 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 166.
[8] Idem p. 86
[9] Schwartz, Stuart B., Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 16091751, tradução Berilo Vargas, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 206
[10] Idem p. 207
[11] Laurenio Lago, Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal: dados biográficos 1828-2001; apresentação de Carlos Veloso; atualização de Pedro J. X. Mattoso – Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2001, p. 145/146.]
[12] Idem p. 23

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    é Juiz de Direito Titular da 1ª Vara de Lago da Pedra, no Maranhão. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador e especialista em Direito do Estado pelo Curso Juspodivm e Instituto de Educação Superior Unyahna. Foi Juiz Titular da 74ª Zona Eleitoral/Ma.

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