Opinião

Prédio que desabou em SP foi destinado a Faculdade de Direito da Unifesp

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

20 de maio de 2018, 14h32

Existem textos que pensamos em escrever, mas, por diversos fatores, vamos adiando até que ocorre um fato que nos obriga a tirar as ideias da gaveta mental em que se encontravam e trazê-las à lume. Isso ocorreu comigo em razão da tragédia do incêndio, seguido de desabamento, do prédio Wilton Paes de Almeida, com incontáveis mortos, feridos e desaparecidos.

Esse prédio havia sido destinado pela União à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde seria instalada a Faculdade de Direito do Largo do Paissandu – isso durante os anos de 2012-2014. O prédio era emblemático para o projeto, por várias razões. Havia sido sede na Polícia Federal no período militar (até mesmo um prêmio Nobel da Paz havia sido detido por lá “para averiguações”), encontrava-se em um belo largo no centro histórico paulistano, havia projetos de revitalização do local, bem como de todo seu entorno, e era um prédio tombado pelo patrimônio histórico. Tudo isso tornava o local propício para instalar um núcleo pensante sobre o Direito, que se propunha pujante e formado por um método de análise crítica, onde prática e realidade não fossem objetos apartados, mas unidos por incessante reelaboração de conteúdo.

O projeto acadêmico para a Faculdade de Direito da Unifesp, que passou a ser carinhosamente denominada de Faculdade de Direito do Largo do Paissandu depois da cessão do prédio, era bastante arrojado.

A Unifesp surgiu a partir da tradicional Escola Paulista de Medicina, e era então uma das últimas grandes Universidades Federais a não ter um curso de direito. Isso mobilizou sua Pró-Reitoria, na pessoa do Prof. Nildo Batista, da Faculdade de Medicina, a organizar um grupo de pessoas para discutir um arrojado projeto acadêmico-pedagógico, tomando por base um método bastante conhecido na área médica, que é o Problem Based Learning (PBL), que, no vernáculo, representa a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP).

O grupo era formado por vários profissionais do Direito e da Medicina, coordenados pelo Nildo. Fui convidado a fazer parte desse grupo, em face da experiência docente na UFPA e na USP, além de atividades de gestão acadêmica na Capes e na Sesu; Luiz Alberto David Araújo, por sua atividade docente na PUC-SP, em graduação e pós; Heleno Taveira Torres, então presidente da Comissão de Graduação da Faculdade de Direito da USP, também com atividades na pós-graduação; Hélcio Dallari Júnior, professor de Direito no Mackenzie e então doutorando pela Unifesp; o professor Álvaro Nagib Atallah, titular da Faculdade de Medicina, e então coordenador do projeto Medicina por Evidências e do Centro Cochrane do Brasil; os procuradores da AGU, lotados na Unifesp, Maurício Maia e Thomas Almeida; além de diversos outros profissionais que estiveram presentes nas inúmeras reuniões realizadas naquele período.

O apoio institucional foi enorme e o debate bastante frutífero. Buscava-se a aplicação do método PBL na maior extensão possível. Tentarei expor as ideias em rápidas pinceladas.

A experiência do grupo coordenado pelo Nildo estabeleceu como princípios do projeto a pesquisa como elemento impulsionador do ensino e da extensão; a prática profissional como eixo norteador do projeto pedagógico; a problematização do ensino a partir da prática e da pesquisa, com adoção de enfoques problematizadores; a interdisciplinaridade; a postura ativa do estudante na construção do conhecimento e a postura facilitadora do docente no processo ensino-aprendizagem; a integração com a comunidade; a dinamicidade do plano pedagógico com sua construção e reconstrução permanente e a internacionalização acadêmica.

Não haveria aulas expositivas e nem disciplinas fechadas, como as que rotineiramente se vê nas faculdades de Direito. E nem mesmo o entra-e-sai de professores em sala de aulas, método que faz os alunos assistirem uma aula de Direito Penal e, na sequência, “trocar a chave” e assistir a uma aula de Direito Financeiro – sem que uma disciplina dialogue com a outra, como se fossem cursos estanques, em que cada professor, de forma magistral, lança os conceitos e sua sabedoria sobre os alunos, que têm a obrigação de ouvi-los atentamente e acatar suas ideias.

O projeto previa que o ensino decorreria da análise e do debate de problemas encontrados na realidade, que poderiam advir de casos relatados pelos jornais e revistas quotidianas, ou de casos submetidos aos tribunais. Ou mesmo de casos pensados pelos docentes, envolvendo diversas matérias. Assim, uma discussão de vizinhos acerca dos limites de um muro, poderia dar ensejo ao estudo de matérias envolvendo Direito Civil, Urbanístico, Administrativo, Penal e vários outros. O recente impeachment da presidente Dilma poderia dar ensejo a discussões de Direito Constitucional, Financeiro, ciência política, processo penal dentre outras. Os alunos seriam levados a ver a floresta, e não apenas as árvores de cada área do conhecimento jurídico. As aulas não seriam expositivas, como no sistema tradicional, quando o professor ministra a aula e aponta as soluções possíveis (quando não apresenta uma única solução correta…). O papel do docente seria expor o problema e, à exaustão, discorrer sobre ele apontando as diversas possibilidades de análise – jamais dando respostas. Após uma aula com esse conteúdo, os alunos seguiriam para a biblioteca, que deveria ser portentosa, e buscar soluções para os problemas encontrados. Haveria sessões de tutoria, com docentes e monitores, sendo ministradas para pequenos grupos de, no máximo, cinco alunos. E ao final da semana letiva, o problema ministrado deveria ser solucionado pelos alunos, apontando as alternativas teóricas encontradas.

Como se pode intuir, o projeto previa que a turma ficasse inteiramente à disposição de uma matéria por uma ou mais semanas, sem o entra-e-sai docente acima mencionado. Por exemplo, o estudo do Direito Administrativo, seria centrado em duas ou três semanas, sem que os alunos se dedicassem a outras matérias naquele período. Todavia, quando o assunto ministrado em sala de aula bordejasse outra disciplina, o regente da matéria poderia convidar professores de outras áreas do conhecimento para expor o específico ponto relacionado ao problema encontrado. Assim, e mantendo o exemplo, quando fosse apresentado um problema nas aulas de Direito Administrativo que tangenciasse matéria financeira ou penal, docentes dessas áreas poderiam ser convidados a expor os específicos pontos envolvidos. Logo, as duas ou três semanas concentradas de Direito Administrativo seriam expandidas para os cinco anos do curso.

A semana letiva normal seria composta pela apresentação do problema na segunda feira pela manhã. Os alunos, que teriam turno integral pelos primeiros cinco semestres letivos (metade do curso), iriam em seguida para a biblioteca buscar solução para o problema exposto. Seriam agendados encontros entre os alunos, os monitores e docentes (daquela matéria ou das demais envolvidas) no correr da semana – encontros para afastar dúvidas, e não para ministrar aulas. Na sexta feira, os alunos, em pequenos grupos (cinco pessoas, no máximo), apresentariam ao(s) docente(s) as soluções para o problema apresentado. Isso se repetiria nas semanas seguintes, dedicadas àquela matéria, até encerrar as semanas a ela dedicadas pelo projeto do curso. É nítida a busca da compreensão do Direito através da solução de problemas concretos, e não pela delimitação de conceitos, ou através de uma análise consequencialista ou meramente jurisprudencial. A crítica se tornaria mais acirrada com esse método, e os alunos interessados aprenderiam com mais facilidade. Os alunos desinteressados não tem jeito, qualquer que seja o método – porém, nesse, é mais fácil identificá-los e eles buscarem alternativas que lhes pareça mais interessante estudar, do que o Direito.

Adotado esse método, o conteúdo das matérias jurídicas seria buscado diretamente pelos discentes, sendo o docente um orientador de estudos, com a função precípua de estimular a pesquisa dos temas envolvidos, que surgiriam a partir dos problemas apresentados.

Essa metodologia, com diversas nuances, funciona em grande parte dos cursos de medicina no país. A compreensão é que os médicos devem ser treinados para resolver problemas de saúde que atormentam as pessoas, seja de forma preventiva ou repressiva.

A impressão que tive é que esse método seria bastante adequado para o ensino do Direito, pois os bacharéis jurídicos também buscam solucionar problemas que surgem da convivência social, qualquer que seja a profissão que venham a seguir: magistério, advocacia, magistratura, promotoria ou policial. A solução de problemas é a tônica em qualquer dessas profissões. Logo, o método de ensino PBL seria uma inovação que deveria ser testada na ousada e novel Faculdade de Direito do Largo do Paissandu.

Tal projeto, por suas características, só poderia ser implantado em uma universidade pública, pois tem como pressupostos aspectos muito peculiares que envolveriam pesados custos para a iniciativa privada. Deveriam ser aceitos poucos alunos (o projeto previa o ingresso de apenas 60 alunos por ano, em duas turmas de 30 alunos cada), todos com dedicação exclusiva ao ensino por, pelo menos, metade do curso. Seriam necessários muitos docentes disponíveis para o atendimento ao alunado fora de sala de aula (afinal, poucas aulas seriam ministradas, mas muitas reuniões para esclarecimentos seriam agendadas individualmente ou em pequenos grupos). Uma biblioteca muito bem instalada e com um acervo físico e digital, amplo e de qualidade, abrangendo diversas áreas do Direito e de outras ciências correlatas, desde o primeiro ano de implantação do curso.

Além desse projeto só poder ser feito em uma universidade pública, teria que ser em uma faculdade que estivesse sendo implantada, pois dificilmente seria possível alterar a cultura docente já arraigada em uma faculdade que tivesse produzido muitas turmas. O esforço energético para mudar uma cultura docente sedimentada seria incomensurável, e de resultados previsivelmente pífios.

Afinal, para o projeto prosperar seria necessário um intenso treinamento com os docentes, para que houvesse a perfeita compreensão do método e o preparo dos casos a serem discutidos. Imaginem só o conflito que surgiria caso fosse contratado um professor que ministrasse aulas pelo método tradicional há vários anos, um “medalhão”, e, a partir de então, ele fosse obrigado a seguir o projeto pedagógico da faculdade, centrado no PBL? Seguramente haveria um conflito a ser administrado – ainda mais pelo fato de que as contratações seriam realizadas por concurso público, uma vez que a Unifesp é uma autarquia federal.

Um leitor atento perguntaria: o que aconteceu então? Pois bem, o projeto pedagógico foi elaborado em sua quase totalidade – diria que o grupo fechou cerca de 90% do que era necessário ser feito. O restante deveria ser discutido com os docentes que ingressassem por concurso na faculdade, pois eles é que seriam os responsáveis pela condução do projeto, e não o grupo que o estava concebendo. O MEC disponibilizou sete vagas para essa fase inicial de implantação e os editais dos concursos foram preparados e publicados. O prédio onde seria a sede da faculdade – o edifício recém desabado no Largo do Paissandu – já havia sido transferido pela União à Unifesp. O MEC havia alocado verba para reforma completa do prédio, cuja duração era estimada entre um e dois anos – o projeto de reforma não chegou a ser contratado. Nesse ínterim, já estava sendo buscado um local para o funcionamento provisório da faculdade. Enfim, tudo caminhava para a implantação do ousado projeto.

Ocorre que mudou a gestão universitária, e o novo grupo elegeu outras prioridades. Com isso, os concursos foram cancelados, o prédio foi devolvido à União, os recursos alocados para sua reforma nela não foram utilizados, e o projeto foi adiado.

Soube que a Unifesp, passados alguns anos, criou e instalou sua Faculdade de Direito em Osasco, na Grande São Paulo. Desconheço o projeto, quem o preparou ou mesmo se aproveitou algo que havia sido feito visando modificar o modorrento sistema de ensino jurídico brasileiro. Espero que sim, mas desconheço.

Toda essa história me voltou à mente com o desabamento do edifício no dia 1º de maio. Não sei o que teria acontecido se a Faculdade de Direito da Unifesp tivesse realmente sido levada adiante e implantada no Largo do Paissandu. Com a reforma que teria sido realizada, o prédio poderia estar de pé, cheio de alunos e de ideias jurídicas fervilhantes e o centro histórico de São Paulo teria um reforço a mais para sua revitalização. Daria certo? Não sei.

A Faculdade de Direito do Largo do Paissandu foi um belo projeto que nunca se realizou. Lembra uma antiga novela da rede Globo, denominada Roque Santeiro, com Regina Duarte, José Wilker e Lima Duarte nos papéis principais. Havia uma personagem, a viúva Porcina, que era aquela que foi sem nunca ter sido…, pois jamais havia casado, logo, como poderia ser viúva? O roteiro foi escrito por Dias Gomes e teve sua exibição proibida em 1975, só sendo exibida dez anos após, durante a redemocratização. Foi um sucesso de crítica e público, já tendo sido reapresentada pela emissora.

Diferente da novela, que só pode ser exibida após a redemocratização, a Faculdade de Direito do Largo do Paissandu infelizmente não terá outra oportunidade para ser implantada. Permanecerá como a personagem da novela: aquela que foi, sem nunca ter sido.

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  • Brave

    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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