Opinião

Sérgio Cabral foi algemado por abuso de poder para satisfazer lascívia dos outros

Autor

19 de maio de 2018, 14h48

“As algemas, também as algemas são um símbolo do direito; quiçá, a pensar-se, o mais autêntico de seus símbolos, ainda mais expressivo que a balança e a espada.”[1]

A praxe do processo penal brasileiro é a mais cabal confirmação da veracidade das eternas palavras de Carnelutti: “o processo penal não é, infelizmente, mais que uma escola de incivilização”.[2] De tempos em tempos as autoridades encarregadas da persecução penal no Brasil, em especial a Polícia Federal, demonstram ser os preceptores dessa escola. Tais autoridades não se cansam essas de nos fornecer sórdidos exemplos de violação da dignidade humana.

A mais recente “aula de incivilidade” foi o tratamento dispensado ao ex-governador Sérgio Cabral, exposto em rede nacional, algemado dos pés à cabeça. Não menos deplorável do que a imagem em si foi a justificativa dada pela Polícia Federal para tal procedimento: era para protegê-lo da “multidão ensandecida”.

Na verdade, a justificativa dada pela Polícia Federal não merece a mais superficial atenção. Era evidente que tal motivo não se fazia presente no caso. Qual eram, então, as razões de se colocar algemas em uma pessoa inofensiva e expô-la em rede nacional? Tourinho Filho explica:

“É muito comum na prisão em flagrante de pessoas com certa notoriedade o uso de algemas, com direito a filmagem. E, “não se sabe como”, mesmo que as prisões se efetivem ao amanhecer, faz-se notar a presença de fotógrafos e de repórteres registrando o ato, exibindo ao “povão” cenas que causam certa satisfação a espíritos malformados.”[3]

Embora o professor tenha dito menos do que queria, pois não só na prisão em flagrante isso ocorra, mas em qualquer outra, sua análise foi cirúrgica: o uso de algemas não tem outro objetivo que não o de humilhar, aviltar, degradar o cidadão.

Certas pessoas, em razão de algum “defeito” em sua formação psíquica e orgânica, acabam por desenvolver uma espécie de depravação moral que as fazem sentir prazer em ver uma pessoa algemada. Algum tipo de perversão sexual mesmo, pois não se consegue entender como uma pessoa normal possa se deliciar no ato de ver alguém sendo transportado algemado para a cadeia.

E algumas autoridades brasileiras, ávidas por aplausos e atentas a esse desejo sórdido presente na mente de boa parcela da sociedade brasileira, satisfaz essa demanda, “faturando” em cima da dignidade do preso, em frontal e manifesta violação ao texto constitucional.

Para além dessa misteriosa devassidão sexual que apenas Freud poderia desvendar, há o aspecto jurídico-processual do fato: os contínuos excessos e desmandos das autoridades estatais. Alguns assistem a esses excessos com indiferença, mas as arbitrariedades estatais não têm nunca destinatário certo e determinado: todos nós podemos nos encontrar enredados nesses atos abjetos.

O escritor francês Benjamin Constant foi muito feliz ao observar:

“Quando a arbitrariedade é tolerada, ela se dissemina de maneira que o cidadão mais desconhecido pode, de repente, encontra-la armada contra ele. Não basta manter-se alheio e deixar os outros serem atingidos.”[4]

Realmente, quando a Constituição Federal diz que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; ou que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”; ou, ainda, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; dentre outras tantas garantias e direitos, todos temos a tendência de sentir que isso não nos diz respeito. E mais, que tratam de disposições poéticas destinadas aos bandidos, aos suspeitos, aos criminosos, enfim, aos outros.

Imaginamos sempre que a ação das autoridades, por mais arbitrária que seja, é sempre justificada pelo “interesse público” que supostamente a norteia, ainda segundo as sempre irretocáveis considerações de Benjamin Constant:

“Muita gente percebe no exercício do arbítrio unicamente uma medida de polícia. E como, aparentemente, esperam ser sempre seus ministradores, sem nunca ser seu objeto, acham-na muito bem calculada para a tranquilidade pública e para a boa ordem. Outros, mais receosos, não encontram nele nada além de uma vexação particular. Mas o perigo é muito maior.”[5]

“Nada além de uma vexação particular”, é o que pensamos ao assistir, pela televisão, o espetáculo grotesco proporcionado pela Polícia Federal. Mas essa vexação particular, aparentemente isolada e distante, torna-se, se não for providencialmente neutralizada, uma praxe policial e judiciária, que há de se disseminar incontrolavelmente.

É o que parece estar acontecendo com o Brasil, ao ponto de ter de se ouvir de um agente policial que a Súmula Vinculante 11 “não vale nada”. É isso que acontece quando aceitamos passivamente o exercício do arbítrio: ele transforma a mais alta lei do país em uma folha de papel.

Infelizmente, sabemos que o episódio envolvendo Sérgio Cabral não foi o primeiro e não será o último. Isso porque nunca se chega à punição dos agentes envolvidos em atos que tais. Nesses casos, o titular da ação penal pública parece ser tomado por uma letargia singular. Presenciamos abusos atrás de abusos sem que uma única autoridade envolvida seja responsabilizada.

Daí que a única possibilidade de se combater esses abusos é com uma verdadeira reforma da lei de abuso de autoridade, alterando a titularidade da ação penal, de modo a viabilizar de fato a responsabilização de um agente estatal sempre que este abusar de seu poder, pois, conforme disse Constant, “o que remedia o arbítrio é a responsabilidade dos agentes.”[6]


[1]CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal, Edijur, 3ª Edição, 2013, p. 20.
[2]CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal, Edijur, 3ª Edição, 2013, p. 7.
[3]FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, Saraiva, 34ª Edição, 2012, p. 470.
[4]CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Martins Fontes, 2005, p. 154. (sem grifos no original)
[5]CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Martins Fontes, 2005, p. 157. (sem grifos no original)
[6]CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Martins Fontes, 2005, p. 156.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!