Ambiente Jurídico

A prova do dano ambiental e sua
apreciação judicial

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

19 de maio de 2018, 8h02

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O dano ambiental, consistente na lesão ao meio ambiente como bem de uso comum do povo e na violação do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, apresenta peculiaridades que tornam complexa e muitas difícil a sua verificação concreta e a determinação da sua extensão e amplitude para fins de reparação.

Isso porque o dano ambiental implica a agressão ao meio ambiente, entendido como o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art. 3º, I, da Lei 6.938/1981), bem incorpóreo e imaterial, e, também, a diminuição, subtração ou destruição dos denominados bens ambientais e seus elementos corpóreos e incorpóreos (art. 3º, V, da Lei 6.938/1981) – ou seja, o solo, a água, o ar, as espécies e os espécimes da fauna e da flora, os recursos genéticos, os ecossistemas, os processos ecológicos, as paisagens, os bens e valores culturais e os elementos da ordem urbanística –, bens esses que integram o ambiental global, cujas preservação e conservação são asseguradas como direito fundamental de todos.[i]

Assim, embora se manifeste de maneira mais ostensiva e perceptível a partir de atentados aos bens ambientais e seus elementos, o dano ambiental, na verdade, é mais amplo, na medida em que acaba por afetar o conjunto de relações e interdependências que permite e condiciona a vida em todas as suas formas.[ii]

Daí, então, as dificuldades que cercam a prova do dano ambiental, principalmente no que se refere à amplitude da degradação, cuja apuração, em toda a sua extensão, depende, no mais das vezes, de avaliações técnicas, com base científica, à luz do conhecimento disponível. Em termos práticos, isso significa que, na atividade judicial, a prova do dano ambiental vai depender, em boa parte dos casos, da realização de perícias.

Diante dessa realidade, tem-se questionado se, na prática, o convencimento do magistrado, decorrente da apreciação da prova do dano ambiental, não ficaria limitado ou comprometido nessa matéria, submetendo-se necessariamente as conclusões do juiz no processo coletivo ambiental ao resultado da perícia realizada na instrução da causa.[iii]

Com efeito, segundo alguns autores, estando a prova do dano ao meio ambiente condicionada pela técnica, haveria, em boa parte dos casos, verdadeira relação de dependência entre a verdade do juiz e a verdade do perito no processo.[iv] Ainda de acordo com essa corrente doutrinária, a liberdade do magistrado na formação da sua convicção, teoricamente presente nas demandas coletivas ambientais, daria lugar, na prática, a uma quase submissão às perícias.

No final das contas, quem determinaria a reparabilidade ou não do dano ambiental, em muitos dos casos, não seria o juiz, propriamente, mas o perito[v], em hipótese caracterizadora de exceção à norma do art. 479 do CPC, pela qual o juiz não está vinculado ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos existentes nos autos, desde que o faça fundamentadamente.[vi]

Com o devido respeito, evidentemente, aos que pensam dessa forma, ao nosso ver a matéria comporta análise diversa. De fato, ainda que se reconheça que o Direito Ambiental, inegavelmente, é um direito marcado, em larga medida, pela dependência da regulamentação jurídica aos imperativos da ciência e da tecnologia[vii], não se pode levar às últimas consequências a vinculação do juiz ao resultado das perícias.

Isso porque, conforme se tem verificado, são muitas ainda as incertezas científicas nas questões relacionadas à proteção do meio ambiente, de maneira que nem sempre os técnicos e os peritos têm condições de trazer aos processos, de maneira plenamente satisfatória, em termos de certeza, as informações e conclusões desejadas pelos operadores do direito.[viii]

Na realidade, o que se verifica na prática é que, nas demandas ambientais, são frequentes as dúvidas e controvérsias a respeito da caracterização da degradação ambiental que não podem ser dirimidas adequadamente pelos trabalhos técnicos, controvérsias essas, então, cuja solução continua na dependência do poder de análise do magistrado, à luz, evidentemente, das alegações e argumentos trazidos pelos litigantes.

Além disso, não se pode ignorar tampouco que, quando se discutem nas ações judiciais matérias relacionadas a campos do conhecimento científico sujeitos a dúvidas e incertezas, há sempre um complicador a mais, qual seja, a possibilidade de manipulação de dados e informações nos laudos e pareceres técnicos, capaz de comprometer o correto julgamento da causa.[ix]

Por essa razão, tem-se sustentado, ao nosso ver com inteiro acerto, que tanto quanto em qualquer outro tipo de demanda, e talvez, até, de acordo com o caso, mais do que em qualquer outro tipo de demanda, na demanda ambiental o papel do juiz na direção e na instrução do processo e na avaliação da prova trazida aos autos se revela como da maior importância mantendo-se íntegra, nesse sentido, a regra do art. 479 do CPC.[x]

Mas aqui surge outro aspecto importante. É o de que, embora possível, o afastamento das conclusões da perícia não é, jamais, resultado da vontade arbitrária do magistrado ou do seu entendimento pessoal sobre a realidade do dano ao meio ambiente ou do que venha a ser degradação ambiental. A aferição do dano, nessa matéria, deve, preferencialmente, obedecer a critérios objetivos, sem possibilidade de sujeitar-se a critérios íntimos e pessoais do juiz a respeito do que mereça ou não proteção ou do que tenha ou não valor ecológico ou cultural.

Expressivo, a propósito, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, em antigo acórdão, de 1943, em que se discutiu o valor histórico-cultural do conjunto arquitetônico do Arco do Teles, no Rio de Janeiro, para fins de tombamento. Do voto vencedor proferido pelo ministro Philadelpho Azevedo, extrai-se o seguinte e sugestivo trecho de interesse na matéria:

“(…) também reivindico a legitimidade da apreciação do Judiciário [quanto ao valor cultural de um bem tombado], embora sob os mais discretos contornos e a fim de evitar que, sob a aparência de técnica, se disfarcem o exagerado arbítrio ou a injustiça notória; na espécie, tenho, porém, de confirmar a sentença recorrida.

É que, embora, na minha deficiente apreciação estética, considere o atual conjunto como verdadeiro mostrengo, à moda de arlequim, vestido por metades diversas, seria irrecusável a existência de outro aspecto, o histórico, ainda que também desautorizadamente me parecesse mais valiosa a documentação iconográfica já existente do conjunto da velha praça do que a conservação desse fragmento mutilado e deformado, não de uma acrópole, mas de pardieiro anti-higiênico, cuja construção não orgulharia a simples mestre de obras.

Todavia, não posso sobrepor pontos de vista personalíssimos, e por certo improcedentes, ao juízo mais autorizado dos órgãos administrativos e do eminente perito que firmou o voto vencido na vistoria. Basta-me a segurança de que a providência foi inspirada por elevados e dignos propósitos, para afastar a censura e o veto do Judiciário.”.[xi]

Portanto, preservado o princípio do convencimento motivado do juiz nessa matéria, a apreciação da prova do dano ambiental deve, como referido, pautar-se por critérios objetivos e não por pontos de vista personalíssimos do julgador quanto ao que constitua ou não degradação ambiental ou quanto ao que mereça ou não proteção, sob o ponto de vista ecológico e cultural.[xii]

E se assim é no que se refere ao dano causado ao meio ambiente como bem jurídico protegido, o que dizer, então, da verificação judicial do denominado dano moral ambiental, cuja reparabilidade é expressamente admitida no ordenamento jurídico nacional, seja à luz do direito positivo[xiii], seja à luz da jurisprudência?[xiv] Como avaliar no processo coletivo ambiental o sentimento da coletividade em relação a um determinado bem ambiental degradado para aferição da ocorrência do dano moral coletivo?[xv]

Sem dúvida, como não poderia ser diferente, a apreciação judicial da prova do dano moral ambiental é também matéria sujeita à apreciação soberana do magistrado, sempre, evidentemente, à vista das alegações das partes e dos elementos de convicção constantes dos autos.

Nesse tema, inclusive, é importante observar que aparece como da maior relevância a atividade do juiz de primeiro grau, que é quem toma contato mais próximo e direto com a degradação ambiental e pode sentir mais de perto a repercussão que essa degradação tem sobre o sentimento da coletividade mais diretamente afetada.[xvi]

Não por outra razão, como se sabe, a Lei 7.347/1985, em seu art. 2º, estabeleceu aquela regra geral de competência para o processamento e o julgamento da ação civil pública ambiental, segundo a qual o foro competente para a demanda coletiva ambiental é o foro do local do dano, por considerar o legislador que o juiz do foro do local do dano ambiental é, precisamente, quem tem melhores condições de colher as provas necessárias à comprovação (ou não) da degradação ambiental e de sentir o envolvimento da comunidade com o bem ou recurso ambiental degradado.

Observe-se que, diante de tal realidade, tem-se entendido que em determinadas circunstâncias a apreciação feita pelo magistrado de primeiro grau deve se sobrepor, até mesmo, à apreciação feita pelo órgão jurisdicional de segundo grau, já que a segunda instância, exatamente por estar distante da realidade em que se deu a degradação ambiental, teria grandes dificuldades de confrontar os critérios da avaliação da instância inferior, com critérios diversos de quem não esteja próximo à coletividade diretamente atingida.

A propósito, importa salientar que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, já externou orientação nesse sentido, em julgado a respeito da proibição do corte de árvores integrantes de paisagem notável de determinado município. Nesse julgado, relatado pelo desembargador Walter Moraes, o TJ-SP levou em especial consideração, para o exame da relevância da preservação dos espécimes arbóreos em discussão, a impressão colhida pelo magistrado de primeira instância, exatamente em razão de ele viver e sentir a realidade peculiar daquela localidade.

Conforme ficou assentado na decisão, “parece mais fácil ao juiz, que ao tribunal, aquilatar o que realmente seja integrante do paisagismo notável do local, eis que ali vive e pode sentir o respeito e a admiração da população pelo patrimônio cultural, histórico ou paisagístico”, sendo, na apreciação de tal situação, “melhor a impressão colhida pelo (…) magistrado que vive o local dos fatos, que se sensibiliza com as manifestações populares e que colheu, de forma viva, a opinião de testemunhas”.[xvii]

Em conclusão, pode-se afirmar que, devido às peculiaridades do dano ambiental, não há dúvida de que, nos processos judiciais, a prova dos fatos a ele relacionados, frequentemente, fica sujeita a verificações de ordem técnica e científica empreendidas por peritos.

Todavia, a apreciação judicial dessa prova, mais do que sempre, é obra da inteligência e do poder de análise do magistrado, o qual, à luz de todos os elementos de convicção existentes no processo e das alegações e argumentos apresentados pelas partes, é quem verifica a realidade da degradação ambiental, sem vinculação necessária ao resultado da perícia eventualmente realizada, como preconiza a regra do art. 479 do CPC.

Por outro lado, cumpre ter sempre presente também que o eventual afastamento das conclusões técnicas apresentadas pelos peritos, nas demandas ambientais, não pode jamais ser o resultado da vontade arbitrária do magistrado, com base no seu entendimento íntimo e pessoal quanto ao que constitua dano ambiental ou ao que mereça ou não proteção em matéria ambiental.

O mesmo deve ser dito, ainda, no concernente ao dano moral ambiental, que, além de tudo, tem no juiz de primeira instância, mais do que nos integrantes do tribunal, o sujeito mais qualificado para apreciá-lo, no tocante à sua caracterização e extensão, por estar em contato direto com a coletividade e poder sentir mais de perto o sentimento da comunidade em relação ao bem ou sistema ambiental degradado.

 


[i] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ambiental. 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 89 e ss.

[ii] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 89 e ss.

[iii] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 255.

[iv] GIROD, Patrick. La réparation du dommage écologique. Paris: LGDJ, 1974, p. 249.

[v] PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. 2ª ed. Paris: Dalloz, 1991, p. 06; RÈMOND-GOUILLOUD, Martine. Du droit de détruire – essai sur le droit de l’environnement. Paris: PUF, 1989, p. 289-290.

[vi] No CPC/1973, art. 436.

[vii] PRIEUR, Michel, op. cit., p. 06.

[viii] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 256; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 200 e ss.

[ix] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 256-257.

[x] Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em ação civil pública ambiental, ao admitir o afastamento, pela instância inferior, das conclusões do laudo pericial e o reconhecimento, no julgado objeto de reexame, da ocorrência do dano ambiental negado pelo perito (STJ – 2ª T. – AgInt no REsp 1.532.643/SC – j. 10.10.2017 – rel. Min. Assusete Magalhães).

[xi] STF – 1ª T. – Ap. Cív. 7.377-DF – j. 19.08.1943 – rel. Min. Castro Nunes – RT 150/375.

[xii] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 259.

[xiii] Art. 1º, caput, da Lei 7.347/1985, com a redação dada pela Lei  8.884/1994.

[xiv] STJ – 2ª T. – REsp 1.367.923/RJ – j. 27.08.2013 – rel. Min. Humberto Martins; STJ – 2ª T. – REsp 1.198.727/MG – j. 14.08.2012 – rel. Min. Herman Benjamin; STJ – 2ª T. – REsp 1.145.083/MG – j. 27.09.2011 – rel. Min. Herman Benjamin; STJ – 2ª T. – REsp 1.180.078/MG – j. 01.12.2010 – rel. Min. Herman Benjamin.

[xv] Isso, evidentemente, quando a prova do dano moral ambiental efetivamente se impuser no caso concreto e não se tratar de um dano moral ambiental in re ipsa. Sobre a orientação mais recente do Superior Tribunal de Justiça a respeito da caracterização e da prova dessa modalidade de dano coletivo, ver: STJ – 2ª T – REsp  1.269.494/MG – j. 24.09.2013 – rel. Min. Eliana Calmon; STJ – 2ª T. – REsp 1.410.698/MG – j. 23.06.2015 – rel. Min. Humberto Martins.

[xvi] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 261.

[xvii] TJ-SP – 2ª Câmara Civil – Ap. Cív. 205.794-1 – j. 21.06.1994 – rel. Des. Walter Moraes – JTJ-LEX 160/163.

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    é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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