Opinião

Afastamento de regras sobre licitação efetiva função social das estatais

Autores

  • Diego Vasconcelos Costa

    é advogado consultor jurídico da Telecomunicações Brasileiras S.A. e especialista em Direito material e Processual do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

  • Marcelo Lindoso Baumann

    é advogado consultor jurídico da Telecomunicações Brasileiras S.A. e especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do DF

  • Isabel Luiza dos Santos

    ~e advogada gerente jurídica da Telecomunicações Brasileiras S.A. especialista em Direito Público pela Sui Juris e especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

17 de maio de 2018, 9h05

A efetivação da função social das empresas estatais, instrumentalizada por meio do afastamento das regras de licitação para a formação de parcerias (artigo 28, parágrafo 3º, II, da Lei 13.303/2016), não é novidade no sistema jurídico brasileiro. A novidade é a segurança jurídica que o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais trouxe para este instrumento, trazendo marcos positivados para seus requisitos, e sua consequente diferenciação dos institutos da dispensa e inexigibilidade de licitação.

Destaca-se que desde antes da edição da Lei 13.303/16 já se entendia pela possibilidade de afastamento das regras gerais de licitações em casos específicos de exploração de atividade econômica no regime privado com fundamento no artigo 173, parágrafo 1º, da Constituição Federal.

9. Não se deve perder de vista, porém, que foi precisamente o regime de direito privado que motivou o Poder Público a criar um ente dessa natureza. De fato, para a exploração de atividades econômicas, a sociedade de economia mista não necessita de prerrogativas próprias do Poder Público – que, em um ambiente concorrencial, podem inclusive ensejar concorrência desleal –, mas demanda a agilidade similar aos particulares.(…)

(…)
13. Note-se um ponto importante. O fato de as sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica sujeitarem-se ao regime próprio das empresas privadas não significa que, como criaturas estatais, possam existir de maneira descompromissada do interesse público. O que é relevante assinalar, à vista dos comandos constitucionais aplicáveis, é que se estabeleceu que a melhor forma de atender ao interesse público, em certo contexto, era dar a tais sociedades a mobilidade e a liberdade de atuação de uma empresa privada. Não há, assim, uma abdicação do interesse público pela adoção de um regime privado, mas a eleição de um meio específico de atuação para satisfação das finalidades estatais. Vale dizer: flexibilidade, agilidade, competitividade e eficiência não são para tais empresas apenas qualidades desejáveis, mas requisitos vitais para que possam cumprir o seu papel.

(…)

51. Ao fim desta exposição, é possível compendiar as principais ideias desenvolvidas nas proposições seguintes:

A. As sociedades de economia mista que exploram atividade econômica têm um regime diferenciado no âmbito da Administração Pública, tendo em conta as necessidades de flexibilidade, agilidade, competitividade e eficiência que se ligam de forma direta à razão de existência dessas entidades e ao interesse público que devem realizar. Um dos aspectos centrais desse regime diferenciado é justamente a disciplina das licitações e contratos aplicável a tais empresas. Essa diretriz, que já constava do texto original da Constituição de 1988, tornou-se ainda mais explícita após a Emenda Constitucional nº 19/98.[1]

No mesmo sentido, Bandeira de Mello:

Sem dúvida, a adoção do mesmo procedimento licitatório do Poder Público seria inconveniente com a normalidade de suas atuações na esfera econômica, isto é, não seria exequível em relação aos seus rotineiros procedimentos para operar o cumprimento das atividades negociais em vista das quais foram criadas. As delongas que lhe são próprias inibiriam seu desempenho expedito e muitas vezes obstariam à obtenção do negócio mais vantajoso. Dela não haveria cogitar em tais casos.[2]

Esse também era o entendimento consolidado do Tribunal de Contas da União, o qual estabeleceu requisitos instrutórios exigidos para a formalização de contratações diretas com afastamento das regras licitatórias:

5.21. Assim, as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços devem se submeter aos princípios básicos da licitação da Lei 8.666/1993, até a edição da lei de que trata o parágrafo 1º do artigo 173 da Constituição Federal na redação dada pela Emenda Constitucional 19/98, podendo prescindir da licitação para a contratação de bens e serviços que constituam sua atividade-fim, nas hipóteses em que o referido diploma legal constitua óbice intransponível à sua atividade negocial, sem olvidarem, contudo, da observância dos princípios aplicáveis à Administração Pública, bem como daqueles insertos no referido Estatuto Licitatório. (Acórdão 1344/2015 – Plenário)

Apesar de apontados entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, a ausência de regulamentação para o disposto no artigo 173 da Constituição trazia insegurança aos gestores de empresas estatais quanto à forma e requisitos necessários à comprovação da existência do chamado “óbice intransponível” exigido pelo Tribunal de Contas da União. A efetiva implementação do afastamento das regras licitatórias necessária para o desempenho de atividades empresariais destas empresas nem sempre era eficaz e trazia riscos aos gestores, situação que tornava evidente a necessidade de regulamentação do assunto.

Para resolver este problema, a Lei 13.303/16 alterou referido paradigma, trazendo novos requisitos para o afastamento da licitação e viabilizando que empresas estatais possam firmar parcerias com uma maior segurança jurídica.

Do afastamento das regras licitatórias X hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação
A Lei 13.303/16 foi feliz ao prever em dispositivos distintos e autônomos as hipóteses de contratação direta relacionadas ao desempenho de atividade econômica pelas empresas estatais das demais hipóteses de contratação direta – dispensa e inexigibilidade de licitação – já previstas no marco legislativo anterior, isto é, na Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei 8.666/93).

Desta forma, o legislador infraconstitucional consolidou nos parágrafos 3º e 4º do artigo 28 da Lei das Estatais as hipóteses de contratação relacionadas ao desempenho de atividade finalística das empresas estatais, reservando para os artigos 29 e 30, respectivamente, as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação.

Resta evidente, assim, a natureza autônoma das hipóteses de contratação direta previstas na Lei das Estatais, devendo-se observar, para cada uma delas, o preenchimento de seus requisitos particulares e específicos.

Como consequência da impossibilidade de se estabelecer tratamento diferenciado – nem mais benéfico, tampouco prejudicial – para as empresas estatais como forma de evitar distorções concorrenciais em seu mercado de atuação, a legislação impõe, como expressão do princípio da isonomia, que estas empresas atuem em regime equivalente ao adotado pelas demais empresas privadas, situação que, por óbvio, não afasta a aplicação dos princípios que orientam a atuação da Administração Pública, quando compatível.

Trata-se, portanto, de hipótese com abrangência diversa das situações de dispensa e inexigibilidade de licitação, amparando, da mesma forma, situações com fundamento distinto.

Nesse cenário, a realização de procedimento competitivo para a consecução de determinadas atividades das estatais exploradoras de atividade econômica representa situação, em muitos casos, incompatível com o ambiente de mercado no qual a empresa está inserida. E é exatamente este o alvo da apontada norma legal.

Tal situação jamais deve ser confundida com as demais hipóteses de contratação direta previstas na legislação, eis que, ainda que seja possível vislumbrar semelhança entre os seus fundamentos – em especial quando avaliada a hipótese de inexigibilidade de licitação – há que se compreender que o interesse jurídico tutelado pelo legislador nesta situação é outro, qual seja, a preservação da isonomia, garantindo a atuação competitiva das empresas estatais.

Tem-se, portanto, o estabelecimento de hipótese de afastamento das regras licitatórias com aplicação específica para as empresas estatais, em que resta afastada a obrigatoriedade da realização de procedimento competitivo para a celebração de contratos relacionados à atividade finalística das empresas estatais.

Cabe ressalvar, no entanto, que apontado afastamento não impede que as empresas estatais, no desempenho de sua atividade finalística, realizem, quando compatível e pertinente, procedimentos específicos para justificar a seleção da empresa contratada. Não obstante, quando justificada sua inviabilidade, há expressa autorização para a contratação direta.

Assim, ainda que seja possível, sob certo enfoque, comparar as hipóteses de afastamento das regras licitatórias (artigo 28, parágrafo 3º) com as situações de inexigibilidade de licitação (artigo 30), porquanto, para as duas situações entende-se incompatível a realização de procedimento licitatório, tem-se que para a situação prevista no parágrafo 3º do artigo 28 a inviabilidade não decorre da impossibilidade de competição entre eventuais interessados, mas da inviabilidade do próprio procedimento competitivo.

Dos requisitos para o afastamento das regras de licitação com fundamento no artigo 28, parágrafo, 3º, inciso II
O artigo 28, parágrafo 3º, II da Lei 13.303/16 prevê o afastamento das regras de licitações “nos casos em que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo”.

Nesse viés, é sabido existirem diversas formas de estruturação de grupos econômicos, sem necessariamente haver um reflexo societário sobre eles, para lidar com as mais diversas situações fáticas e econômicas que surgem na atuação empresarial e na concorrência nos mercados privados. Diante de tal contexto, os agentes privados atuam por meio dos mais diversos formatos de parcerias, aspecto que não pode ser ignorado pelas empresas estatais, com obrigação de atuar no mercado em igualdade de condições.

O direito não pode esquecer-se da realidade dos fatos, devendo as normas jurídicas ser interpretadas de forma a compatibilizar a finalidade da existência das empresas estatais com seu regime jurídico próprio. Especificamente, satisfeitos determinados requisitos, deve haver uma forma de contratação equiparada àquela dos agentes puramente privados do mercado.

Vejam-se as lições de Marçal Justen Filho sobre o afastamento de licitação pela Lei 13.303/2016:

12.2 A seleção de parceiros em relações de cooperação
A segunda hipótese de inaplicabilidade de licitação se refere aos casos de seleção de parceiro para empreendimentos associativos, nas hipóteses em que atributos pessoais apresentem relevância.

12.2.1 A conjugação de esforços com outros agentes privados
A exploração de atividade econômica envolve, frequentemente, a necessidade de conjugação de esforços com outros agentes econômicos, de modo temporário ou permanente.

12.2.2 A associação de recursos e de capacitações
A obtenção de um resultado de sucesso, nas hipóteses de parcerias com terceiros, depende, nesses casos, da escolha de parceiro adequado. Isso envolve não apenas a titularidade de recursos econômicos, mas também a presença de outros requisitos, inclusive a expertise e o domínio das técnicas pertinentes ao objeto a ser executado em conjunto. Em muitos casos, o sucesso da associação pressupõe níveis comuns de experiência, práticas empresariais similares, situações de mercado específicas.

(…)

12.2.4 As parcerias
O dispositivo alude à formação e à extinção de parcerias e outras formas associativas. A expressão “parceria” deve ser interpretada de modo amplo, para abarcar as soluções organizacionais de atuação conjugada, de cunho cooperativo, ainda que versando sobre objeto delimitado e com duração temporária[3].

Ou seja, firmar uma parceria com base em tal permissivo legal exige (i) escolha de parceiro associada a características particulares; (ii) oportunidade de negócio definida e específica; e (iii) justificativa da inviabilidade de procedimento competitivo. Acerca do último requisito, destaca-se que parte da doutrina[4], entende que a demonstração da inviabilidade de procedimento competitivo decorra, na verdade, da confirmação dos dois primeiros requisitos, sendo, portanto, mera consequência deles.

De fato, parece-nos razoável o entendimento de que, uma vez preenchidas as premissas exigidas pelo inciso II do artigo 28 em sua parte inicial, isto é, a escolha do parceiro esteja vinculada às suas características particulares e a parceria esteja vinculada a oportunidade única de negócios, naturalmente não seja factível a realização de procedimento competitivo.

Acerca dos dois primeiros requisitos, resta ao gestor estatal, dentro da discricionariedade que o dispositivo legal lhe delegou, motivar adequadamente as razões da escolha da parceira e qual a oportunidade de negócio que se pretende atender.

Com a Lei 13.303/16 positiva-se, de forma inquestionável, a possibilidade de empresas públicas e sociedades de economia mista formarem parcerias para atuação no mercado privado, afastando-se as regras de licitação, mediante: (i) identificação da oportunidade de negócios específica e definida; (ii) seleção de parceiro considerando-se suas características particulares; e (iii) formalização da inviabilidade de procedimento competitivo.

Em conclusão, compreendida a existência de funções sociais relevantes sob a responsabilidade das empresas estatais na implementação de interesses coletivos por meio de sua atuação empresarial, deve o sistema jurídico fornecer instrumentos aptos a permitir sua efetivação.

Um desses instrumentos fruto de inovação legislativa que consolida entendimento doutrinário e jurisprudencial, encontra-se previsto no disposto no artigo 28, parágrafo 3º, II da Lei 13.303/16. Trata-se da formação de parcerias estratégicas pelas referidas empresas, tendo por requisitos a identificação da oportunidade de negócios específica e definida, a seleção de parceiro considerando-se suas características particulares e a consequente inviabilidade de realização de procedimento competitivo.

A efetiva adoção deste instrumento legal e a forma adequada de sua utilização não podem ser ignoradas pelos operadores do direito, sob pena de impedir-se o alcance dos relevantes interesses coletivos que fundamentam a existência das empresas estatais.


Referências

BARROSO, Luis Roberto. Parecer datado de 9 de janeiro de 2006. Disponível em: <http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/parecer-luis-roberto-barroso-procedimento.pdf>. Acesso em 16/05/2018.

COÊLHO, Carolina Reis Jatobá. Inaplicabilidade do Capítulo I da Lei nº 13.303/2016 à exploração direta de atividade finalística e à contratação de terceiros para estabelecimento de parcerias visando oportunidade de negócios. Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte, ano 6, n. 11, jan./jun. 2017.

DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012.

JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Artigo: Aplicabilidade da Lei 8.666/93 às contratações por inexigibilidade nas atividades-fim das empresas estatais exploradoras de atividade econômica. Disponível em <http://www.canalabertobrasil.com.br/noticias/artigo-aplicabilidade-da-lei-8-66693-contratacoes-por-inexigibilidade-nas-atividades-fim-das-empresas-estatais-exploradoras-de-atividade-economica/>. Acesso em 16/05/2018.

JUSTEN FILHO, Marçal. A contratação sem licitação nas empresas estatais. In: Estatuto Jurídico das Empresas Estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015.

SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Paganini de. Licitação nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Contratações Públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico da Telecomunicações Brasileiras S.A. e especialista em Direito material e Processual do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

  • é advogado, consultor jurídico da Telecomunicações Brasileiras S.A. e especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do DF

  • ~e advogada, gerente jurídica da Telecomunicações Brasileiras S.A., especialista em Direito Público pela Sui Juris e especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

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