Opinião

Reflexões sobre o Funrural: julgamentos, derrubada de vetos e Refis

Autor

  • Leonardo Furtado Loubet

    é advogado especialista e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) da Faculdade Atame e da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Membro do Comitê Jurídico e membro-fundador do Comitê Tributário da Sociedade Rural Brasileira.

17 de maio de 2018, 6h06

1. Brevíssima introdução
É indiscutível que o produtor rural vive um momento de incertezas diante dos constantes questionamentos envolvendo o Funrural, em especial depois do julgamento pelo STF no ano passado. Pensando nisso, o intuito deste texto é abordar, de forma clara e direta (portanto, sem adentrar em aspectos teóricos mais aprofundados), as principais dúvidas sobre esse tema, de forma a auxiliar os profissionais que atuam na área no que concerne à orientação a ser repassada aos produtores.

2. O tormentoso Funrural e o julgamento do STF
O Funrural é um tributo antigo e todo produtor o conhece. Trata-se de uma exação que incide sobre a venda da produção (grãos, gado etc.) e que, por força de lei, tem que ser descontada pelas empresas adquirentes do valor a pagar ao produtor (artigos 25 e 30, IV, da Lei 8.212/91). Ou seja, quem arca economicamente com o valor do Funrural é o produtor, que recebe apenas o valor líquido da venda, mas quem efetivamente recolhe aos cofres públicos esse valor descontado da pessoa física é a empresa adquirente.

Durante muitos anos, houve discussões no Poder Judiciário sobre o Funrural, até que, em 2010, o Supremo Tribunal Federal entendeu que essa contribuição era inconstitucional (RE 363.852). Voltou a dizer isso em 2011 (RE 596.177). Acontece que nesses julgamentos foram analisadas leis de 1992 e de 1997, que alteraram a Lei 8.212/91 (leis 8.540/92 e 9.528/97). Porém, em 2001 houve uma nova mudança na Lei 8.212/91 (por força da Lei 10.256/01), através da qual a União, vendo que corria risco de ser derrotada no Judiciário, tentou “corrigir” os erros das leis anteriores, buscando convalidar essa sistemática no período pós-EC 20/98 (que alterou o artigo 195 da CF, supostamente avalizando a incidência do tributo sobre a “receita” dos produtores).

Os produtores rurais voltaram a questionar o tributo, afirmando que essa Lei 10.256/01 não alterava o quadro de inconstitucionalidade em nada. E foi somente em março de 2017 (portanto, 16 anos depois) que o STF analisou o caso, agora mudando de entendimento e afirmando, por 6 votos a 5, que o Funrural, em razão da EC 20/98 e da Lei 10.256/01, é constitucional e pode ser exigido.

3. Os problemas que não foram resolvidos pelo STF
Embora o STF tenha julgado constitucional o Funrural, vários problemas ficaram em aberto, causando ainda muita insegurança no setor. Por exemplo: a) a partir de quando valerá essa decisão, apenas a partir desse julgamento ou desde lá de trás, em 2001?; b) com relação aos valores que não foram recolhidos, quem terá de pagar essa conta, os produtores pessoas físicas ou as empresas adquirentes?; c) quanto às operações novas, realizadas hoje em dia, são os produtores que têm que recolher o Funrural ou isso vai continuar sendo feito pelas empresas?; d) e como ficam as ações judiciais que estavam em andamento movidas pelos produtores ou mesmo por entidades representativas das empresas adquirentes?

São vários e importantes problemas que não foram resolvidos. Por isso mesmo, foram interpostos pelas partes envolvidas embargos de declaração em face do acórdão, pleiteando que o Supremo esclareça esses pontos, o que significa dizer que, tecnicamente, o caso ainda não está encerrado.

4. A postura assumida pelo governo federal: lançamento do Refis do Funrural
Como a decisão do STF não esclareceu todos os problemas, e como o caso ainda não foi definitivamente julgado, o governo federal lançou em 2017, por medida provisória (MP 793/17), o Refis do Funrural, na tentativa, na prática, de que todos os produtores aderissem e pagassem e, com isso, que a situação fosse resolvida. Porém, houve um forte boicote por entidades de setor, porque, no entender de seus representantes, o parcelamento não era justo e não atendia a todas as reivindicações dos produtores.

Com isso, a medida provisória não foi votada pelo Congresso Nacional e perdeu sua vigência. A partir daí foi discutido no Congresso um novo texto, com novas e melhores condições, e então o texto foi aprovado próximo ao final de dezembro. O presidente sancionou a lei em 10 de janeiro de 2018 (convertendo-se na Lei 13.606/18) e estabeleceu que o prazo de adesão ao Refis iria até 28 de fevereiro (depois esse prazo foi prorrogado até 30 de abril pela Lei 13.630/18 e, mais adiante, prorrogado para 30 de maio de 2018 pela MP 828/18). Porém, o presidente vetou vários artigos que traziam mais vantagens aos produtores (como a anistia total de multas e juros), de modo que esses vetos foram encaminhados ao Congresso para análise, o que é mencionado abaixo.

5. Como fica o Funrural a partir da nova lei?
De acordo com a nova lei (Lei 13.606/18), a alíquota específica do Funrural foi reduzida de 2% para 1,2% (mas estão mantidos os percentuais de 0,1% de SAT – Seguro de Acidente do Trabalho e de 0,2% para o Senar, de modo que, se antes o produtor pagava, no total, 2,3%, agora pagará 1,5%).

Além disso, a grande novidade trazida por essa lei é que o produtor poderá optar por recolher o tributo sobre a folha de salário de seus funcionários ou então pelo resultado de sua produção. Assim, em regra, para os médios e grandes produtores, valerá optar por recolher pela folha de salários, porque usualmente o total recolhido sobre a produção (antes 2,3% sobre o total das vendas, hoje 1,5%) é muito maior do que o encargo incidente sobre a folha de salários (em média 20% calculados sobre o total pago aos funcionários da fazenda). Entretanto, essa regra opcional só valerá a partir de 1º de janeiro de 2019; para este ano, foi mantida a tributação sobre a produção.

6. A derrubada dos vetos do projeto original da lei do Refis do Funrural
Depois da publicação da lei, o que houve de novidade foi o seguinte: como o projeto de lei original foi sancionado apenas parcialmente pelo presidente, com vários vetos, esses vetos, de acordo com a Constituição, tinham que ser examinados pelo Congresso. E ao Congresso caberia concordar com os vetos ou derrubá-los. Foi exatamente isso o que ocorreu no dia 3 de abril.

Quando examinou a mensagem de veto do presidente da República, o Congresso Nacional derrubou todos os vetos, dentre eles aqueles que previam a possibilidade de adesão ao Refis do Funrural com 100% de desconto de multas e encargos legais (que chegam a 20%) e também o dispositivo que reduziu a alíquota das agropecuárias (pessoas jurídicas) de 2,5% para 1,7%. Diante disso, em 17 de abril, o presidente da República não teve alternativa senão promulgar a lei na íntegra, incorporando ao texto da Lei 13.606/18 os vetos que foram derrubados.

7. Como ficam as regras do Refis depois da derrubada dos vetos
Frente ao contexto da derrubada dos vetos, o Refis do Funrural abrangerá todos os valores de Funrural que não foram recolhidos envolvendo operações realizadas até 30 de agosto de 2017 (quando a decisão do STF foi publicada), os quais poderão ser incluídos no parcelamento, até cinco anos para trás, quando o tributo decai (isso salvo para os produtores que têm ações judiciais, pois aí tem que ser feita uma análise caso a caso).

Para o produtor pessoa física, a lei prevê uma entrada de, no mínimo, 2,5% da dívida consolidada, que pode ser paga em duas parcelas, e o restante em até 176 parcelas, correspondente a 0,8% da média mensal da receita bruta da comercialização da produção no ano anterior, com redução de 100% dos juros (conforme já constava na lei publicada) e agora também 100% das multas de mora (que podem chegar a 20%), de ofício (que podem chegar a 75%) e de encargos legais (que também podem chegar a 20%), isso em razão da derrubada dos vetos.

8. Aderir ou não ao Refis?
Essa é a pergunta mais difícil de ser respondida. A resposta é difícil porque há uma série de variáveis que devem ser levadas em conta, individualmente, por cada um: a) se o produtor tem ou não liminar; b) se a empresa para quem ele vende tem ou não liminar; c) se os valores que não foram recolhidos são ou não expressivos; d) se o produtor tem um perfil mais conservador e quer pagar para evitar dor de cabeça no futuro, ou então se ele prefere aguardar para ver qual será a solução final dessa discussão, com a chance de não pagar nada; e) e qual será o posicionamento da Receita Federal, se cobrará os valores passados dos produtores ou então das empresas adquirentes.

Vale lembrar que há, ainda, duas questões bastante importantes a serem analisadas pelo Supremo Tribunal Federal: 1) se a obrigatoriedade de pagar o Funrural vai valer apenas a partir do julgamento em 2017 ou então retroativamente (lembrando que antes de 2017 o STF dizia que o Funrural era inconstitucional); 2) e se quem tem que recolher é o produtor ou a empresa adquirente. Especificamente quanto a este último item, tudo leva a crer que o posicionamento da Receita Federal será no sentido de cobrar as empresas, e não os produtores, porque eram elas que tinham o dever de reter e recolher os valores.

Brasil afora a Receita Federal vem autuando as empresas, e não os produtores. Isso não quer dizer que não possa haver uma mudança nessa postura dos fiscais, porque ainda se está em uma fase recente, de incerteza na interpretação do próprio Fisco, depois do julgamento do STF. Justamente por isso tudo a decisão de aderir ou não ao Refis tem que ser muito bem avaliada por cada produtor, que deve examinar o valor que eventualmente deixou de ser recolhido (agora sem a incidência de juros e multas) e concluir se paga ou não essa conta.

9. A situação jurídica dos produtores e dos adquirentes: com e sem liminar e com ou sem desconto
Da perspectiva jurídica, como já mencionado acima, o contribuinte do Funrural é o produtor. Porém, a lei estabelece que é o adquirente (ou seja, a empresa, na condição de sub-rogada) que tem que fazer o desconto do valor e pagar o tributo aos cofres públicos.

É do conhecimento de todos que vários produtores ingressaram com ações judiciais buscando o reconhecimento da inconstitucionalidade do Funrural, mas que também as empresas adquirentes propuseram ações. Diante desse quadro, para aqueles que têm ações judiciais, a situação provável é a seguinte: a) se o produtor tem (ou teve) uma liminar que proibia a empresa adquirente de descontar o valor do Funrural, o eventual resultado final desfavorável da ação significará que a Receita Federal irá cobrar dele o valor que não foi pago, e não da empresa adquirente, porque, nesse caso, a empresa estava impedida judicialmente de fazer o desconto; b) mas se quem tem (ou tinha) liminar é a empresa adquirente, sem que o valor fosse descontado do produtor, não por pedido ou exigência dele, mas, sim, por uma ação judicial movida pelo adquirente, aí, nessa hipótese, será a empresa que terá que responder pelos valores não recolhidos.

Em síntese, arcará com o eventual insucesso da ação judicial aquele que a moveu. Vale frisar, porém, que o julgamento do STF no ano passado não implicará necessariamente no insucesso da causa, seja porque o STF ainda tem questões a resolver (mencionadas acima), seja porque no caso concreto podem ter sido suscitados outros temas.

Outra questão relevante diz respeito ao desconto ou não dos valores pela empresa adquirente para os casos em que não há ação judicial nem do produtor nem do adquirente: a) se a empresa descontou do produtor o Funrural do valor da venda e se, por algum motivo, não pagou o tributo, aí essa importância será cobrada exclusivamente da empresa, e não do produtor, já que houve o desconto da quantia do produtor; b) no entanto, se por algum motivo (lembrando, desde que sem ação judicial de um ou de outro) a empresa não descontou o valor do produtor (por exemplo, acreditando que o Funrural já estava sepultado), aí esse será o cenário mais complicado a dirimir. Isso porque economicamente o valor é devido pelo produtor (que tem que sofrer o desconto), mas juridicamente é devido pelo adquirente (que tem que descontar e recolher).

Se o valor não foi descontado sem ordem judicial proibitiva, o produtor vai dizer que esse é um problema da empresa adquirente, pois cabia a ela descontar. Por outro lado, a empresa adquirente vai sustentar que errou ao deixar de descontar, podendo ser multada por isso, mas que o valor do tributo tem que ser cobrado do produtor, cabendo a ela pagar apenas a multa por não ter feito a retenção.

Esse quadro se agrava porque uma das discussões pendentes no STF diz respeito à continuidade ou não da obrigatoriedade de retenção, pois o STF já tinha julgado inconstitucional a legislação que prevê o dever de descontar (as leis 8.540/92 e 9.528/97) e a lei posterior (Lei 10.256/01), que o Supremo declarou constitucional, nada falou a respeito, ou seja, não “ressuscitou” o dever de reter. A tendência é que a Receita Federal cobre tudo das empresas adquirentes, mas as empresas terão um argumento forte para questionar esse dever, abrindo mais um capítulo nesse litígio envolvendo o Funrural, que já se arrasta há décadas.

10. Próximos capítulos
Com a derrubada dos vetos e com a prorrogação do Refis para o próximo dia 30, a Receita Federal terá que adaptar seus sistemas internos e, eventualmente, editar nova normatização, a fim de contemplar esses descontos. Tudo indica, no entanto, que não haverá mais prorrogação de prazo nem edição de novo programa diferenciado para quitação desses valores. Isso porque, a partir do ano que vem, a forma de recolhimento será opcional por parte do contribuinte (recolhendo pela folha de salários ou pela produção), de modo que em relação ao futuro o quadro litigioso deve ser reduzido drasticamente. O que vai sobrar em discussão é o passado. E como esse deve ser o último Refis envolvendo o Funrural, o produtor terá que decidir, bem assistido pelos profissionais que lhe atendem, os quais devem sopesar todos os aspectos tratados neste breve ensaio, se adere ao Refis, assumindo essa conta; se aguarda o encerramento do caso no Supremo, porque há pedido de modulação de efeitos; ou então se avalia que esse será um problema das empresas adquirentes, e não dele.

O Brasil, infelizmente, vive momentos de muita insegurança jurídica. Sobreviver nesse caos não é fácil para ninguém.

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    é advogado, especialista e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), da Faculdade Atame e da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Membro do Comitê Jurídico e membro-fundador do Comitê Tributário da Sociedade Rural Brasileira.

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