Interesse Público

Lei do Desarmamento estabeleceu terrível distinção entre brasileiros

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

17 de maio de 2018, 8h01

Spacca
“A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim.”
John Donne

Atendendo a um honroso convite do professor Conrado Hubner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, participei no dia 10 de maio de um debate público sobre Violência e Desarmamento, tendo como opositora a Dra. Carolina Ricardo, do movimento Sou da Paz. O debate se desenvolveu em alto nível, com intensa participação de alunos e outras pessoas interessadas.

Como era de se esperar, fui sepultado por uma avalanche de estatísticas, pois o Sou da Paz tem uma equipe de especialistas trabalhando em tempo integral sobre o tema. Neste breve artigo pretendo apenas fazer algumas considerações pessoais, com foco na pessoa humana, no cidadão, nos brasileiros que não estão muito interessados em estatísticas (que, como se sabe, servem para provar qualquer coisa), mas que sofrem no dia a dia os efeitos do estado de insegurança e que choram pela perda de familiares e amigos.

A violência é inerente ao ser humano e está presente, em maior ou menor grau, nas sociedades humanas em geral. Mas é preciso distinguir entre o uso da força legítimo e ilegítimo. O politicamente correto no Brasil é sempre condenar a violência policial, ignorando o fato de que a força pública existe para defender os cidadãos e seus direitos contra a violência arbitrária e criminosa.

O ideal seria que a segurança pública funcionasse de tal maneira que o cidadão não precisasse cuidar da sua proteção pessoal, atendendo a um instinto básico natural, e exercitando um direito constitucional explícito que lhe está sendo negado pela malsinada Lei do Desarmamento, Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003.

Com efeito, o art. 5º da Constituição Federal afirma que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Em seus incisos, há expressa garantia da incolumidade pessoal, da inviolabilidade do domicílio e da dignidade da pessoa humana.

É absolutamente elementar que a concretização desses fins depende sempre da disponibilidade dos meios para isso necessários. Garantia constitucional não é uma declaração romântica, de algo que seria desejável, mas, sim, configura deveres para o Estado e direitos para todo e qualquer cidadão. Dadas as inevitáveis limitações da segurança pública, não é juridicamente possível privar o cidadão de meios para o exercício da autodefesa, da legítima defesa.

“Dizer que não precisamos de armas porque há a polícia é como afirmar que não precisamos de extintores de incêndio porque há o corpo de bombeiros”. (RODRIGO CONSTANTINO, Esquerda Caviar – A hipocrisia dos artistas e intelectuais no Brasil e no Mundo, Ed. Record, 2013, p. 220).

Não obstante a clareza do texto constitucional, a famigerada Lei do Desarmamento estabeleceu como regra geral a proibição da posse e do porte de armas, com algumas exceções, como os membros das Forças Armadas e das corporações policiais. Tais exceções foram alargadas ao longo do tempo, mas sempre como exceções.

O cidadão comum, que eventualmente quisesse ter uma arma, teria de se submeter a uma verdadeira ordália burocrática altamente onerosa, devendo comprovar ser vítima de ameaça à sua integridade física e ficando na total dependência de decisão absolutamente discricionária da autoridade federal competente. Não há sombra de dúvida de que essa lei estabeleceu uma terrível distinção entre brasileiros: os que podem e os que não podem desfrutar das garantias expressas do Art. 5º da CF.

A Lei do Desarmamento estabelecia em seu art. 35 que “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei”, mas, em seu § 1º dispunha que “Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.”

Note-se que, além da proibição geral de ter e portar armas, ficaria proibida a comercialização de armas e munições. Salta aos olhos de qualquer pessoa minimamente esclarecida que o conjunto dessas proibições trazia um enorme incentivo ao comércio ilegal e, acima de tudo, representava enorme proteção a assaltantes, estupradores e delinquentes violentos em geral. Diante dessa clamorosa evidência, no referendo realizado em 2005, dois terços dos brasileiros se manifestaram contra a proibição.

Entretanto, o claríssimo resultado do referendo foi simplesmente ignorado pelo STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.112-1 cujo relator, ministro Ricardo Lewandowski, apreciou apenas alguns aspectos pontuais, como se o referendo fosse um nada jurídico, que nada tinha a ver com o “Todo poder emanada do povo”, constante do parágrafo único do art. 1º da CF.

A proibição de comercialização, objeto do referendo, estava umbilicalmente e incontestavelmente ligada à proibição geral de posse e porte de arma de fogo. Num simples exercício de lógica formal, fica claro que, uma vez derrubada a proibição de comercialização, não tinha sentido algum manter a proibição geral de posse e porte. Ou seja: entendem maliciosamente alguns que o referendo liberou a comercialização: vender pode, mas ninguém poderia comprar armas de fogo, salvo aqueles brasileiros mais iguais que os outros, comtemplados nas exceções constantes da lei.

Os defensores da maior proteção aos bandidos alegam que armas foram feitas para matar, ignorando que a imensa maioria das pessoas autorizadas ao porte de arma (militares e policiais) nunca mataram ninguém. Na verdade, armas sempre serviram principalmente como elemento de dissuasão. Si vis pacem, para bellum, diziam os romanos.

Olhando o assunto pela perspectiva do bandido, fica evidente que é muito mais seguro e produtivo exercer essa “profissão” onde a população está desarmada, do que onde talvez possa haver alguém armado. A função dissuasória da posse e porte de armas fica muito clara quando se enfoca a função dos guardas das agências bancárias. Eles não ficam escondidos, esperando o assaltante entrar para, então, atirar e matar; a presença ostensiva da guarda armada visa desencorajar, dissuadir, eventuais assaltantes.

O fato absolutamente incontestável é que a Lei do Desarmamento incrementou a violência. As facções criminosas, atualmente, usam diariamente e ostensivamente fuzis e metralhadoras, que entram com muita facilidade pelos portos e fronteiras secas do Brasil. O roubo e o latrocínio já deixaram de ser notícia, salvo alguma circunstância excepcional. As mulheres são as maiores vítimas da implícita condenação do exercício da legítima defesa, pois o número de assédios sexuais e estupros é exponencial e a violência doméstica não diminuiu.

Numa perspectiva estritamente jurídica, é certo que não cabe ao Estado proibir por proibir. A regra geral no Direito brasileiro é de que qualquer restrição de direito deve observar as garantias constitucionais. Não pode a lei retirar do cidadão direitos constitucionalmente afirmados e qualquer limitação a tais direitos somente pode ocorrer se for determinada por uma finalidade de interesse público evidente e inquestionável.

“Todo condicionamento é constrangimento sobre a liberdade. Esta, sendo valor protegido pelo Direito, só pode ser comprimida quando inevitável para a realização de interesses públicos. Daí a enunciação do princípio da mínima intervenção estatal na vida privada.” (CARLOS ARI SUNDFELD, Direito Administrativo Ordenador, Malheiros Editores, 1993, p. 68.)

O fato incontestável é que nos anos que se seguiram à edição da Lei do Desarmamento a violência ilegítima só aumentou. O medo e a enorme sensação de insegurança é uma realidade dominante na sociedade brasileira. Os eventuais ou supostos benefícios do desarmamento não se concretizaram; ao contrário, salvo algumas exceções (estado de São Paulo, mas não em todos os municípios) a criminalidade e o morticínio, em padrões indecentes e inaceitáveis, são realidades que a ordem jurídica não pode ignorar.

“O Direito não pode ignorar a realidade social sobre a qual incide. Uma regra que, indubitavelmente, não está realizando as finalidades públicas às quais se destina, ou pior; as está contrariando, não pode, ser aplicada aos casos concretos em que tenha esses efeitos.” (ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, Ensaio de uma Visão Autopoiética do Direito Administrativo, in Revista de Direito Público da Economia RDPE, 04, out./dez. 2003, Editora Fórum, Belo Horizonte, p. 10).

Em resumo, o dever do Estado de prover a segurança pública não significa proibição da segurança privada. Defender-se ou não, ter ou não ter uma arma, reagir ou não contra quem invadir sua casa ou seu estabelecimento é uma opção pessoal, que vai depender das circunstâncias de cada caso.

Não sou da paz dos cemitérios. Sou da paz dos vivos, livres e seguros, iguais perante a lei. A segurança pessoal foi elitizada: tem quem pode pagar por ela. Os maiores defensores do desarmamento ou não vivem no Brasil, ou não dispensam suas guardas particulares armadas. Fique claro, porém, que não defendo o armamento geral e irrestrito, nem o matai vos uns aos outros. Num próximo artigo cuidarei do Projeto de Lei 3.722/2012 que busca revogar a Lei do Desarmamento e restaurar os direitos e garantias por ela aniquilados.

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