Opinião

Investigação prospectiva de delito de associação criminosa é ilegítima

Autor

  • Gabriel Habib

    é defensor público Federal. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Professor da pós-graduação da FGV da PUC-RJ do Ibmec e da Universidade Cândido Mendes. Professor da EMERJ ESMAFE/PR FESUDEPERJ FESMP/MG CERS Forum e Supremo.

17 de maio de 2018, 6h33

É consabido que o objetivo da investigação criminal é a formação do conhecimento acerca de um crime praticado, para que se possa reunir elementos de prova que deem suporte à investigação criminal. A partir de um fato criminoso praticado, dá-se início a uma série de atos estatais investigatórios levados a efeito pela autoridade encarregada da persecução penal para que se chegue à conclusão acerca da materialidade e da autoria do delito praticado.

A persecução penal tem como finalidade a intervenção estatal para a obtenção de certeza, positiva ou negativa, do fundamento da pretensão punitiva derivada de um delito, um fato concreto, e destinado à aplicação de suas consequências jurídicas[1]. Trata-se de uma reconstrução histórica de um fato pré-existente, baseada e desenvolvida em raciocínio dedutivo, a partir de elementos pré-existentes no local onde o delito foi praticado, que formam o conjunto de vestígios deixados pela prática da infração penal, partindo-se do universal para o particular.

O modelo de investigação prospectiva, utilizado para investigar o delito de associação criminosa, não tem como objetivo a reconstituição histórica do fato delituoso, e sim a atividade presente e a antevisão do futuro. De forte pendor preventivo, a investigação prospectiva permite o conhecimento sobre uma realidade “que não constitui um passado estático que se pretende fixar ou reproduzir no tempo, mas sim uma realidade dinâmica e contemporânea, uma actividade em curso que se pretende interromper e neutralizar”[2].

Não obstante haja argumentos relevantes para a defesa desse modelo investigativo, percebe-se que ele causa uma inversão no modelo tradicional de investigação, a gerar exatamente a inversão de papéis, ou seja, ao invés de a investigação criminal ser feita a partir da prática de um delito com a finalidade de colheita de elementos nos quais se fundará a acusação, a investigação serve de meio para a obtenção de informações sobre delitos que serão praticados no futuro. Troca-se a atividade investigatória retrospectiva pela prospectiva.

Sustenta-se que a simples associação de pessoas já apresenta um perigo suficientemente grave para conturbar a paz pública e que o encontro das vontades individuais dos participantes dá origem a uma “realidade autônoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros” e resulta em um “centro autônomo de imputação fática das acções prosseguidas ou a prosseguir em nome e no interesse do conjunto”[3], tendo em vista que a associação criminosa é uma fonte de perigo incrementado, uma vez que ela desenvolve uma dinâmica autônoma, que tem o condão de, por um lado, reduzir as barreiras inibitórias individuais e, por outro, reduzir de modo decisivo as dificuldades técnicas para a prática de crimes[4].

Entretanto, se é verdade que o tipo penal de associação criminosa traz como especial fim de agir a finalidade de cometer delitos, também é verdade que a investigação criminal que é feita sob esse delito tende a evitar a prática desses delitos futuros. Em outras palavras, a investigação criminal destina-se a interromper a associação criminosa, com a neutralização dos agentes, para evitar que venham a praticar outros delitos.

Deve ser questionado se esse modelo de investigação prospectiva é compatível com os princípios e dogmas do Direito Penal e se o delito de associação criminosa constitui um permissivo para a sua implementação, com visão prospectiva, como forma de obtenção de elementos de prova de futuros delitos sobre os quais não se tem sequer a certeza da efetiva ocorrência.

É verdade que uma associação criminosa pode representar uma fonte de perigo. Entretanto, a intervenção estatal somente pode ser legítima se houver um perigo real e concreto ao bem jurídico. A não ser assim, a simples invocação da configuração de uma associação de pessoas seria o suficiente para, de forma arbitrária, ensejar uma ilegítima interferência dos órgãos estatais no direito fundamental à liberdade, entre outros.

Sob o pretexto da suposta acentuada periculosidade de uma associação criminosa, inverte-se a ordem natural da persecução penal por conta da satisfação de um interesse estatal abstrato e hipotético, exercido por meio do jus puniendi. Com efeito, a ordem natural da persecução penal é a prática de atos investigatórios a partir da prática de um delito, isto é, a investigação policial, como busca de um elemento de prova da existência de um delito e de indícios de autoria, surge a partir da existência da prática de um delito. Primeiro, há a prática de um delito; depois, inaugura-se a investigação criminal.

Na investigação prospectiva realizada na associação criminosa ocorre justamente o contrário: primeiro, leva-se a efeito a intervenção policial a partir da reunião de pessoas, para, com isso, tentar encontrar elementos de prova que confirmem a futura prática de delitos por parte da associação criminosa. A existência de uma associação criminosa funciona como uma porta aberta para a investigação policial de futuros delitos que ainda não foram praticados ou que sequer chegaram à fase da preparação.

É evidente que, se houver indícios da prática de um crime, deverá haver a investigação policial. O que não é plausível é essa espécie de “carta branca” para a investigação da associação criminosa, pois não se investigam delitos que já ocorreram, mas, sim, delitos que ainda — talvez — ocorrerão, com base em um juízo hipotético.

Essa indesejada inversão da ordem natural da persecução penal parece presa à ideia de que o processo é apenas um meio para a satisfação do direito material, ideia essa que não mais se coaduna com o processo penal moderno. Com efeito, o processo penal moderno não pode mais ser encarado como mero instrumento para a aplicação do Direito Penal, para a satisfação do direito material, e sim como verdadeiro meio de garantia e de efetivação dos direitos humanos fundamentais do investigado, que funcionam como escudos que estão a protegê-lo contra o arbítrio estatal.

O processo penal não é um instrumento colocado somente a serviço da única finalidade de satisfação da pretensão punitiva estatal. O processo deve desempenhar a sua dupla função de, por um lado, tornar viável a aplicação da pena e, de outro, servir de instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais[5], tendo em vista que o Direito Processual não é outra coisa senão o Direito Constitucional aplicado[6].

A admissão desse modelo de investigação criminal prospectiva significa transformar o Direito Penal em um Direito Penal preventivo, isto é, um instrumento de controle preventivo, que terá a sua incidência independentemente de qualquer lesão a bens jurídicos. Trata-se de evidente instrumento de neutralização dos agentes, como forma de impedir que permaneçam soltos e pratiquem crimes, como forma de controle prévio de delitos que sequer foram praticados ou que poderão não ocorrer.

O Direito Penal surgiria como um raio neutralizador que visaria evitar que aquela associação de pessoas chegasse a praticar qualquer outro delito futuramente. Note-se que a investigação policial não teria como finalidade a reconstituição histórica do fato delituoso, mas, sim, a antevisão do futuro, e, a partir de uma visão prospectiva, figurar-se-ia hipoteticamente a prática de delitos futuros e, antes que eles viessem a ocorrer, neutralizar-se-iam os agentes como forma de interromper a sua atividade e de impedir que eles viessem a praticar os delitos para os quais estariam reunidos.

Com esse sistema de investigação, não há o que ser investigado, uma vez que ainda não há delito praticado. Na realidade, o delito a ser investigado ainda não ocorreu ou então sequer ultrapassou a fase da preparação. E, com isso, repita-se: o delito de associação criminosa serviria somente como uma porta de entrada para o Estado proceder à investigação criminal de delitos que ainda não ocorreram. Trata-se, portanto, de uma investigação reflexa, pois, sob o pretexto de investigar-se o delito de associação criminosa, busca-se a investigação de um delito inexistente, que somente será — se realmente for — praticado no futuro.

Tudo isso faz com que esse modelo de investigação criminal prospectivo encerre o exercício de uma finalidade de prevenção que não é típica do Direito Penal, destinado a evitar a prática de crimes futuros, com a tentativa de sua legitimação a partir da investigação de uma associação criminosa, não para investigar própria associação (pois dela já se tem notícia e prova de sua existência), mas, sim, para a investigação dos delitos que possam vir a ser praticados pela associação criminosa, desconexo de qualquer lesão ao bem jurídico tutelado.

Portanto, temos por ilegítima a técnica de investigação prospectiva desenvolvida nesse sistema de investigação criminal para os delitos associativos que tenta transformar o Direito Penal em um instrumento de controle preventivo.


[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. I. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 29.
[2] BRAZ, José. Investigação criminal. A organização, o método e a prova. Os desafios da nova criminalidade, 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 337.
[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Comentário Conimbricense ao Código Penal. Parte Especial II, artigos 202º a 307º, dirigido por Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pp. 1161-1162.
[4] RUDOLPHI, Hans-Joachim. Verteidigerhandlen als Unterstützung einer Kriminellen oder terroristischen Vereinigung i. S. der §§ 129 und 129a StGB. Hans-Joachim Rudolphi, in Festschrift für Hans-Jürgen Bruns zum 70. Geburtstag. Herausgegeben von Wolfgang Frisch und Werner Schmid. Köln Berlin, Bonn, München: Carl Heymanns Verlag KG, 1978, pp. 317, 319 e 321.
[5] LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da instrumentalidade Garantista), 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 37.
[6] HASSEMER, Winfried. A segurança pública no Estado de Direito. Tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos. Lisboa: AAFDL, 1995, p. 102.

Autores

  • é defensor público federal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa (Portugal) e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal). Professor da Fundação Getulio Vargas, da PUC-Rio, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), da Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe), da Fundação Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais e do Cers.

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